Balacobaco
Planeta Terra 
Rio de Janeiro

 
 
Entrevista com Ruy Proença
Ruy  Proença: São Paulo, SP. Nascido a 9 de janeiro de  1957.
Engenheiro  de  minas.  Autor de: Pequenos  Séculos,  poemas,
Klaxon,  São  Paulo, 1985; A lua investirá com seus  chifres,
poemas, Giordano, São Paulo, 1996. Como um dia come o  outro,
Nankin,  1999. Participou das coletâneas de poesia  do  Grupo
Cálamo: Lição de Asa, Iluminuras, São Paulo, 1993; Vila  Lira
Rica,  dos  Autores, São Paulo, 1995; Desnorte,  Nankin,  São
Paulo,  1997.  Teve  poemas publicados na  Anthologie  de  la
poésie  brésilienne, edição bilíngüe, organização  de  Renata
Pallottini, Chandeigne, França, 1998; Coletânea de poesia Fui
eu,  organização  de  Eunice Arruda, Escrituras,  São  Paulo,
1998;  Revista Continente Sul Sur, nº 9, Porto Alegre,  1998;
Revista Orion, nº 1, São Paulo, 1998; Jornal RioArtes, nº 25,
Rio  de Janeiro, 1998; Revista Cult, nº 13, São Paulo,  1998;
Revista Anto, nº 3, Portugal, 1998; Revista Inimigo Rumor, nº
4,  Rio de Janeiro, 1998; Revista Poesia Sempre, nº 9, Rio de
Janeiro, 1998; Jornal Correio Brasiliense, 15.03.98;  Revista
Ruptures,  nº 13, Canadá, 1997; Jornal Versus, São Paulo,  n°
17,  1977.  Desde  1990  integra o grupo  Cálamo  de  criação
poética.  Críticas sobre a obra do autor: Paes,  José  Paulo.
Boletim  de saúde. In: O lugar do outro – ensaios,  Topbooks,
Rio  de  Janeiro,  1999;  Pacheco, Ana  Paula.  Revelação  em
negativo. In Revista Cult, nº 24, São Paulo, 1999.
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Balacobaco - O título do seu segundo livro, “A lua  investirá
com  seus chifres”, foi tirado do poema “Varanda”, onde  diz:
“a poesia envenenou-me / já não há mais tempo”. A poesia é  a
salvação ou o começo da perdição? Uma vez poeta sempre poeta?
É uma corrida para dizer tudo enquanto há tempo?
Ruy Proença - Escreve-se menos por saber de antemão sobre  as
coisas,  mais  por buscar compreendê-las. A pergunta  “o  que
você  quis dizer com isso?” é uma pergunta que, no  fundo,  o
poeta  faz  a  si mesmo o tempo todo, sem ter a  resposta  na
ponta  da  língua. Se no fazer poético houvesse o império  da
razão,  não haveria poesia. A poesia é uma espécie de  lógica
às   avessas.  Você  tocou  na  ambigüidade  do  símbolo   do
envenenamento: o que envenena, mata. Mas, paradoxalmente,  se
o  veneno  for  a poesia, a vítima pode estar  “condenada”  a
voltar  ao  paraíso. É um ponto nevrálgico  na  leitura,  sem
dúvida. Igualmente, a idéia da finitude do tempo (“já não  há
mais  tempo”),  contraposta  ao final  (“exatamente  assim  /
passará um milênio”). Isso me faz lembrar uma frase do Joyce:
“com ou sem mim, todos os dias vão ao seu fim”. Mas é preciso
ir  mais  adiante. Associar lua com cebola, cebola com  olho,
olho com coração. Às vezes acontece isso: o poema detona  uma
reação  em  cadeia,  algo parecido com as fissões  nucleares.
Outro dia li que o Roland Barthes dizia que o poema deve  ser
lido  como  uma  cebola. Tem várias camadas  concêntricas  de
significação.  É  preciso ir abrindo  camada  a  camada,  até
chegarmos a alguma compreensão mais globalizante.
