RUY ESPINHEIRA FILHO


Jornalista, mestre em Ciências Sociais, doutor em Letras,
professor  de  Literatura Brasileira do  Departamento  de
Letras  Vernáculas do Instituto de Letras da Universidade
Federal   da  Bahia,  Ruy  Espinheira  Filho  nasceu   em
Salvador,  Bahia, em 1942. Publicou 11 livros de  poemas:
Heléboro  (1974),  Julgado do Vento  (1979),  As  Sombras
Luminosas  (1981  —  Prêmio Nacional  de  Poesia  Cruz  e
Sousa), Morte Secreta e Poesia Anterior (1984), A  Guerra
do  Gato ( infantil — 1987), A Canção de Beatriz e outros
poemas  (1990), Antologia Breve (1995), Antologia Poética
(1996), Memória da Chuva (1996 — Prêmio Ribeiro Couto, da
União Brasileira de Escritores), Livro de Sonetos (1998),
Poesia  Reunida  e Inéditos (1998). Tem ainda  publicados
vários  livros  em prosa: Sob o Último Sol  de  Fevereiro
(crônicas, 1975), O Vento no Tamarindeiro (contos, 1981);
as novelas O Rei Artur Vai à Guerra (1987), O Fantasma da
Delegacia  (1988),  Os  Quatro  Mosqueteiros  Eram   Três
(1989);     os romances Ângelo Sobral Desce aos  Infernos
(1986  — Prêmio Rio de Literatura, 1985), Últimos  Tempos
Heróicos em Manacá da Serra (1991), e o ensaio O Nordeste
e o Negro na Poesia de Jorge de Lima (1990).

