Balacobaco
Planeta Terra
Rio de Janeiro

 
ENTREVISTA COM RODRIGO GARCIA LOPES
Rodrigo  Garcia  Lopes  (Londrina, PR,  2/10/65)  é  formado  em
Jornalismo, tendo trabalhado em jornais e veículos literários em
São  Paulo e Curitiba. De 1990 a 1992 viveu nos Estados  Unidos,
onde  realizou  mestrado na Arizona State  University  com  tese
sobre  os romances experimentais de William S. Burroughs.  Neste
período, reuniu material para seu livro Vozes & Visões: Panorama
da   Arte  e  Cultura  Norte  Americanas  Hoje  (ensaios  e   19
entrevistas com escritores e artistas como John Ashbery, William
Burroughs,  Marjorie  Perloff, Allen Ginsberg,  Nam  June  Paik,
Charles Bernstein and John Cage). Em 1990, Sylvia Plath:  Poemas
apresentava  a  poesia  da  poeta  norte-americana  ao   público
brasileiro.  Em 1994 lançou Solarium (Iluminuras), reunindo  sua
produção  poética desde 1984. Em 1996 lançou uma  nova  tradução
das  Illuminations  de Rimbaud, Iluminuras - Gravuras  Coloridas
(também  pela  editora Iluminuras) No ano passado,  seu  segundo
livro  de  poemas,  visibilia, foi lançado pela  editora   Sette
Letras  (RJ).  É membro do conselho editorial da revista  Medusa
(Curitiba) e, com bolsa da CAPES, realiza pesquisa de  doutorado
na  Arizona  State  University sobre a poesia modernista  norte-
americana  e  Laura  Riding. Participou das antologias  Artes  e
Ofícios  da  Poesia  (Artes  e  Ofícios,  1991),  Outras  Praias
(Iluminuras,  1998)  e Esses Poetas (Aeroplano,  1999).  Prepara
Polivox.
Balacobaco -Você está confeccionando "Polivox". Conte-nos o  que
vem a ser o projeto?
Rodrigo  G.  L.  -  Polivox  é  um  projeto  poético  que  venho
desenvolvendo  há  cerca de três anos.  Consiste  num  livro  de
poemas que coloca em discussão, via poesia, algumas preocupações
estéticas,  existenciais, e filosóficas que me interessam  neste
momento em que nos aproximamos do fim-de-século. Uma delas  é  a
investigação  sobre a hipótese de um poema longo,  um  épico  da
percepção,  nestes tempos de Internet e explosão  informacional.
Também  há  o  interesse  em retomar o poema  como  um  modo  de
investigação. Hoje o ambiente em que vivemos está, como sabemos,
constantemente invadido por simulações de vozes,  fragmentos  de
narrativa, de "textos". Não há como fugir disso. No poema  longo
que leva o título, tento pensar o poema não como um objeto "bem-
acabado"  e  autotélico e sim em continuar algumas investigações
de uma poética do processo iniciada na última parte de Solarium,
de 1994.
Nos  aspectos  formais,  o  livro vai servir  para  comprovar  a
validade de uma escrita poética polifônica hoje, em que  não  há
métodos  de  escrita superiores aos outros. Como  discute  Peter
Bürger,  uma das conquistas dos movimentos de vanguarda,  apesar
de  seu  "fracasso" em seu objetivo utópico de destruir  a  Arte
enquanto instituição e mudar a sociedade - muitas vezes tornando-
se  uma em si mesma - a importância do Dadaísmo, Surrealismo,  e
dos dois Futurismos foi fundamental para desconstruir e liquidar
a  idéia  de que um estilo se sobrepuje aos demais e  seja  tido
como "universal". Foi atentar ao perigo de enfatizarmos a poesia
como  algo separado da prática da vida diária, foi questionar  a
idéia  burguesa de "autonomia" da arte, de Tradição, de "rigor",
foi  detonar a idéia de "unidade", substituída pelo conceito  de
"montagem",    fragmentação,   por   uma   subjetividade    mais
esquizofrênica e alegórica. Meu projeto parte desses princípios.
No  poema Polivox por exemplo, tento compreender o poema como um
hiperespaço,   onde  a  linguagem  está  o  tempo   todo   sendo
intersectada e fragmentada por outros discursos, outras "vozes".