A  propósito do verso que deu título ao livro, e já fugindo à
sua  pergunta, é curioso observar o seguinte. Cheguei  a  ele
por  caminhos  tortos. Minha mãe costumava dizer:  é  preciso
segurar  o  touro  pelos chifres, querendo dizer:  é  preciso
enfrentar  a  vida  de frente. Imaginei essa  imagem  da  lua
investindo  com seus chifres, à semelhança de um touro.  Sim,
porque  a poesia pode ser perigosa. Mas como todos os  poetas
já  pensaram  tudo  antes  de nós,  não  deixaram  nada  para
descobrirmos,  aos  poucos  eu, o Fabio  Weintraub  e  outros
amigos, fomos descobrindo várias referências a esse topos,  o
chifre  da  lua, começando por Horácio (“lua, rainha  bicorne
dos  astros”),  passando  por  Alvarenga  Peixoto,  Mallarmé,
Dámaso  Alonso, Garcia Lorca, Sosígenes Costa, Carlos  Felipe
Moisés etc.
B   -   No   poema   “Lugares”  o   escuro   é   oposição   a
praias/estrelas/vidente.  O  que  é  a  escuridão   para   um
escritor? Como é o seu processo de criação/iluminação?
RP  - Em princípio toda criação vem do escuro, assim como vem
do silêncio. Se já estamos prenhes até as tampas de imagens e
sons,  somos obrigados a nos descondicionarmos para novamente
perceber o milagre da vida. A poesia é a memória da chama  de
um  fósforo  na  escuridão. O fogo se apagou, mas  deixou  um
rastro  em algum canto da memória. É a imagem deste fogo,  do
espanto,  do  deslumbramento que  tivemos  enquanto  a  chama
existiu  a  ponto de nos queimar os dedos, que nos dá  alento
para  viver. É portanto algo de sagrado, uma centelha divina,
que  nos  alimenta. E precisamos disso, pois toda  tecnologia
inventada,  todo  conforto, não foram ainda  capazes  de  nos
tirar das cavernas.
No  poema  “Lugares” mencionado, o que me chama a  atenção  é
esse  espaço desconhecido dentro de nós, que chamo  de  alma,
como  poderia  chamar de outra coisa, “o  eu  profundo”,  por
exemplo. É um espaço invisível, nem sequer podemos contar com
a  ajuda de um fósforo para clareá-lo. Nossa única arma então
é nossa intuição, o olho voltado para dentro. E nesse espaço,
talvez  um  cego enxergue mais que um vidente.  Nele,  céu  e
praia  são geograficamente intercambiáveis, o mundo  da  alma
não tem pé nem cabeça. A simetria do poema empresta uma forma
à  voz  do  poema,  e  por aí vai... Duas  imagens  foram  os
estopins deste poema: a primeira, uma amiga contando  de  uma
praia na Bahia, Nova Viçosa, em que a noite e a praia são tão
escuras, que não se consegue distinguir bem a areia reluzente
do céu estrelado. A segunda, uma crônica do Nelson Rodrigues,
descrevendo o fantasma da cegueira em sua vida: na  infância,
a  imagem de um quarteto de músicos cegos tocando na  calçada
em  frente à sua casa; na idade adulta, a constatação trágica
– sua filha era cega.
B - Em “Teve esta sina” o amor não está “nem na miséria e nem
na  opulência”. Qual o lugar que a lírica amorosa tem em seus
livros?
RP - O amor é tudo na vida. Por conseqüência, também em minha
poesia. Há antes de mais nada um amor cósmico, pelos seres do
mundo,  quer sejam eles vivos ou coisas. Falar de uma galinha
é  uma  forma  de  amá-la. Que o leitor não  me  interne  num
manicômio por tão pouco!... Mas há também poemas sobre o amor
stricto sensu. E há também um desassossego, um desencanto  em
relação ao ser humano, que não deixa de ser uma forma de amor
ao  contrário,  isto é, como seria bom se não houvesse  tanta
violência,  tanta  mediocridade, tanta  desigualdade.  Alguns
leitores,  ainda  apegados à poesia  romântica  ou  à  poesia
confessional, estranham só muito raramente encontrarem o “eu”
em  minha poesia. Mas citando o poeta Ronald Polito, que  por
sua  vez  dialoga  com  João Cabral...,  “não  há  nada  mais
subjetivo  do  que  não falar de mim”. É  essa  minha  lírica
amorosa:  o  que  está  solto por aí,  o  que  faz  parte  da
experiência  coletiva  e  não  depende  só  de  mim.   Porque
dificilmente  imaginaria  que uma  lírica  amorosa  puramente
autobiográfica poderia interessar a alguém mais, além de  mim
mesmo e de minha parceira.