Até ver POESIA REUNIDA E INÉDITOS, seu recente livro,
decorrem 32 anos de literatura. Quais foram as pedras, as
perdas do caminho?
Na  verdade,  bem mais de 32 anos, pois escrevo  desde  a
infância.  De  textos que foram incluídos  em  livro,  33
anos.  As  pedras  do  caminho  foram  muitas,  pois  ser
escritor  vivendo  no  Nordeste não é  brincadeira.  Digo
vivendo  porque,  ao contrário de muitos,  nunca  saí  da
Bahia.  Se para autores do eixo Rio-São Paulo é  difícil,
pois  sei que é, imagine para quem vive fora do principal
circuito  literário  — sem contatos,  sem  editoras,  sem
divulgação. Mas acabei fazendo contatos, sendo aceito por
editores,  críticos, outros autores,  leitores.  Uma  boa
ajuda:  os prêmios literários: ganhei o Cruz e Sousa,  de
poesia,  em 1981, e fui um dos três premiados (2º  lugar)
no Prêmio Rio de Literatura, de romance, em 1985, além de
ter  recebido várias outras premiações, sendo a última  o
Prêmio  Ribeiro  Couto,  da UBE, pelo  livro  Memória  da
Chuva,  o  qual foi adotado no vestibular da Universidade
Federal  de  Goiás,  em 1998, e se encontra  na  terceira
edição.  Quanto  às perdas, creio que  tantas  quanto  as
pedras:  de  oportunidades, um número incalculável.  Além
daquelas  perdas  que a vida nos traz com  o  passar  dos
anos, as perdas do afeto, do amor, da juventude...
Em  Os  Objetos, todos os objetos inanimados receberam  a
alma  da ação. Só o revólver aguarda. O que o poeta  deve
matar?
O que o revólver, dormindo na gaveta sob cartas e poemas,
aguarda?  É  um  símbolo da explosão,  da  violência,  da
morte.  Mas  o  que  significa, mesmo,  depende  de  cada
leitor. Talvez a grande solução do suicídio...
O  poeta  é  um  criador de palavras?  Há  perigo  de  um
neologismo tornar-se um trocadilho bobo?
O  poeta  pode  ser,  ou  não, um  criador  de  palavras.
Drummond diz, num poema, ter inventado certas palavras  e
tornado outras mais belas. Mas o fundamental para o poeta
não  é criar palavras, mas com elas — de preferência  com
as  palavras  mais simples —  ser capaz de criar  poesia.
Quanto  ao neologismo, pode, sim, tornar-se um trocadilho
bobo  —  caso  o poeta seja, na verdade, um trocadilhista
bobo...  Em  si,  os  neologismos são  enriquecimento  da
língua. E o trocadilhista bobo, para fazer das suas,  não
precisa se esforçar para criar neologismos, pode produzir
trocadilhagens   com  as  velhas  palavras   de   sempre,
inclusive  as arcaicas. Aliás, as palavras não podem  ser
responsabilizadas pela indigência mental de ninguém.
A  sua poesia é uma  “ode ao tempo”. Muitos poemas tentam
a  descoberta do tempo perdido. Há uma valorização  maior
do  passado,  como terreno da liberdade e da modificação.
Só as coisas que passaram podem ser modificadas. Não é  o
futuro o tempo da mudança?
Realmente, vários críticos já me chamaram de   “poeta  da
memória”. Mas, então, me caberia perguntar: qual não o é?
Vejam  Drummond: lá estão Itabira, a infância, a  memória
familiar,  a marca forte de Minas. Vejam Manuel Bandeira:
a  presença  do  Recife,  da  infância,  da  mocidade  de
esperança, desesperança e tísica. Vejam Jorge de  Lima  e
sua  infância se alastrando por toda a sua obra  poética.
Aliás,  Jorge de Lima disse certa vez que seu único  tema
era  a  infância. Até mesmo João Cabral, com toda  a  sua
pose  pétrea,  é  um memorioso: os rios, os  engenhos,  a
caatinga... Falando de mim, o que sei é que a única coisa
que  possuo  é  a memória. O presente é o que  acabou  de
passar.  O  futuro... Bem, o futuro é uma  projeção,  uma
possibilidade.  Quando se realiza,  não  se  realiza.  Ou
seja:  deixa de ser futuro. Bandeira escreveu num  poema:
“O futuro diz o povo que a Deus pertence./ A Deus... Ora,
adeus!”
No  tempo perdido/ recupero, enfim,/ tudo o que perdi/ no
meu  tempo ganho, em Tempo Perdido. O passado é o refúgio
do poeta que cria realidades?
Não sei se o passado é um refúgio, o que sei é que ele se
impõe. Está em mim, como creio que está em todo mundo. Há
quem  considere o passado uma espécie de mundo perdido  —
quando,  na  verdade, é o único mundo  que  realmente  se
possui,  como  já disse antes, ao falar da  memória.  Mas
aquele   “tempo perdido” a que me refiro no poema  citado
não  pretende  ser  o do passado — mas aquele  outro  que
“perdemos”  no  dia-a-dia com nossas  distrações,  nossos
sonhos,  nossas vagabundagens de alma... Mas, é claro,  o
leitor  tem  direito  de ler como quiser,  de  fazer  sua
própria leitura.
O  presente é o terreno para mudar o passado, como diz em
Revelação:  Ai que somos felizes/ agora/ mas  não  tanto/
como amanhã, no passado?
Bom,  eu acho é que só nos tornamos conscientes da  nossa
felicidade   depois. Não mudamos propriamente o  passado.
Há  dois versos de Pessoa que põem bem a questão: Eu  era
feliz? Não sei:/ Fui-o outrora agora. Quer dizer: agora é
que  ele está sendo feliz outrora. Mas não quer dizer que
a  nossa felicidade outrora tenha mesmo acontecido. O que
importa é que ela tenha acontecido outrora agora.  O  que
importa  é  o  que sentimos, o que consideramos  verdade,
mesmo   que   nunca  tenha  acontecido.   A   memória   é
fabulosamente ficcionista, não devemos nos esquecer desta
característica,  que  talvez seja  a  sua  característica
principal.
    
O  azul  é  uma  cor eleita? Como surgiu  a   “predileção
poética” por esta cor que está em muitos poemas?  (Alguma
influência simbolista?)
    
Nunca  me fiz esta pergunta. Penso que o azul é, em minha
poesia,  menos  uma  cor  que  um  símbolo,  um  meio  de
expressar,  talvez, a paz, a serenidade, a  profundidade,
algo  mais  vasto e profundo. Seja como  for,  talvez  eu
necessitasse  refletir mais sobre  o  assunto.  Quanto  a
alguma influência simbolista, não sei. Sofri a influência
de  todo  mundo  que leio, certamente também  alguma  dos
simbolistas. Mas, é claro, o azul é de todos, não só  dos
simbolistas... Um poeta cheio de azuis é  o  Carlos  Pena
Filho, de Pernambuco, grande sonetista. Outro repleto  de
cores  é  o  Sosígenes Costa, da Bahia. E  eu  sempre  li
bastante estes dois poetas.
    
Cuidadosamente/  o anjo do computador/ enumera/  os  meus
pecados. Este trecho de Bilhete a Mário Quintana  anuncia
a  computação. O que mudaria na internet? Quais os  sites
que  mais  visita? O que a rede dá a um poeta  consagrado
como Ruy Espinheira Filho?
    