Isso  é o que vejo ocorrer nos textos de Burroughs, por exemplo:
o  texto  como  zona de turbulência,  interzone. Vox,  aqui,  se
refere  não  tanto a idéias românticas de "a voz  do  poeta",  a
expressão   de  um  eu  lírico,  mas  sim  como  um  instrumento
polifônico, sempre outro. O objetivo é criar uma estereofonia no
texto poético. Também é preciso problematizar o conceito de voz,
que  é  o  que  quero neste livro. Concordo com o  poeta  norte-
americano Charles Bernstein quando ele afirma que voz  deve  ser
uma das possibilidades da poesia e não sua essência.
B  -  Conseguiu ser o "xamã" para incorporar várias  "entidades"
poéticas? Como é/foi o seu processo criativo?
RGL - A idéia do poeta enquanto xamã é ancestral, tanto quanto a
prática  da  poesia,  e  foi formulada de diversas  maneiras  no
modernismo internacional. Está presente na poética visionária de
Blake mas sobretudo em Rimbaud. Está presente, de forma sutil  e
mais  apolínea, nas "máscaras" poundianas e seu dito de  que  os
poetas são as antenas da raça humana. Está presente em Artaud  e
na  "Teoria do Duende", de Lorca. Entre estas possibilidades, eu
ficaria  com Jerome Rothenberg e sua idéia mais humilde do  xamã
não  como um título a ser conquistado (pois isso implicaria  uma
mera atualização romântica da idéia do poeta enquanto "gênio"  e
"inspirado" dos românticos), mas no sentido em que  ele  lhe  dá
numa  entrevista  à  revista  Medusa:  como  um  modelo  para  a
configuração de sentidos e intensidades através da linguagem.
A  criação  de  poemas  envolve múltiplos  aspectos:  não  é  só
trabalho,  estudo, meditação e, claro, a vida,  enfim,  mas  uma
atitude  crítica e poética em relação ao mundo e  as  linguagens
que  nos  cercam. Poesia é, para mim, não só a arte da linguagem
mas uma forma de percepção do mundo. Às vezes o poema é fruto de
uma idéia, uma intuição perseguida inicialmente em pensamentos e
que  carregamos por um tempo até colocá-la no papel. Noutras,  o
poema  acontece quando estamos "distraídos" e, neste sentido,  o
acaso  é  muito  importante:  chame esse  fenômeno  de  insight,
"satori",   transe,  possessão...Em  todo   caso,   o   elemento
dionisíaco é muito importante para o processo poético. A  poesia
brasileira sempre tendeu mais para a mente do que para corpo, ao
menos como ela é lida canonicamente hoje, e é preciso enfatizar,
por  exemplo, a fisicalidade da mente. Não há dúvida de que  o/a
poeta  é, em muitos aspectos, semelhante ao "cavalo" dos rituais
afro-brasileiros. Ele/a serve de veículo, um médium, para que  a
linguagem e a beleza ritualística da poesia se manifestem.  É  o
fenômeno  da glossolalia, falar em linguagens diferentes.  Seria
mais  uma  espécie  de  super-concentração da  sensibilidade  no
momento  de escrever um poema. Ou, como diz George Oppen,  poeta
do   Objetivismo   americano:  o  poema  como   um   “teste   da
sinceridade”, um ato perceptivo. Não me guio tanto pelos  temas.
Como já dizia William Carlos Williams, qualquer assunto pode ser
digno de ser transformado em poesia.
B  -  O Livro é dividido em três partes, "Polivox", "Olhares"  e
"Experiências  Extraordinárias"  onde  busca  em  cada   uma   a
especificidade de forma e conteúdo. Poderia falar um pouco sobre
cada uma das partes?
