ENTREVISTA COM DANIEL PIZA
Minha carreira de jornalista começou no “Estado” em 1991. No
final de 1992 fui para a “Folha” e três anos mais tarde para
a “Gazeta Mercantil” editar o caderno “Leitura de Fim de
Semana”, onde assino a coluna “Sinopse” desde outubro de
1997. Colaborei e colaboro com diversas revistas nacionais,
em especial a “Bravo”, e sou comentarista da Rede TV!.
Traduzi oito livros, organizei outros cinco e escrevi o
romance juvenil “As Senhoritas de Nova York”. No ano que vem
lanço uma coletânea pela Record, “Questão de Gosto”. Em
seguida começo a fase de redação da biografia de Machado de
Assis. Minha razão de viver se chama Letícia, minha filha de
2 anos.
-------------------------------0o0o0o0o0o0-----------------
Quando e como nasceu a literatura em sua vida? O que o levou
a ser escritor? Atrás de um escritor existe um grande leitor?
- Desde criança leio muito. Li Lobato, li as versões de
Orígenes Lessa para clássicos como “Dom Quixote”, gostava
muito de enciclopédias e atlas. Mas o verdadeiro despertar
veio aos 14 anos quando li “Crime e Castigo”, de Dostoeivski,
e depois “Quincas Borba”, de Machado de Assis. Minha cabeça
entrou em parafuso. Na mesma idade, também, me voltei para
meu irmão mais velho e perguntei: “Afinal, o que é
comunismo?” Ele me passou alguns livros para ler, e em poucos
anos já conhecia a vasta literatura marxista, de Marx a
Marcuse, mergulho de que não me arrependo. O que me levou a
ser escritor foi uma série de leituras em ficção e filosofia
que se seguiram a Dostoievski e Machado: Sartre, Nietzsche,
Aldous Huxley, Tolstoi, Flaubert, Twain, Wilde, Lima Barreto
etc. Acho que esse tipo de literatura com preocupação moral
contestadora é uma turbina mental para o adolescente. Mas o
que mais “contaminou” este leitor aqui, na verdade, foi a
poesia. É característico da poesia que queiramos nos tornar
poetas tão logo terminamos de ler um bom poema. Shakespeare,
Baudelaire, Keats, Drummond, Rimbaud, Eliot – ler esses
poetas me fez consumir páginas e páginas absolutamente
dispensáveis com meus poemas toscos, sobretudo dos 14 aos 20
anos. E o que me levou especificamente a ser jornalista foi a
leitura de jornalistas: H.L. Mencken, Bernard Shaw, Karl
Kraus e Paulo Francis, entre outros. Não, nem sempre atrás de
um escritor há um grande leitor. Na verdade, é raro o
escritor que saiba ler e, como Borges, goste mais de ler do
que de escrever. Mas há grandes escritores que foram grandes
críticos: Proust, James, o próprio Shaw, no Brasil o Machado.
Curiosamente, os que mais me fascinam.
Você é tradutor e ensaísta. É mais difícil criar sendo um
crítico?
- Eu acho que sim. A cabeça de um crítico, quer queira quer
não, é sempre um tanto “engasopada” de conceitos e teorias.
Mas a crítica, ou a grande crítica, é uma atividade bastante
criativa. Descobri a crítica ao mesmo tempo que a ficção e a
filosofia: críticos das mais variadas artes como Edmund
Wilson, Sainte-Beuve, Ruskin, Kenneth Clark, Robert Hughes,
Otto Maria Carpeaux, Kenneth Tynan e muitos outros, além do
quarteto Shaw, Mencken, Kraus e Francis. Adoro ler crítica e
ensaio. Ensaístas como Swift, Hazlitt, Leavis, o próprio
Sartre, Ezra Pound, Argan, Longhi, ah, quantas horas de
prazer não passei lendo esses sujeitos... Eu não me
incomodaria de não ser um Proust ou Tolstoi (mesmo porque não
dá nem para imaginar), mas faria qualquer coisa para ser
William Hazlitt ou H.L. Mencken. Não se pode ter tudo na
vida.
Quais escritores estão em Daniel Piza?