B - “Edifício de heróis” é um poema piada? Muita gente torcia
os olhos para o humor no poema, como encara a questão?
RP  -  Não  entendo  bem porque a pergunta  foi  colocada  no
pretérito imperfeito. Posso tranqüilamente imaginar que ainda
haja  pessoas que torçam o nariz... Há muitos escritores  que
tendem  a  sacralizar a poesia. A sacralização ritualista  da
poesia  pela poesia é asfixiante, não passa de uma maquiagem.
O  verdadeiro sagrado respira humor por todos os poros,  e  é
bem  possível  que Deus agora esteja se divertindo  com  essa
conversa. A vida é feita de contradições e o humor  pode  ser
uma  senha para compreendê-las e suportá-las. O humor  é  uma
arma  poderosíssima para enfrentar os desencantos  do  mundo.
Digo uma arma e não a arma. O que estraga é querer transformá-
lo  em  dogma.  É  apenas um caminho  possível  que,  se  bem
utilizado,  pode mitigar nossa dor de existir. Há  diferentes
formas  de  humor,  das mais sutis às mais escrachadas,  e  a
literatura está repleta de exemplos: lato sensu, há humor  em
Machado,  em  Mário de Andrade, em Guimarães Rosa,  em  Paulo
Leminski e em Dora Ferreira da Silva, por paradoxal que  isto
possa parecer no caso de Dora. O importante, é que esse humor
é sempre particular. Em Dora e Rosa aproxima-se do epifânico.
Em  Leminski é mais luciferino. De resto, toda grande  poesia
recente, de Pessoa a Drummond, é recheada de humor. Como  diz
o   Sebastião  Uchoa  Leite,  “radicalmente  sério  /  só   o
cemitério”.
B  -  Qual tipo de ferramenta é o poema? “É preciso quebrá-lo
(...) // destruí-lo / reconstruí-lo?”
RP  -  Octávio  Paz, se não me engano, assim como  Manoel  de
Barros,  dizem que a poesia é uma arte que lida com o inútil.
A poesia não tem valor de mercado. Esta talvez seja sua maior
virtude. Talvez se constitua num dos raros domínios em que  a
ditadura  do  dinheiro não conta, assim  como  todo  processo
civilizatório conta muito pouco. Isso a transforma num  ponto
privilegiado  de  encontro. É quase um  encontro  primordial,
tribal,  no  melhor sentido. Nesse espaço, nossos  ancestrais
dialogam  conosco em pé de igualdade. O poema  pode  ser  uma
ferramenta,  na  medida  em que nos  transporta  para  outros
lugares inusitados. Neste sentido, o poema “O Chevrolet”,  do
livro  “Como  um dia come o outro”, é um desdobramento  desta
temática. São poemas metalingüísticas, que colocam em  cheque
a construção do poema. O poema ao qual você se refere procura
mostrar  o quanto há de trabalho por trás de um poema,  muito
pouco  ou  quase nada nasce espontaneamente. Há  trabalho  de
experiências  pessoais  acumuladas,  leituras,  escritura  do
poema,   retrabalho.   Além  disso,  o   poema   tematiza   o
deslocamento,  o descondicionamento, para criar  um  ambiente
propício à desautomatização de nossas idéias, comportamentos,
gestos  etc.  Se formos pensar no tanto que  há  de  suor  na
composição de um poema ou texto literário, talvez mudemos  de
idéia com relação a um Deus bem humorado.
