ENTREVISTA COM VERA LÚCIA DE OLIVEIRA

 

 

 

Vera Lúcia de Oliveira nasceu em Cândido Mota - SP, em 1958.

É formada em Letras pela Faculdade de Ciências e Letras da UNESP (1981) e em Línguas e Literaturas Estrangeiras Modernas pela Università degli Studi di Perugia (1991).  Em 1983 recebeu bolsa de estudo do Ministério do Exterior para especializar-se na Itália, onde atualmente reside. Concluiu o Doutoramento em Literatura Brasileira na Università degli Studi di Palermo.

É autora de numerosos trabalhos sobre poetas contemporâneos publicados em revistas brasileiras, portuguesas e italianas, como Letteratura d‘America (Roma), Revista Internacional de Língua Portuguesa (Lisboa), Colóquio-Letras (Lisboa), D.O. Leitura (São Paulo), Nicolau (Curitiba), Revista de Letras da UNESP (São Paulo), Poesia Sempre (Rio de Janeiro), Insieme (São Paulo), Boca Bilingue (Lisboa), Annali della Facoltà di Lettere e Filosofia (Perugia), Tratti (Faenza- Itália), Andes (Roma), Cuadernos de Traduccion e Interpretacion (Barcelona), Palaver (Lecce), Ricerca Research Recherche (Lecce), Palavra (Lisboa), etc.

Foi premiada em diversos concursos de poesia e contos e participou de antologias no Brasil e no exterior, como Veia Poética (São Paulo, 1981), Água I (São Paulo, 1981), Cinque Terre (La Spezia - Itália, 1988), David 1958-88 (Marina di Carrara - Itália, 1989), Collages (Roma, 1989),  Antologia del Premio Nazionale Sandro Penna (Perugia - Itália, 1991), Antologia da Nova Poesia Brasileira, org, por Olga Savary (Rio de Janeiro, 1992), Bambini (Perugia, 1993), L’odore dei limoni (Perugia, 1994), e outras. Tem poemas publicados no Brasil, Argentina, Itália, Espanha e Portugal.

Atualmente ensina “Língua e Literatura Portuguesa” e “História da Cultura Brasileira” na Università degli Studi di Lecce. Acaba de ministrar um curso de Pós-graduação sobre a poesia modernista, na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP - Campus de Assis.

Livros publicados A porta range no fim do corredor, Scortecci, São Paulo, 1983. Geografie d’Ombra, Fonèma, Veneza, 1989.       Pedaços/Pezzi, Etruria, Cortona, 1992. Tempo de doer/Tempo di soffrire, Pellicani Editore, Roma, 1998.  Poesia, mito e storia nel Modernismo brasiliano, Guerra Edizioni, Perugia, 2000.

 



ENTREVISTA

 

Uma entrevista em 1997.

1.Em entrevista a  Raul Henriques Maimone você disse: “Penso que a poesia é uma atividade muito lenta, que requer decantação, reflexão. É uma viagem vertiginosa em vertical.” Fale-nos dessa verticalidade? Quais as marcas que a poesia deixa? Deixa cicatrizes ou feridas ou cicatriza as feridas?

 

A poesia é uma viagem em vertical porque o poeta trabalha com o que está em profundidade, com o que fica por muito tempo sendo burilado pelo sangue, pelas águas agitadas ou calmas da alma. Poesia não é fotografia da realidade. Poesia nasce da reflexão, do vivido e sofrido, do que se freqüenta com todos os sentidos, ou do que nos investe, nos arrasta como avalanche levando para dentro seus detritos. Tudo isso entra na poesia, mas entra decantado, digerido, assimilado. Neste sentido, acho que a poesia cicatriza as feridas. Eu tenho um livro novo, que será publicado este ano na Itália, que se chama “La guarigione”, um título que é difícil traduzir em português, mas que significa mais ou menos isso:  cura, cicatrização das feridas, da memória. Para mim, um das funções da poesia é essa, tanto para o autor quanto para o leitor.

 

 

2.O que a Itália e toda a sua tradição poética tem que fez você residir na Itália? Por que escreve em português?