RGL - Polivox traz poemas experimentais, mas sob uma perspectiva
pós-concreta,  no  sentido da tradição poética brasileira.  Nele
estão  presentes  não só o poema longo que eu falei,  "Polivox",
mas  experiências com o cut-up burroughsiano,  o  hipertexto,  a
colagem,  o  fluxo de consciência. Já em "Olhares" trabalho  com
formas  bem  antigas de poesia. O vers-de-societè e  a  tradição
fescenina do epigrama - influenciados pelas traduções de Marcial
para  o  livro  que estou preparando - bem como  os  haikais  da
persona do poeta Satori Uso. Criei este poeta japonês que  teria
imigrado para o interior do Paraná para uma página de literatura
que  editava  na  "Folha de Londrina", em 1985. Como  não  podia
publicar  meus próprios poemas, achei mais prático  inventar  um
poeta  e uma sensibilidade, inventando todo um percurso  para  a
poética  de  Uso.  Por isso, costumo dizer que,  à  maneira  dos
heterônomos  de  Pessoa,  Uso é uma  sensibilidade  distinta  da
minha,  física  e  juridicamente  falando.  Portanto,  o   livro
trabalha  com  a  idéia  de  polifonia  não  só  em  termos   de
diversidade, mas na presença de outras "vozes" como as de Uso  e
Marcial. Estes são dois epigramas da seção "Latrinália":
                 Agora ele é esteta, já que doutor
                 não pareceu seu forte;
                 Quando fala em rigor
                 logo pensam em "rigor mortis"
                 
                 **
                 
                 
                 Este mau cheiro, Anaximandro,
                 Não vem de mim, cagando, e sim
                 de sua mente pensando.
B  -  Você visou erigir somente a parte estética dos poemas?  As
questões humanas são sempre as mesmas?
RGL  -  Sim  e  não. Por um lado, estamos num momento  único  na
história  humana,  tão ou mais complexo do que  o  fin-de-siècle
passado  ou qualquer outro período. E impossível fazer  qualquer
futurologia  quanto  o  que  vai  acontecer,  mesmo   porque   a
eventualidade  de  estarmos próximos de um  contato  com  outras
civilizações  - quando a NASA decidir abrir sua  caixa  preta  -
mudará   radicalmente  a  visão  que  temos   do   ser   humano.
Sexualmente,  a aparição da AIDS nos fez regredir a  um  período
pré-Revolução Sexual. Hoje estamos descobrindo que  Globalização
significa,  cada  vez mais, Americanização. Ao mesmo  tempo,  as
guerras religiosas e limpezas étnicas, a influência massificante
da   mídia,   a   pornográfica  miséria  e   injustiça   sociais
brasileiras, não são coisas que podem passar batidas.  Há  temas
eternos porque nossa experiência aqui como animais humanos,  com
nossos   mecanismos   de   cognição,  passa   por   experiências
freqüentemente em conflito: o amor, o desejo, a alegria, o medo,
a  morte,  a consciência política e ecológica, além do  problema
fundamental para nós, poetas, que é o da comunicação humana.
B  -  Será  a  poesia a arte da escuta?" O que é mais importante
para  o  poeta,  escutar a si ou ouvir a  pluralidade  de  vozes
existentes?
RGL-Os  dois.
B  -  Pode-se  dizer que os poemas "CANZONE" e "Millenium  #  1"
derivam  do  mesmo  tronco poético. Mas  esteticamente  são  bem
diferentes,concorda?
RGL - Sim, na minha poesia eu me recuso, entre outras coisas, em
adotar uma idéia fechada de lirismo. Em muitos poemas eu sou  um
poeta   lírico,   mas  não  um  lirismo  careta,   "condoreiro",
sentimentalóide, mas um lirismo no sentido musical, de melopéia,
bem como de uma visão de vida, como forma de percepção do mundo,
um  lirismo de nosso tempo. Um "delirismo",  se quiser. Todos se
esquecem  que Cummings, por exemplo, que nos acostumamos  a  ver
como  um  poeta "concreto", era um poeta que, atrás do arcabouço
técnico e da desconstrução da sintaxe, era profundamente lírico,
às vezes até piegas. O que é preciso é expandir o terreno lírico
e  permitir que este lirismo dialogue com outros discursos,  com
outras formas poéticas, com estados que aparentemente podem  não
ser  a princípio considerados “líricos” . Até mesmo poetas  como
Augusto e Haroldo têm momentos de intensidade lírica, não é?  Ao
mesmo  tempo,  acho  ridículo  que  alguns  poetas  jovens  hoje
continuem   com   uma  idéia  velha  de  poesia,   atrelados   a
pressupostos  românticos,  parnasianos,  como  se  não   tivesse
nenhuma revolução poética desde Mallarmé, Blake e Rimbaud,  além
das   energias  liberadas  pela  contracultura.  É  simplesmente
ridículo.  Este "fenômeno" poético, assim como a canonização  do
Concretismo, bem como do Tropicalismo segundo Caretano  Verboso,
coincide  com  a  ascensão ao poder de um representante  de  uma
elite acadêmica e aparentemente "cabeça" ao posto político  mais
importante  do  pais. Só agora a ficha está  começando  a  cair.