B - Em tempo onde a metáfora e a linguagem conotativa não são
alicerces  tão  comuns  de uma dicção poética,  você  utiliza
estes  “motores”  para  construir  os  seus  poemas.  Qual  a
importância da tradição? Quais são os poetas e escritores que
admira?
RP - Desculpe-me, mas dizer que a linguagem conotativa não  é
um  alicerce  da  poesia  me parece  um  grande  equívoco.  A
linguagem  conotativa  se  confunde  com  a  própria   função
poética, tão procurada pelos teóricos da linguagem. De resto,
nenhuma  linguagem  é  puramente  conotativa,  nem  puramente
denotativa. O que talvez você tenha razão em afirmar,  é  que
determinados poetas são menos metafóricos. Mas são raros e  é
preciso  relativizar  esta afirmação. Mesmo  em  poetas  como
Chico  Alvim,  onde a metáfora imagética é  menos  freqüente,
ainda assim se faz presente. Além disso, um poeta nunca  é  o
mesmo  ao longo da vida, e pode ser que o próprio Chico Alvim
não se reconheça neste juízo.
Se com sua pergunta você quis dizer que minha poética é muito
imagética,  concordo. E sinceramente, não sei  bem  porque  é
assim. A visão é um sentido hegemônico em nós, caso contrário
ainda  estaríamos  farejando o chão e  cheirando  na  rua  as
partes  pudendas das pessoas. O que, aliás,  não  seria  nada
mal...
     
Quanto  à segunda parte da questão, sinto que muitos  de  nós
desprezamos a tradição quando começamos a escrever, arrogando-
nos  soberbamente  a propriedade de sermos originais.  É  uma
bobagem! Quando nada conhecemos, quando nossa referência é  o
nada, nos superestimamos, porque diante do zero tudo passa  a
ser  original...  Quanto  mais ficamos  sabendo  das  coisas,
quanto  mais  lemos,  mais vamos tendo consciência  do  nosso
tamanho reduzido. Corremos até o risco de descobrir que nosso
lugar  é  tão  pequeno, quem sabe menor  que  uma  cabeça  de
alfinete,  que  desistamos  da  empreitada.  Pode  muito  bem
ocorrer  este  fato. Então teremos descoberto  que  tudo  não
passou de vaidade. Mas até chegar esse dia... Depois, cá  pra
nós,  mesmo que não déssemos a mínima pela tradição, seríamos
dela  reféns  à  nossa revelia. Estou com Ana Cristina  Cesar
quando  diz:  “podemos optar pela estética da  preguiça,  mas
nunca pela preguiça da estética”.
     
Eleger  os  poetas e escritores de nossa admiração  é  tarefa
ingrata  e  falaciosa.  Poderemos  estar  mentindo  para  nós
mesmos. Para a poesia, uma bituca de cigarro é tão importante
quanto  um  grande amor. Um catecismo do Carlos  Zéfiro,  tão
importante  quanto um Bernardo Soares. E depois, serão  três,
trinta  ou  trezentos  e cinquenta, como  preferia  Mário  de
Andrade? Nossa pretensão não tem limites: queremos no  mínimo
o  absoluto... Minhas leituras não diferem muito das de todos
os  poetas...  E  a  vida inteira é  pouca  para  ler  o  que
desejamos. Espero que ao morrer me deixem passar na alfândega
com todos os livros que quero ler e ainda não tive tempo.  Se
me limitarem a bagagem a 20 ou 30 kg, tratarei de levar o que
já  li:  Guimarães Rosa, Pessoa, Borges, Drummond,  Bandeira,
Jorge de Lima, Murilo Mendes, Sosígenes, João Cabral, José J.
Veiga,  além, é claro, de alguns livros dos amigos.  Primeiro
porque  gosto deles; depois, porque odiaria que falassem  mal
de  mim  na  minha ausência... E ia me esquecendo:  também  o
famoso  livro “A criação das criaturas”, do professor  Tacus,
que não era professor, e muito menos Tacus.