- Além dos citados acima, Franz Kafka. Meu sonho era escrever
livros curtos ou de divisões curtas como os de Machado, Kafka
ou Tchecov. Alguns livrões me fascinam: “Em Busca do Tempo
Perdido”, “Guerra e Paz”, “Operação Shylock”, “Os Sertões”,
“Grande Sertão: Veredas”, “Lorde Jim”. Mas não me vejo
escrevendo catataus como esses, ao menos não agora. Meu
temperamento de autor é mais para “Morte em Veneza” do que
para “Dr. Fausto”, embora o crítico que sou escolha este
último. Talvez o conto longo ou a novela seja o formato da
ficção do futuro, com bastante teor reflexivo, menos presa a
descrições. Agora, se você me perguntar qual o maior escritor
de todos os tempos, não consigo ser original: Shakespeare.
Mas cedo me dei conta de que jamais escreveria “Hamlet” –
como jamais pintaria a Capela Sistina ou comporia “Don
Giovanni”.
Todos ficamos órfãos com a morte de João Cabral de Melo Neto.
Qual a importância de Cabral para a nossa poesia?
- Cabral é capital. Temos grandes pós-românticos como Augusto
dos Anjos e Cruz e Sousa e grandes modernos coloquiais como
Drummond e Murilo Mendes. Mas Cabral andou no sentido
contrário da língua portuguesa, “mole demais”, como ele
dizia, e atingiu um rigor que – milagre? – é de uma
flexibilidade impressionante. Na prosa, antes de Graciliano
Ramos (o Cabral da ficção) havia Machado de Assis, que por
sinal influenciou muito mais Graciliano do que normalmente se
pensa. Mas na poesia Cabral não tinha de onde partir. Uma
façanha. E uma façanha que não deve ser estudada apenas por
poetas e artistas em geral: deve ser apreendida por
pensadores também. Antonio Candido disse que ainda não se
produz pensamento dentro da língua portuguesa, apenas com
ela, e estava certíssimo. Cabral mostrou que a língua
portuguesa do Brasil não é apenas um sopro melodioso, mas que
pode ter carnadura, e ainda assim ter o sopro melodioso.
Você traduziu “A Máquina do Tempo”, de HG Wells. Quanto tempo
levou traduzindo? O que busca quando faz uma tradução?
- Não me lembro de quantos meses foram, talvez três ou
quatro. A proposta ali era fazer uma tradução mais moderna do
que as existentes, com um ritmo fluente, a exemplo do
original. Acho que consegui. Já “Benito Cereno”, de Herman
Melville, uma das novelas mais fascinantes que já li, é o
oposto: a linguagem dá voltas o tempo todo, os contornos são
nebulosos, há passagens que até parecem não ter sentido, para
não falar dos sobretons bíblicos. Fiz o que pude. Os ensaios
de Henry James, por sua vez, têm uma sutileza argumentativa
impressionante, mas então eu estava pronto para o desafio.
Contos e poemas de Dorothy Parker parecem fáceis, não? Pois
não são. O que acho é que todo tradutor tem de estar pronto
para um poderoso déficit em relação ao original. E ter como
objetivo maior “roubá-lo para a nossa língua”, até mesmo sem
temer estranhezas. É um crime que nossos tradutores alterem
pontuação, abram parágrafos, suprimam frases. Para um
escritor às vezes um ponto-e-vírgula vale mais do que uma
bela imagem.
Como foi escrever o romance juvenil “As Senhoritas de Nova
York”? Como se fundem o trabalho do ensaísta com o do
tradutor e do romancista?
- “As Senhoritas” nasceu de um convite da FTD para fazer um
livro para adolescente sobre artes plásticas. Mas eu não
queria escrever um troço professoral do tipo que começa com
“Pablo Picasso nasceu em Malága em”... etc, etc. Me inspirei
numa experiência pessoal – a troca de cartas com um amigo, em
que debatíamos todos os assuntos possíveis, especialmente
artes e mulheres – e criei uma situação ficcional: um rapaz
em Nova York e outro em São Paulo se correspondendo por
email. Enquanto aquele descobre Picasso (no MoMA, no jazz e
nas ruas novaiorquinas), este relata andanças amorosas
locais. Minha idéia era mostrar como o cubismo não está só em
museus, mas em uma forma de encarar a vida e os outros. Nesse
caso, o ensaísta colaborou intensamente com o ficcionista.