Estamos caindo na vala de extermínio do academicismo.
Voltando  a  falar de lirismo, acho que o poeta  que  se  afasta
demais  de  uma visão lírica de poesia ou abandona a prática  de
uma  vez,  como Rimbaud, ou então passa a atacar a  poesia  como
tendo  como  sua maior deficiência justamente no  lirismo  (como
ocorreu  com a poeta norte-americana Laura Riding, por exemplo).
A  sensibilidade  poética talvez seja melhor explicada  como  um
equilíbrio  yin/yang entre pensamento & emoção, lucidez  &  e  a
outra lógica da poesia, mente & corpo. Neste contexto, você  ter
citado o "Canzone" é ilustrativo disso que estou falando. Pensei
o  poema  para  ser recitado numa performance com "cama  sonora"
meio  Idade  Média e meio jazz, e nele tento traduzir  em  minha
experiência  a visão de um período muito anterior  ao  nosso,  o
Duoccento  de Guido Cavalcanti, sobretudo a visão da mulher,  do
ser  humano  mulher, porém transposta para nossos  dias.  Outros
dois poemas dialogam diretamente com Cavalcanti em Solarium:  "O
Amor   é  Uma  Mulher  de  Olhos  Invisíveis"  e  "Balada".   Já
"Millenium"  toca  no ponto do "horror ao vazio"  neste  fim  de
século  simultaneamente viciado e entupido de imagens, da  crise
da  linguagem  e  da comunicação, da superficialidade  que  mina
qualquer profundidade, evocando o "horror vaccui" barroco.
B  -  O  haicai  tem  forma  específica.  Existem  puristas  que
estabelecem  uma  métrica,  uma  temática  e  uma  certa   visão
contemplativa  para  a existência do haikai.  Como  encara  esta
vertente mais conservadora? Fale sobre "Miragem de uma imagem".
RGL  -  O haikai deve ser entendido não só como um poema escrito
em estado de "zen", mas como um dos muitos instrumentos poéticos
à disposição do poeta. De certa forma, a proliferação de haikais
na   poesia   brasileira  nos  últimos  anos  atenta   para   um
facilitarismo e fraqueza expressiva. Qualquer coisa é chamada de
poema.  Um dos efeitos disso, acredito, pode ser explicado  pela
influência  de Alice Ruiz e Leminski na poesia jovem brasileira.
Mas mesmo eles não escrevem ou escreviam só haikai, mas foi esta
parte  da produção deles que acabou pegando. (E, já que  estamos
falando de lyrics, ambos são também são excelentes letristas). O
haikai  tem  um  problema: enquanto forma, pode  ser  facilmente
transformada  em maneirismo repetitivo. A razão de  eu  publicar
uma  seção  de haikais no meu livro tem mais a ver não  com  uma
filiação a uma voga, já que eles foram escritos há 15 anos,  mas
para me ver livre do fantasma do Satori Uso.
B - Você só é poeta quando está escrevendo um poema?
RGL  - Obviamente não, é preciso ser poeta full time, mesmo  que
não  estejamos escrevendo poemas. A busca do sentido nunca pára,
pois  a mente e o corpo trabalham 24 horas por dia. Buscamos  um
sentido  para  aquele objeto logo ali, para uma  sensação,  para
aquela  imagem, assim como nos sonhos a mente fecha  portas  que
ela mesma abriu, enquanto segue compondo. O poeta pode não estar
fisicamente,  num papel, fazendo poesia, mas num  certo  sentido
ele  está escrevendo e compondo o tempo todo. Acredito na poesia
não  só  enquanto um belo objeto mas enquanto um  processo.  Uma
forma  de conhecimento. A poeta Laura Riding tem uma frase muito
bonita  com  relação a isso: "fazer um poema é como  estar  vivo
para  sempre". Ou como ela diz: para escrever e ler um  poema  é
preciso  superar uma tremenda inércia. Não acredito, como  diria
Leminski,   em   poetas  de  fim-de-semana.  A   resposta   mais
contundente  para este tipo de questão é que,  como  ele  dizia,
"para  ser poeta é preciso ser mais que poeta". Não basta apenas
dominar  o  código,  é  preciso algo mais, paixão,  intensidade,
percepção, alegria de viver, consciência histórica, sob o  risco
de  sua  poesia ser formalmente OK mas não dizer porra  nenhuma.