 

A Itália tem uma grande tradição poética, a própria língua italiana nasceu da poesia. Praticamente primeiro nasceram Dante e Petrarca, que plasmaram a língua, que inventaram uma língua de poesia. Depois, em função da força, da beleza, do prestígio desta poesia é que o florentino acabou se impondo sobre as outras línguas da península, tornando-se língua oficial. É nesse sentido que eu digo que primeiro nasceu a poesia, depois todas as outras formas de comunicação nessa língua. Acho que um intelectual hoje não pode ignorar os grandes nomes da poesia e da literatura italiana. Como ignorar um Ungaretti, um Montale, um Pasolini, um Quasimodo? Ou mesmo um Sergio Corazzini, que tanto influenciou Manuel Bandeira? Ou um Giorgio Caproni, um dos maiores poetas italianos deste século? Isso sem citar os poetas do passado, que são tantos. A Itália sempre me atraiu. Comecei a estudar o italiano na Universidade, como segunda língua. Então, descobri Ungaretti e abandonei o inglês pelo italiano. Foi uma paixão. Depois obtive uma bolsa do Ministério do Exterior italiano e pude freqüentar um curso de especialização na Itália. Aí começa a minha vida neste país, pois foi aqui, em Perugia, que conheci o meu marido, que é italiano. Passei a viver aqui, nesta incrível cidade etrusca, romana, medieval, enfim moderna, e continuei estudando, freqüentei outro curso universitário e o doutoramento. Hoje ensino língua e literatura portuguesa e brasileira na Universidade de Lecce.

Você me pergunta porque escrevo em português. Porque é a minha língua, porque eu aprendi a pensar e a sentir em português. E nunca mais vou perder isso, graças a Deus. Gosto de ter aprendido a nomear o mundo em português, que é uma língua onde tem tanto espaço para um relacionamento afetivo com as coisas, com a realidade, com as pessoas, muito mais do que o italiano. Até os verbos nós usamos no diminutivo, veja se é possível. O italiano é mais austero, áulico. Mas o italiano tem essa aura poética e também gosto que o italiano seja a outra língua da minha interioridade. As duas convivem, tem coisas que só posso dizer em português, outras que só posso dizer em italiano. Há palavras, expressões, sentimentos absolutamente intraduzíveis de uma língua para a outra. Eu hoje escrevo em português e em italiano, com prevalência do português para a poesia. Esse relacionamento entre as duas língua é, no entanto, muito complicado. Quer um exemplo? Escrevi no ano passado um livro inteiramente em italiano. Veio assim, de repente. Eu não sou desses poetas que escrevem sempre, ao contrário, escrevo pouco, passo meses sem escrever um poema. De repente, começo um livro e não paro enquanto o livro não está terminado. É o meu método de trabalho, se é que isso é um método. Então, brotaram um versinhos em italiano, em redondilha maior, que é um dos metros característicos da língua portuguesa, mas que não fazem parte da tradição italiana, onde o hendecassílabo é o verso por excelência de todos os grandes poetas do passado e até do presente. Pois comecei com estes versinhos e acabei tão envolvida, tomada por tudo o que ia saindo de dentro, pulando para o papel, um poema depois de outro, numa frenesi que durou uma semana. Parecia que o livro inteiro já estava escrito, e em italiano. Mas o interessante é que a forma escolhida tinha mais a ver com o português, como também o tema do livro, em que retomo uma experiência vivida, sentida no Brasil, ou seja um período em que fiz psicanálise, onde reelaborei o relacionamento com minha mãe. Eu dediquei este livro a ela, mas o escrevi em italiano, uma língua que ela não conhece. É como se, inconscientemente, eu não quisesse que ela lesse esses  poemas. Mas esse é só um exemplo da complexidade do relacionamento entre as duas línguas.

Em maio, revolvi mandar este livro, que estava na gaveta, para um concurso nacional aqui na Itália, o “Prêmio de Poesia de Senigallia”, e acabei ficando com o primeiro prêmio. O livro está agora no prelo, pois este concurso prevê a publicação da obra vencedora.

 

Sobre a poesia atual:

3.Caminhando na pergunta alheia, a poesia estaria caminhando para a mudez?