Tudo que escrevo em ficção, na verdade, vem de um pensamento
e uma atitude que estão em meu ensaísmo. Se eu não tivesse de
escrever tanto para jornais e revistas, estaria em casa
produzindo reflexões semelhantes em romances e contos. O
tradutor ajuda muito no sentido de ter me permitido entrar em
estruturações diferentes da narrativa, mas tradução é um
sacrifício sem recompensa no Brasil. E o poeta aprende mais
traduzindo poesia do que o ficcionista traduzindo ficção.
Você também organizou “Waaal, o Dicionário da Corte”. Paulo
Francis faz falta ao Brasil? Ele chegou a terminar o romance
sobre Getúlio Vargas? Quem matou Paulo Francis?
- Ele faz muita falta especialmente pela facilidade em lidar
com assuntos importantes ou complexos e torná-los
interessantes mesmo para quem não tinha muito interesse
prévio neles. Faz menos falta por certa leviandade polemista
e falta de rigor. Mas ele ensinou coragem para toda uma
geração que se seguiu, e isso, no país da acomodação e do
eufemismo, é uma contribução maior do que mil erros. Não, ele
não terminou o romance sobre Getúlio, escrito em inglês, e
fez bem em não terminá-lo. Mas terminou um romance em
português que não li e que foi rejeitado pelo editor. O
problema é que, depois dos intelectualíssimos “Cabeça de
Papel” e “Cabeça de Negro”, Francis enfiou na mente a
obsessão de escrever um romance puramente narrativo,
balzaquiano, ou, na verdade, um “thriller” moderno,
fonsequiano. Nem preciso dizer que esse não era o estilo
dele. Ele era um verborrágico... E foi morto menos pelos
pulhas que desmascarou (e que tentaram processá-lo com
valores gangsterescos) do que por seu próprio descuido com a
saúde.
O trabalho diário no jornal apura o texto do escritor ou
acaba atrapalhando?
- Até os primeiros cinco anos, se conferida certa liberdade
(coisa rara em nossas publicações), apura, sim. Depois
atrapalha. O ritmo semanal é bem melhor: você ainda trabalha
sobre a chapa quente, mas já não precisa queimar os dedos.
Quem é e como vive o escritor brasileiro?
- Um vaidoso com pouco senso autocrítico ou então um abnegado
cuja ambição vai se perdendo com o tempo. Tenho conhecido os
dois tipos. Há muito pouca gente fazendo literatura séria no
Brasil hoje. A grande maioria faz “nas coxas” ou tenta imitar
algum ídolo. Os sérios vivem mal. Essa é a razão por que me
concentro no trabalho de jornalista e ensaísta e só escrevo
ficção e poesia quando não consigo mais segurar a idéia,
quando as palavras e os personagens já estão escorrendo pelos
dedos. No Brasil não dá para viver dignamente, escrevendo um
livro consistente a cada dois, três anos, como fazem os
escritores profissionais mundo afora. De minha parte, tento
dar o melhor de mim no papel jornal. E trabalho para escrever
três ou quatro livros que possam ficar. Repito: ser escritor
profissional e sério no Brasil, sem emprego “full time”, é
impossível.
De todas as atividades que tem, qual lhe é mais cara?
- Muitos não vão acreditar, mas são os ensaios curtos que
escrevo para jornal, entre os quais incluo minha coluna
“Sinopse”. Felizmente, é essa produção que me paga a
subsistência com considerável dignidade. E é ela que se
prolonga para projetos que tenho, como a biografia de Machado
e um livro de ensaios sobre pintura. Mas serei ainda mais
sortudo se puder publicar alguns volumes de novelas como um
que se passasse em minha cidade, São Paulo. Recentemente
comecei a escrever uma peça, mas é para ver como me sinto no
gênero. A propósito, eis uma obsessão minha: praticar todos
os gêneros, o que é diferente de publicar em todos eles.
Qual epígrafe marca sua vida?
- A que coloquei na coletânea de ensaios e resenhas que lanço
em maio pela Record, com o título “Questão de Gosto”. É, para
variar, do Machado: “Eu gosto de catar o mínimo e o
escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu”.
Qual o papel do escritor na sociedade?
- Pôr a sociedade no papel.
volta