Voltando  à questão da concisão e do haikai, uma idéia poundiana
que  herdamos via Concretismo, por exemplo, é que  poema  bom  é
poema  curto  e imagista. Esta visão tornou-se um  paradigma  ou
"norma"  que muitas vezes se traduz numa brevidade que  não  diz
muita coisa (ao invés de estar falando o máximo com o mínimo  de
palavras),  e  parece estar como que bloqueando  a  aparição  de
outras  possibilidades poéticas por aqui -  isso  se  dando  via
inflação  de  haikais  ou  na  canonização  do  poema  curto   e
“técnico”.  Na minha opinião, quase sempre é a falta  de  fôlego
que  restringe, hoje, um poeta, necessariamente, ao poema curto.
Concisão  não  é só uma questão de quantidade mas de  qualidade.
Num  poema curto, como ocorre hoje em muitos poemas concretos  e
em  poetas  contemporâneos brasileiros, você pode ser conciso  e
não  dizer coisa alguma. Fica aquela sensação de que "concisão",
muitas vezes, é desculpa para a falta de fôlego e estreiteza  de
visão  do  poeta,  para  uma falta do  que  dizer  camuflada  de
brevidade.  Este,  aliás,  é o tema de  um  poema  recente  meu,
"Dizer,"  que polemiza com isso. A personalidade do  poeta  e  a
personalidade do poema são, de certa maneira, especulativas.  Se
você, enquanto pessoa, é um bosta, um ressentido, as chances  de
sua  poesia  ser ressentida e uma bosta se tornam  bem  maiores.
Claro que há sempre a chance de um bosta se safar da acusação de
"ruim"  apenas pelo domínio de uma técnica: é que isto passou  a
bastar, no Brasil, para valorizar um poeta como sendo "bom" ou "
ruim". É o que ocorre hoje com os poetas de terno e celular.  Se
você  vive  trancafiado  numa  sala  com  ar  condicionado   num
apartamento  nos  Jardins  escrevendo  poemas  com   uma   visão
meramente   literária  ou  burguesa  em  mente,  a  conseqüência
imediata é a incapacidade de enxergar o que está fora do  texto,
além da página.
B  -  A  segunda  parte  de "Paradoxos do Tempo"  é  dedicada  a
Leminski.   Quais  foram/são  as  suas  principais   influências
poéticas?
RGL  -  Creio  que  Leminski  afetou,  embora  com  intensidades
diferentes, a poesia de muitos poetas interessantes e talentosos
surgidos  nos  últimos  anos e que são relativamente  diferentes
entre  si: penso em nomes como Ademir Assunção, Maurício  Arruda
Mendonça,  Ricardo  Corona,  Josely  Vianna  Baptista,   Arnaldo
Antunes,  Mario Bortolloto, Jaques Brand, Fernando  Karl,  entre
outros. Como crítico, poeta, agitador cultural, Leminski, em meu
trabalho, é sem dúvida uma das referências mais importantes, mas
não  a  ponto  de tornar sua influência numa nova ortodoxia,  ou
escolinha,  como ocorreu com a poesia concreta.  Este  risco  os
poetas jovens que admiro estão conseguindo evitar, o que é  bom.