É  um  poema que está em meu segundo livro, escrito entre
1966  e  1976. Portanto, uns vinte anos antes de eu  usar
computador. Por que, então, falei em computador? Não sei.
Mas tratava-se de um computador especial, pois nele havia
um  anjo...    O que mudou foi a agilidade no trabalho  –
que   se   acelerou.  A  correspondência  também   ganhou
velocidade,  assim  como  os contatos  se  multiplicaram.
Quanto  a  uma influência na criação literária, acho  que
não  houve.  Eu  escrevia prosa na máquina  de  escrever.
Poesia,  só  à  mão. Agora, escrevo prosa no  teclado  do
computador, e poesia... à mão. E não sou um navegante  da
internet,  prefiro ler. No mais, não sou poeta consagrado
coisíssima nenhuma! Consagrados eram Bandeira,  Drummond,
Cabral e uns outros poucos, pouquíssimos.
    
Falando de Quintana, quais os poetas que cabem dentro  da
sua  poesia?  Quais  os poetas que cabem  dentro  de  Ruy
Espinheira Filho?
    
Manuel  Bandeira,  no Itinerário de  Pasárgada,  diz  que
sofreu influência de todo mundo. É o que acontece comigo:
acho que, de uma forma ou de outra, todas as leituras  me
influenciam.  Até os autores muito ruins, pois  com  eles
aprendo   como   não  escrever...  Alguns   críticos   já
aproximaram  minha  poesia da  de  Bandeira;  outros,  de
Drummond.  Claro  que  sou leitor constante  desses  dois
grandes, mas sem dúvida bebi em muitas outras fontes –  a
começar  por  Camões, passando pelos românticos.  Aprendi
até  mesmo  com Olavo Bilac, que considero o nosso  maior
parnasiano,  embora  minha  poesia  não  tenha  nada   de
parnasianismo, ao contrário das  “vanguardas” que sugiram
a   partir   de   1945   (Geração  de  45,   concretismo,
neoconcretismo, praxismo, poema-processo,  construtivismo
e  que  tais,  todas  hoje  –  felizmente  –  devidamente
extintas).    Enfim, sou herdeiro da tradição  da  poesia
ocidental. Talvez incompetente para administrar tão  rica
herança...
    
Você  é  um  poeta caseiro? O espaço onde os seus  poemas
ocorrem é o da casa? Fale sobre.
    
Sou  um  homem  caseiro.  Mas os  poemas  me  ocorrem  em
qualquer lugar. O inconsciente não avisa, a criação  pode
emergir a qualquer momento – ou ficar longo tempo sem dar
sinal  de nada. Não sou de ficar forçando a barra, o  que
só  produz  bobagem. Sigo os conselhos de  Drummond:  não
adulo  o poema nem recolho do chão o poema que se perdeu.
Na verdade, já era assim mesmo antes de ler Drummond.
    
A  sua  linguagem é simples, sem rococós,  hermetismos  e
firulas. A simplicidade discursiva é uma busca eterna?
    
Escrever com simplicidade é o que há de mais difícil. Não
há nada que impeça que algo seja, ao mesmo tempo, simples
e  profundo. Os grandes poetas são simples, a começar  de
Homero.  As  tais   “firulas” a que você  se  refere  são
coisas  de  poetastros. E o hermetismo é,  quase  sempre,
malandragem  de  quem não tem o que dizer.  Ou  não  sabe
dizer o pouco que talvez possa ter. Agora, há poetas  que
são complexos, devido ao seu discurso, mas complexidade é
outra coisa, nada tem a ver com  “firulas” e hermetismos:
apenas  exige  do  leitor  mais  reflexão,  mais  apurada
sensibilidade,  assim  como alguma cultura.  Eu  citaria,
para este caso, como exemplo, Eliot.
    
No poema Uma Cidade, tudo contém uma idéia oposta. Também
em  Inúmero  há  : E na origem/ da luz talvez  não  haja/
senão  a  ausência da estrela. A dualidade  é  poesia  em
estado bruto?
    
Não  vejo isto em Uma Cidade. A imagem que você cita,  de
Inúmero,  não  é,  a meu ver, uma colocação  de  opostos.
Arrisco-me  a racionalizar um pouco e dizer que  procurei
aproximar a vida, repleta de ilusões, do fenômeno da  luz
que continuamos a ver mesmo quando a estrela que a emitia
já  não existe mais. Ou seja: a estrela que vemos  não  é
estrela,  não  é mais, é apenas a sua luz,  que  continua
viajando  pelo espaço. Se  fizéssemos uma viagem  através
dessa  luz,  em sua origem já não encontraríamos  estrela
alguma. Podemos dizer que essa luz não é mais do que  uma
“memória” da estrela.
    