B  -  No seu terceiro livro “Como um dia come o outro” há uma
radicalização da temática rumando ao absurdo.  Longe  de  ser
surrealista,  como  assinala Fernando  Paixão  na  orelha  do
livro,  qual o lugar do absurdo em sua poesia? É  um  projeto
literário, uma escolha?
RP  - É possível que os leitores vejam na minha poesia o  que
eu  próprio não vejo. Eu jamais diria que minha poesia é  uma
poesia  do absurdo, embora reconheça que em alguns  poemas  o
fantástico,  no  que este tem de síntese entre  o  real  e  o
imaginário,  esteja presente. Pessoalmente, vejo meus  textos
deste último livro mais como uma pequena cosmogonia, ou, quem
sabe,  um  pequeno  bestiário. Nele estão  presentes  animais
reais  e animais mitológicos. O homem também faz parte  desta
paisagem,  embora  de  modo  menos  prestigioso.  Agora,  não
gostaria que o livro fosse reduzido a esse esquema. Cada tema
abordado é usado para falar do mundo, segundo uma determinada
visão.  Há,  assim,  temas variados  que  se  entrecruzam:  a
infância, o medo, o poder, a miséria, o amor... E uma questão
de  fundo,  que  é uma tentativa desesperada  de  reencontrar
Pasárgada.  A vida civil é muito opressora; ela  é  que  é  o
verdadeiro absurdo.
Quanto  ao  projeto literário, se for pensado como um  grande
sistema  pré-concebido, não tenho nada a  ver  com  ele.  Mal
consigo ter um projeto para o dia seguinte. Outra coisa é que
um  livro  significa uma escolha, segundo  alguns  critérios.
Quero dizer que o que está no livro não reflete totalmente  o
trabalho de criação. Outras ramificações, outras experiências
são  exploradas paralelamente. Vistos a posteriori, uma parte
dos  textos engavetados não passam de simples exercícios. Mas
quem   sabe   se  entre  eles  não  há  também   poemas   que
eventualmente sejam o início de um outro livro,  adiante,  de
dicção bem diferente da que aflorou neste...
B  - Você gosta de números! Há números por todos os lados  em
sua  obra.  Gostar da matemática aproximou  o  engenheiro  ao
construtor poético?
RP - Primeiramente, gostaria de fazer uma restrição quanto ao
enunciado da sua pergunta. Quando você diz que em meus livros
“há  números por todos os lados” você está sendo hiperbólico.
Os  desavisados  podem  pensar que se  trata  de  manuais  de
matemática... Bem joeiradas as coisas, salvo 2 ou 3 poemas em
que  os  números  entram propositalmente  em  profusão  –  eu
citaria  “mesmo que tivesse cem bocas”, em “A  lua  investirá
com seus chifres”, e “Balada”, em “Como um dia come o outro”,
a  aparição  dos números é bastante comedida e pedestre.  Mas
afinal,  os  números  fazem ou não parte de  nosso  cotidiano
tanto  quanto  as  palavras?  Por que  discriminá-los?  Seria
desprezar  uma série de talentos acumulados, das civilizações
antigas  –  fenícios, árabes, gregos etc. – até nossos  dias,
passando  por  muitos filósofos. Quando digo que  os  números
fazem  parte  do  dia-a-dia tanto quanto as  palavras,  quero
dizer  que  não se vai a uma padaria comprar pão e leite  sem
que  se faça uma conta. Ademais, por ironia ou não, os poetas
costumam estar entre os mais viciados em números. Faz  apenas
cerca  de  um  século  e  meio que a poesia  metrificada  foi
contestada  e, mesmo assim, continuará talvez resistindo  por
séculos  afora. Isso vem ao encontro do que digo. Aliás,  nas
artes,  a  matemática não é privilégio da  poesia:  a  música
erudita, a pintura geométrica (um Escher, por exemplo), fazem
igualmente largo uso de suas noções.