 

Não acho. Os poetas têm tanto a dizer. Caminhamos é para a surdez completa da sociedade, que não dá mais nenhum valor para a poesia, que não quer pensar, que tem medo de olhar para dentro das coisas e de si mesma. Mas eu não acho que os poetas vão parar de escrever por isso. Tantos poetas foram totalmente ignorados, outros ridicularizados. Ontem estava lendo uns poemas de Cesário Verde, esse grande poeta português que morreu desconhecido e praticamente inédito. Ele publicou vários textos nos jornais da época, mais ninguém deu importância, ao contrário, ele foi contestado pelos críticos de então, que não compreenderam a novidade da sua belíssima poesia. Ele vivia tão frustrado, coitado, que dizia que não iria mais escrever, que abandonaria para sempre a literatura. Mas nunca a abandonou e escreveu até o fim. Graças a isso nós hoje podemos nos enriquecer com o que ele deixou, aquelas palavras onde a vida escorre em jorros, onde mais de cem anos depois nós ainda nos podemos reconhecer, como se ele tivesse escrito para nós, também para os homens e mulheres de hoje e de sempre.

 

4.A poesia hoje se divide em quem faz os poemas com mais e quem faz os poemas com menos palavras?

 

Não, se divide em quem faz os poemas com palavras vazias e quem o faz com palavras densas, pesadas de vida, com palavras que arrastam pele, carne, sangue das coisas para dentro do poema. Entre poesia leve e poesia pesada. Se existisse uma balança abstrata que pesasse a poesia, descobriríamos um poema verdadeiro. Quanto pesam os breves poemas de José Paulo Paes ou do Leminski? Algumas toneladas. Porque eles puseram tanta vida ali dentro que cada palavra palpita, respira, escorrega da página para a alma da gente, raspando por onde passa.

 

5.“Estou de novo vivendo uma grande inquietação, uma busca de contato com o que existe de intenso e verdadeiro, concomitante ao impulso sempre mais forte de refletir sobre a história, destrinçar seus fios, de virar do avesso sistemas, leis, ideologias que marcam de violência nossa existência.” A necessidade de novos paradigmas poéticos morreu com a pós-modernidade? Gerald Thomas diz que estamos vivendo uma nova renascença. Concorda? Precisamos de vanguarda?

 

Não sei se precisamos de vanguarda e espero que estejamos vivendo uma nova renascença, no sentido de uma revitalização da poesia, da compreensão da sua importância, do seu valor cognoscitivo na história. Como dizia Pound, os poetas são as antenas da sociedade, porque captam transformações, tendências, denunciam perigos, alertam. Quanto mais a sociedade marginaliza a poesia, mais precisa dela. Marginaliza porque não quer pôr em discussão a sua organização injusta, as suas leis rígidas e mecânicas, onde só a economia, o mercado contam e decidem os parâmetros e as possibilidades de vida de milhões de pessoas. Você já viu algum economista que é poeta? Eu até gostaria de conhecer um.

 

6.Há uma crise de crítica no Brasil. Os críticos só chovem no molhado. Só há trabalhos e teses universitárias sobre Guimarães Rosa, Cabral, Machado, Drummond. O que devemos falar sobre as gerações mais atuais?

 

Concordo que não existe crítica no Brasil, ou não existe sobre as últimas gerações. Você publica um livro, e ninguém comenta, dificilmente sai uma resenha, e se sai, não é em jornal de grande difusão, mas em jornais ou revistas marginais em relação ao sistema. Ninguém arrisca. Como os jovens podem aprender desta forma? Também não adianta mandar os livros para os jornais, para os críticos, pois a maior parte parece não tomar conhecimento. Olha, escrever uma tese sobre um autor ainda não estudado é um grande risco, os próprios alunos recusam este tipo de trabalho. Sei por experiência própria, com os meus alunos. Mas eu digo: é um desafio, vocês vão abrir caminho, vão propor algo de novo. Parece que as pessoas tem medo do que é novo...

Eu fico pensando no que teria sido de Drummond sem os conselhos, o apoio de Mário de Andrade, que já era um poeta e um crítico famoso, naquela época. Hoje essa generosidade, essa camaradagem não existe mais, é cada um por si. Um poeta extremamente generoso era o José Paulo Paes, do qual sinto imensa falta. Mas ele não era só poeta, era antes de tudo um homem, uma pessoa de grande humanidade.