Eu  sou  um  menino/  contendo um homem  que  contém/  um
menino. O que o poeta tem de lúdico?
    
O  Ivan  Junqueira,  num  estudo  sobre  a  minha  poesia
(incluído no livro O Fio de Dédalo, recentemente  lançado
pela  Record), começa destacando o ludismo. Sim, há  algo
de lúdico aqui e ali, mas penso que a minha poesia – e  o
próprio  Ivan  frisa  isto – é muito  mais  marcantemente
melancólica,  elegíaca. No meu próximo  livro,  ainda  em
preparo,  aparecerão, na parte final, alguns poemas  bem-
humorados,  mas  a  maior parte da obra se  caracterizará
pelo lirismo elegíaco de que fala o Ivan.
    
Todo  amor está perdido/ ao nascer. É o verso de abertura
do  poema  Do  Amor. É possível ser e não  ser  ao  mesmo
tempo?
    
Não  sei se entendi bem a pergunta. Bom, acho que  sim  –
porque  ninguém nos garante que o que julgamos ser  é  de
fato  o que é.  Somos, sobretudo, o que sonhamos,  o  que
nos  transforma parcialmente em sonho. A  vida  é  sonho,
disse Calderón, creio que com muitíssima razão. Todo amor
está  perdido/ ao nascer... Na verdade, tudo está perdido
desde  a  sua origem. Tudo caminha para isto:  perder-se.
Inclusive a vida.
    
Ainda  neste  poema, Do Amor, o que fica de um  amor  são
destroços e o que não foi dito e o que não foi feito?
    
Somos  sempre  uns destroçados. E os destroços  ficam  um
pouco,  boiando na superfície, depois também desaparecem.
Mas   só   desaparecem,  todos  esses  destroços,  quando
desaparecemos.  Qualquer pessoa que  se  examine  bem  só
quase vai encontrar destroços.
    
Falar do poema no poema é o futuro da poesia?
    
Espero  que não. Se for, significa que a poesia  não  tem
futuro... Pode-se tratar da poesia no poema, exercitar  a
metalinguagem,  mas  ficar nisto é  extrema  pobreza.  Já
pensou  se  Homero,  em lugar de tratar  dos  deuses,  da
guerra,  de Ulisses e Cia., ficasse falando do seu  fazer
poético? A poesia, no meu entender – a poesia e toda arte
-, deve expressar a vida, a condição humana. Poesia não é
truque,  não  é  jeitinho, não é receita.  Por  falar  em
receita:  quem  quiser que leve a sério  a  Filosofia  da
Composição, de Poe, e tente fazer seu O Corvo... Nada  me
irrita mais, hoje, do que pegar num livro de jovem  autor
e  encontrar  as  lamúrias (porque  geralmente  estão  se
lamuriando,  impotentes, incapazes  de  criar)  do  fazer
poético.  Ao  contrário do que dizem os formalistas,  nós
não  fazemos arte meramente com técnica – mas, sobretudo,
com  o que somos. A técnica é o que, como dizia Mário  de
Andrade,  pode  ser ensinado. Qualquer um  pode  aprender
técnica,  mas  só  faz poesia quem, além  de  conhecer  a
técnica,  é poeta. E ninguém pode ensinar ninguém  a  ser
poeta.
    
Alexei  Bueno  diz  que  a poesia brasileira  é  cocô  de
cabrito:  pequena,  sequinha  e  idêntica.  Concorda  com
Alexei?
    
O  Alexei não diz isto sobre a poesia brasileira como  um
todo  –  mas  a  respeito de certa poesia,  exatamente  a
poesia  dos  formalistas: concretistas,  neoconcretistas,
construtivistas et caterva, que são todos neoparnasianos.
Aí,  sim,  é  puro cocô de cabrito. E esses  caras  ficam
produzindo isso e dizem que se trata de rigor.  Confundem
verso longo com discursivismo e verso (ou que nome tenha)
curto  com  síntese. É a pobreza mental  em  toda  a  sua
pujança.
    
O  poema  Aniversário  é  sobre a perda.  Perdi  colegas,
namoradas, cães./ Perdi árvores, perdi um rio/ e eu mesmo
nele  me  banhando. O rio é uma perda eterna já que,  por
Heráclito, ninguém passa pelo mesmo rio duas vezes?
    
Pois é, novamente a perda na minha poesia... A imagem  do
rio é perfeita: ninguém se banha no mesmo rio duas vezes.
Tanto por não ser mais o rio o mesmo, porque flui, quanto
por  também a pessoa fluir, mudar-se continuamente em si.
Como  vê, minha poesia é mesmo muito melancólica.  Não  é
uma atitude intelectual: é que a vida é assim...
    