Após todas essas considerações, posso responder objetivamente
à sua pergunta. Embora reconheça que a matemática, assim como
a filosofia, a história, a teoria literária e outras áreas do
conhecimento concorram para enriquecer a construção do poema,
eu diria que, para mim, num primeiro momento, escrever poesia
foi  uma reação vital contra o predomínio das ciências  ditas
exatas.
Hoje em dia, vendo as coisas em retrospectiva, imagino que há
duas  noções  da minha formação específica de  engenheiro  de
minas  –  e  mais  particularmente ainda como  engenheiro  de
beneficiamento   de   minérios  –,  que   de   alguma   forma
transparecem em meu trabalho. A primeira delas é a  idéia  de
concentração,  de depuração: fazer o máximo de  esforço  para
separar o mineral útil da ganga, até obter um produto o  mais
concentrado  possível. A segunda idéia é  a  noção  do  tempo
geológico   que,  para  nossa  escala,  é  quase   um   tempo
metafísico, e, por isso, se aproxima de um tempo sagrado.
B  -  “A  cerejeira  / poderá // um dia  //  provar  de  suas
cerejas”  é  um belo poema curto. Como encara a vertente  que
avalia por tamanho a qualidade de uma obra?
RP  -  Nunca ouvi falar dessa vertente. Felizmente não existe
essa fita métrica mágica capaz de avaliar um poema. Isso  nos
obriga a estudar, pesquisar, refletir, lançar o olhar curioso
sobre  as  coisas.  Não queremos ser o balconista  que  vende
tecidos  a  metro  no  balcão.  Queremos  algo  maior,   como
desorganizar o mundo para reconstruí-lo à nossa maneira.
O bom poema é aquele que é conciso. Isso nada tem a ver com o
tamanho   do  poema.  Um  poema  longo  como  “Os  lusíadas”,
guardadas  as  devidas  proporções, é um  poema  tão  conciso
quanto o “Amor / humor” de Oswald de Andrade, ou “Cronologia”
de José Paulo Paes (“A.C. / D.C. / W.C.”). O que importa, é a
velha  máxima:  dizer o máximo no mínimo.  Cada  qual  saberá
dizer  até  onde  vai o seu talento para  escrever  um  poema
longo, sem afrouxar o verbo no meio do caminho. Além do  que,
muitas  vezes, um poema longo é a somatória de vários  poemas
menores. Incluo nessa categoria “Invenção de Orfeu” de  Jorge
de Lima.
B  -  Deus anda cada vez mais científico? Em que ciência  Ele
existe?
RP  -  Não me julgo com autoridade suficiente para avaliar  a
existência  de  Deus. Se existe, o abandonamos pelo  caminho.
Principalmente aquele patriarcal, onipotente. Em nossa  ânsia
de  dominar e domar a natureza, fizemos Deus sair de cena. Na
história da filosofia podemos acompanhar o seu declínio. Hoje
vivemos um mundo feito de fragmentos. Deus faz muita falta ao
poeta. O poeta é um ser atemporal. Está mais bem representado
pelos alquimistas do que pelos cientistas contemporâneos. Mas
somos  tão bons em ciência, que freqüentemente nos espantamos
com   nossas   criações.  Em  certo  sentido,  nos   tornamos
superiores aos deuses, e hoje em dia eles se sentam em bancos
escolares  para  aprender conosco. Mas nada seríamos  se  não
houvesse  uma  centelha divina em cada um de nós.  E,  se  em
matéria  de  tecnologia fomos tão longe, em  outros  assuntos
somos  um zero à esquerda. É por isso que, como já disse,  se
corrigirmos nosso acentuado grau de miopia, veremos que ainda
vivemos numa caverna escura.
B - Como é pertencer ao grupo de estudos “Cálamo”?
RP - O objetivo primeiro do Cálamo é ser um grupo de criação.
Todo   o   mais   –  pesquisa,  estudo,  divulgação   –   são
conseqüência.  Trata-se de um trabalho de criação  individual
sob  estímulos que são partilhados. Neste sentido,  até  onde
sei, o Cálamo é uma experiência inédita. Sabemos de grupos de
pintores,  como os do grupo Santa Helena, que saíam  a  campo
com  seus  cavaletes  para pintarem sob  um  mesmo  estímulo.