 

7.Qual a imagem literária o Brasil tem na Itália, com perdão da cacofonia?

 

Literariamente o Brasil é muito pouco conhecido aqui. Só se estuda a nossa literatura nos cursos de línguas estrangeiras e, mesmo assim, no âmbito das literaturas lusófonas, onde a literatura portuguesa tem a prioridade, também porque estamos na Europa e Portugal é um país europeu.

Os leitores mais curiosos conhecem Jorge Amado e Paulo Coelho. Raros os que conhecem Guimarães Rosa, que entretanto tem quase toda a obra traduzida para o italiano, aliás em tradução excelente. Entre os poetas, alguns conhecem Vinícius de Moraes (mais pelas músicas que pela poesia), alguns conhecem Drummond.

O Brasil é mais conhecido pelos seus aspectos considerados exóticos (carnaval, futebol, samba, praias, belas mulatas). A maior parte das pessoas fica nisso, nesta imagem estereotipada. Eu, aliás, provoco muito os meus alunos do curso de História da Cultura Brasileira. Desmonto com eles esses lugares comuns, aos pouquinhos, através do estudo da nossa cultura, da nossa história, da nossa literatura, vou demolindo essa construção ideológica e eles vão descobrindo o Brasil como realmente é, com todos os defeitos e qualidades. E eles se entusiasmam, querem ir à fundo, perguntam, pesquisam. É gratificante seguir este processo.

 

 

Sobre poemas:

8.“Sou poeta da cidade magra/da cidade que não/caminha.” Sócrates caminhava. No filme Paris Texas o protagonista anda e anda. O que é o andar? A intelectualidade cria andando? Uma cidade que não caminha é uma cidade que não progride?

 

Não é preciso andar para progredir. A poesia, por exemplo, não é progresso. Tem tanta coisa que não é progresso e nem por isso é negativo, muito pelo contrário. A verticalidade é progresso? No entanto, é o processo fundamental do pensamento, da criação artística e literária. Esse “caminhar” do poema que você cita é um andar de outra forma, aliás, é uma falta de andar para o essencial, para onde está a raiz das coisas, o cerne do tempo e da memória, o osso da consciência. Assim eu sentia a cidade em que cresci, sem essa profundidade. Por isso tinha uma raiva surda de tudo o que ficava à tona, que boiava na superfície anônima das ruas e praças, onde eu cavoucava sempre e por toda parte com meus sentido, meus olhos, minha consciência, em busca das convulsões subterrâneas, ou simplesmente do fluxo misterioso de vida que passava dentro das pessoas.

 

9.“Invento olhos e palavras / dentro de mim as coisas não sobrevivem.” A metalinguagem é o futuro da poesia? Qual terreno inóspito é sua profundidade?

 

Não acho que esse seja o futuro da poesia. Olhar para o próprio umbigo não pode ser o futuro de nada. Aliás, eu acho que a poesia hoje já superou isso, basta ver o movimento internacional da poesia, a volta ao lirismo, aos sentimentos, quase um “neo-romantismo”, que não renega nenhuma das conquistas do século XX, mas que as supera. Veja no Brasil, veja em Portugal, veja na Itália as novas tendências, se não são de superação da metalinguagem. E ainda bem. Não se suportava mais a aridez do poeta falando da poesia. Enunciar a própria poética, relevar de vez em quando ao leitor alguns dos segredos do próprio laboratório não é metalingagem, mas honestidade para com o leitor. Mas ficar o tempo todo naquilo, andando em volta das mesmas coisas, acho uma grande chatice e amolação.

 

10.Num poema você nos diz: “tenho tantos pedaços/que sou quase infinita.” Esta infinidade é positiva? É um dever devir?

 

Positiva não é, mas faz parte da nossa realidade. Quando escrevi esse poema citado por você, tinha nitidamente a consciência desta fragmentação. No meu caso, também ligada à minha biografia, ao meu lacerar-se entre duas culturas, duas línguas. Mas o nosso tempo é assim, a nossa realidade é extremamente fragmentada e fragmentária. Está ficando cada vez mais difícil reunir os pedacinhos do que somos, dos tantos que somos, um em casa, outro na rua, outro no trabalho, outro diante do espelho e assim por diante. E temos tantos desejos e sonhos desencontrados, tantos impulsos que nos conduzem a metas opostas. Neste meu poema, eu olho para tudo isso com ironia, que é, às vezes, o único modo de superar circunstâncias ou situações que nos parecem dramáticas sem cair no trágico.