Tudo  o  que  um bom poeta escreve é pensado,  projetado,
articulado  ou  o inconsciente fala mais alto  e  há  uma
conexão  divina  para inspirar o momento  de  escrever  o
poema? Como é o seu processo criativo?
    
Sendo  um agnóstico, não posso aceitar a conexão  divina.
Mas  sei que Anima canta e que é do seu canto que  vem  a
arte.  Que  não é só um canto espontâneo, tem que  passar
pela crítica. Fernando Pessoa fala de harmonia de idéia e
emoção.  Há  um  verso dele que expressa perfeitamente  a
coisa:  O  que  em mim sente ‘stá pensando. Meu  processo
criativo é igual ao de todos, em linhas gerais: impulso e
crítica.  Ninguém  consegue  fazer  arte  apenas  com   o
intelecto,  com  a  inteligência e  técnica,  pois  assim
qualquer  pessoa inteligente e culta seria artista.  Todo
mundo  é capaz de aprender o que pode ser ensinado,  como
dizia Mário, mas só os artistas produzem arte. Só os  que
atingem aquela harmonia de idéia e emoção. Ninguém decide
ser  artista:  ou se é ou não se é. Não  é  escolha  –  é
condição.  Porque o artista é, ainda lembrando Mário,  um
fatalizado.
    
Uma  vida não dá/ para contar/ uma vida, versos de  Poema
de  Novembro, mostram a incapacidade humana de abarcar  o
tudo.  O  poema  pode  ser considerado  mais  profundo  e
autobiográfico do que algumas autobiografias?
    
Como falei antes, escrevo com o que sou. Como todo poeta,
ou  artista, produz. Posso imitar Bandeira, ou  Drummond,
mas  não posso fazer a poesia deles – simplesmente porque
não sou Bandeira nem Drummond. Não vivi a vida deles, não
possuo  as suas – digamos - idiossincrasias. Repito:  não
sou  eles,  sou o que há de mim, apenas. O poema,  a  meu
ver,  é sempre, de certa maneira, autobiográfico – porque
você  o  produz  com o que você é. Só os imbecis  –  que,
infelizmente, são em grande número – é que  podem  pensar
que  a  arte  se  faz  com  mera aplicação  de  técnicas.
Aristóteles mostrou bem a diferença entre Empédocles, que
escrevia  ciência em versos, e Homero, que fazia  poesia.
As  técnicas são o meio – mas não a fonte. A  fonte  é  o
artista. Quanto às autobiografias intencionais, podem ser
menos  ou mais sinceras. Mas, como já dissemos, a memória
é ficcionista...
    
Como foi ser Beatriz dos Anjos Silva?
    
O   poema  A  Canção  de  Beatriz  foi  deflagrado   pelo
depoimento   de   uma  prostituta,  em  entrevista,   que
acompanhei,  a  uma namorada minha, jornalista.  Veio  de
súbito,  dias  depois, e foi o único  poema  que  escrevi
diretamente  à máquina. Saiu de vez, como  um  jorro.  Há
quem o estranhe muito. Há quem o julgue prosaico. Há quem
o  deteste.  Mas há também quem goste muito dele.  O  que
posso  dizer é que é um poema singular em minha  obra.  E
ser  Beatriz dos Anjos Silva foi, sem dúvida,  uma  forte
experiência emocional.
    
O que faz nas horas de lazer?
    
Leio. De vez em quando, uma farrinha com amigos, um banho
de mar. Mas geralmente leio.
    
Como  encara  a matéria da revista Veja que  ridiculariza
poetas?
    
Como uma matéria ridícula.
    
Tem algum mote que o acompanhe?
    
Há  muitos  motes bons por aí. Lendo Nietzsche,  Monteiro
Lobato encontrou um que passou a seguir, e do qual sempre
me recordo. Disse o filósofo: “Se queres seguir-me, segue-
te.”   Creio  que,  embora  não  muito  intencionalmente,
observo esse mote.
    
Qual o papel do escritor na sociedade?
    
É  ser escritor. Se possível, bom escritor. Segundo  Ezra
Pound,  os  escritores têm um função social  definida,  a
qual  é  proporcional à sua competência como  escritores.
Como   cidadãos,   eles   têm   inúmeras   obrigações   e
preferências  políticas, cada qual com  as  suas.  Mas  a
principal  obrigação como escritor é ser bom  e  procurar
manter  viva  a sua herança de cultura e o vigor  de  sua
língua. Mesmo porque, como advertia o mesmo Pound,  se  a
literatura  de  uma nação entra em declínio  a  nação  se
atrofia e decai.

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