Outros  domínios  artísticos dão  abertura  para  o  trabalho
conjunto, como o teatro, o cinema, a música. Já com a criação
literária,  isso  é  muito  difícil  de  ocorrer.   Temos   a
experiência  de Murilo Mendes com Jorge de Lima em  “Tempo  e
eternidade”,  mas  é um caso isolado. Os  escritores  são  em
geral  ciosos  de  sua privatividade, de sua  intimidade.  Na
verdade,  compensam  o ato da criação  isolada  –  a  solidão
voluntária  –  comunicando-se com alguns  de  seus  pares.  O
escritor  que  não  troca experiências, provavelmente  estará
perdendo,  mais  do que ganhando, em termos  de  vivência.  O
trabalho  realizado no grupo, pode não resultar em nada  mais
do  que  um  esboço ou pode, até, resultar num bom  poema.  É
importante frisar que o trabalho em grupo em hipótese  alguma
exime  os  escritores  de seu trabalho  individual.  As  duas
coisas  se  potenciam e, no frigir dos ovos, acredito  que  o
resultado é um enriquecimento dos trabalhos pessoais. Estamos
juntos  há praticamente 10 anos. Há pessoas no grupo  que  já
publicaram mais de um livro, como é o meu caso e o  do  Fabio
Weintraub, outras publicaram o primeiro, como o Cesar  Garcia
Lima  e  o  Luiz  Gonzaga Neto, e outras estão  prontas  para
estrear.  Sem  o  trabalho em grupo,  talvez  não  tivéssemos
chegado nem na metade do caminho de onde estamos.
B  - Como encarou a matéria da revista Veja que ridicularizou
e ironizou poetas?
RP  -  É um pouco sintomático ver um jornalista como o Carlos
Graieb,  que já fez boas críticas de poesia no tempo  em  que
trabalhava  para o Estadão, entre elas da Hilda  Hilst  e  do
próprio  Carlito  Azevedo, que aparece na reportagem,  baixar
tanto  o nível. Infelizmente algumas corporações hoje em  dia
fazem  questão de quebrar a espinha de seus servidores,  para
não dizer servos. Quero acreditar que o próprio Carlos Graieb
não  acredita  no que escreveu. O termômetro de  uma  revista
como essa, que, do jeito que está, está mais para “Ratinho no
lixão”, é mercadológico. O que estou dizendo não justifica  a
postura  do jornalista e não o exime de sua responsabilidade.
Mas  vamos ao que interessa: nossa melhor resposta para  esse
tipo de imprensa é nossa poesia.
B - Você tem alguma epígrafe que o acompanhe?
RP  - Não, não tenho. Mas como gosto muito do Aníbal Machado,
aproveito  para  citar uma epígrafe que uso  na  abertura  do
livro  “A lua investirá com seus chifres”: “Dizei-me se  ando
longe  da  guitarra onde nasci.” É um pouco uma profissão  de
fé.
B - Qual o papel do escritor na sociedade?
RP  - O Drummond, que viveu numa época em que grandes utopias
ainda  eram  plausíveis, a uma certa altura de sua  vida,  na
virada  dos  anos  50,  percebeu que, como  escritor,  jamais
conseguiria influir na máquina do mundo como gostaria.  Perto
dos  políticos  profissionais,  sentia-se  como  uma  criança
desamparada.  Tratou de limitar-se àquilo  que  sabia  fazer,
dando o melhor de si.
     
Acho   um  tanto  paradigmático  este  exemplo.  Posso  estar
redondamente enganado, sendo reducionista, mas  acho  que  se
cada  um  –  o  escritor, o guarda-noturno,  o  motorista  de
ônibus,  o  professor, o médico, o advogado, o jornalista,  o
jornaleiro,  o  lixeiro – dessem o melhor de si  naquilo  que
fazem,  o  mundo já seria um pouco melhor do  que  é.  Talvez
conseguíssemos  até  ser  melhor representados  no  Congresso
Nacional.

 

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