Os  músicos também influenciaram-me bastante, pois não  dá  para
separar  muito  a poesia de sua musicalidade, de sua  ocorrência
musical.  Não  só Chico, Gil, Itamar Assumpcão, Arrigo  Barnabé,
mas músicos como Bach, Debussy, Zappa, Tom Waits, jazzistas como
Bill  Evans  e  Chick Corea, foram parte importante  para  minha
sensibilidade. Os primeiros poetas que li foram Rimbaud,  Eliot,
Pound, Artaud, os beats, Vinícius e Drummond. Costumo dizer  que
os poetas da geração "Frigidaire" da qual faço parte, e que teve
sua  formação durante o período da ditadura (1968-1985)  não  só
aprenderam  a  evitar certas bobagens da poesia  marginal,  como
também  prestaram  com  honras seu  serviço  militar  na  poesia
concreta  e  estão  aptos a continuar o  trabalho  de  renovação
poética,  mas  com uma visão muito mais ampla, enriquecida,  com
todos  os  erros e acertos. Poesia é uma arte,  e  não  moda  ou
modismo,  como  muitos poetas e a mídia do  eixo  Rio-São  Paulo
parecem querer reforçar. Aliás, não me surpreenderia se pintasse
por  aí uma versão da "Caras" só com os poetas da NPB. Ao  mesmo
tempo, vejo poetas na mídia desfiarem orgulhosamente seu rosário
de  autores canônicos (Drummond, Cabral, Oswald etc), orgulhosos
de  se  inserirem dentro de uma "tradição" de poesia brasileira,
dentro  de  uma idéia de linha evolutiva que sempre  me  pareceu
suspeita.  É  uma idéia no mínimo conservadora e  difundida  por
Eliot em "Tradição e Talento Individual", de 1919! Pois deixa eu
dizer uma coisa com toda a sinceridade: como poeta, Miles Davis,
John  Coltrane e Charlie Parker tiveram impacto muito  maior  na
minha poesia do que os poetas que "o rebanho que saca" não cansa
de  citar.  Digo  isso com toda sinceridade, e  sem  desmerecer,
claro,  a  importância  de  um Vinícius,  de  um  Drummond,  dos
concretos.  Mas,  como costumo dizer brincando  com  os  amigos:
"apertem os cintos, o plano-piloto sumiu".
B  -  Como podem conviver tantos estilos dentro de um poeta  só?
Esta  é  a  "missão"  do  poeta  na pós-modernidade:  trazer  ao
presente o futuro recriado, o "tempo redescoberto"...
RGL  -  O  ser  humano  é, por natureza,  uma  sensibilidade  em
conflito,  não é? Como querer, então, que os produtos  culturais
de  uma  mesma pessoa sigam uma ordem ou método determinado?  Eu
não  aceito isso. Geralmente os "cítricos" são incapazes de  ver
diversidade na opção estética não como um "vale-tudo"  mas  como
uma  opção estética! Nos cansamos de regras. Geralmente o  poeta
acha um “estilo”, um maneirismo, e se cola nele para o resto  da
vida como um cão a um osso. E isso muitas vezes pra desculpar  a
falta  de visão e outras possibilidades, costumam dar o nome  de
"método".  Os críticos, por outro lado - se é que ainda  existem
críticos de poesia no Brasil que mereçam esta designação - estão
sempre a buscar valores como "unidade", "coesão", "forma".  Para
mim,  como  disse  Charles  Olson,  "forma  é  uma  extensão  do
conteúdo". Ou seja: cada poema é uma aventura diferente da que a
precedeu.   Por isso, cada um pede uma forma adequada  para  sua
investigação  que  é,  ao  mesmo tempo, irrepetível.  Como  faço
questão de enfatizar, quando digo “diversidade” poética não é no
sentido  de  uma  concessão liberal-democrática,  uma  variedade
festeira política e poeticamente correta, e sim como os  sentido
de  "conflito",  "divergência" e " dissidência"  que  a  palavra
carregaetimologicamente.
B  - "IN A SILENT WAY" é um poema de beleza ímpar. É lapidado  e
perfeito em sua "arquitetura poética"... Você concorda que  é  o
poema feito atualmente no Brasil? O que está em voga?
RGL  -  O  poema  foi escrito por volta de 1986,  quando  ficava
ouvindo maravilhado os discos de Miles Davis, sobretudo "Bitches
Brew" e "In a Silent Way". Acho que o poema tenta captar, em sua
forma  e  musicalidade verbal, o estado que me sentia e o  lugar
onde  estava ao escrevê-lo. Acho-o um poema bem simples. Se você
se  refere a uma poética claramente musical e imagista,  com  as
linhas   justapondo,  parataticamente,  imagens   e   sensações,
concordo. Mas já digo que o poema feito atualmente no Brasil, ao
contrário  do que querem os neo-formalistas e neo-acadêmicos,  é
mais  diverso, conflituoso e plural do que seríamos  capazes  de
visualizar.  Só tenho certeza de uma coisa: o que está  em  voga
não é a poesia.
     
para contato com o poeta Rodrigo Garcia Lopes:
mailto:garcia@cce.ufsc.br
mailto:rodrigoglopes@hotmail.com

VOLTA