 

11.Kafka e a maioria dos escritores tinha uma relação conflituosa com a figura paterna. “os filhos dos filhos/estão decidindo se viverás ou não/para concebê-los.” Freud explica?

 

Não tem uma teoria válida para todos, cada um tem um tipo de relacionamento com o pai, que pode ser maravilhoso ou traumático. E se foi traumático, marca para sempre, não tem Freud que explique, não tem terapia que cure. Parece que cura, ma um dia, de repente, vai lá, acontece alguma coisa, e a memória retira de novo alguma ferida escondida, ou você sente que dói alguma cicatriz. Tudo depende da ferida. E da cicatriz. Tem escritor que fica a vida inteira elaborando, montando e desmontando aquela dor longínqua que o impede de ser feliz. Mas tem outros que nem tocam este aspecto e é claro que não podemos generalizar.

 

12.Sobre Miro você nos diz que “e o olho absorto de Deus/se distrai da nova gênese.” O poeta é hoje um indivíduo capaz de teorizar sobre uma gama enorme de assuntos? Recentemente Décio Pignatari disse que Drummond não era um gênio e nem um grande intelectual. O que é necessário para ser poeta?

 

Não sei, até hoje ainda estou querendo saber. Fico perscrutando dentro de mim para colher o momento da poesia, e nunca é quando espero. Para Cabral a poesia é construção, junção de um tijolinho sobre o outro, ordenadamente, matematicamente quase. Acho que Bandeira era mais honesto, quando dizia que não sabia de onde vinha a poesia, mas que ele a aceitava, humildemente, de onde quer que fosse que essa jorrasse. Eu também penso assim. Basta que jorre de vez em quando, que nos dê essa sensação maravilhosa de ter posto, por um breve instante, as mãos nesse fio misterioso e subterrâneo que escorre, como a eletricidade, e que é a vida.

 

 

Sobre internet:

13.Qual uso faz da internet?

 

Uso o correio eletrônico, tenho muito amigos, em várias partes do mundo que conheço só através da internet. E com alguns troco correspondência diária. Acho isso maravilhoso.

 

14.Como os meios de comunicação, falo da televisão, influenciam a população italiana?

 

Influenciam muito, como no Brasil, aliás. Lê-se muito pouco na Itália, infelizmente. É um dos países europeus em que se lê menos. Então, é natural que a televisão ocupe todo este espaço. E é uma televisão muito ruim, vulgar como a do Brasil. Salvam-se alguns bons programas culturais.

 

15.Fale sobre a sua página.

 

 A página foi elaborada pelo meu marido, pois eu não teria competência para tanto. Ele, ao contrário, é informático, formado pela Universidade de Pisa, uma das melhores neste campo na Itália. A nossa página foi construída como um nosso cartão de visita. De fato, tem essa característica de unir informática e poesia, quando todo mundo pensa que estas duas realidades tenham de estar separadas. Mas na nossa página estão juntas, cada uma com seu espaço, sua importância e dimensão, uma sem sufocar a outra. Pelo menos é o que eu acho. Muitas pessoas me escreveram dizendo que acharam original esta união inusitada.

 

16.Qual a importância de ter um site literário?

 

Ainda não sei bem. Em teoria, muita gente interessante poderia visitá-lo, e isto ocorre tantas vezes, mas acontece também que passa por ali também gente chatíssima, que aproveita para ficar enviando mensagens publicitárias, gente que usa seu endereço só para isso. É o mundo da Internet. Tem de tudo, trigo e joio. 

 

Internas:

17.Tem algum mote?

 

Não tenho mote, mas tento viver todos os minutos da minha vida da forma mais intensa possível, sempre presente com todos os sentidos, não fugindo nem da dor, por maior que seja, nem da alegria, por mais transitória que possa ser. E observando, assimilando antropofagicamente, come diria Oswald de Andrade. Eu, aliás, admiro muito este poeta, porque ele vivia com todas as antenas sempre prontas a captar o real, a vida, com tudo o que ela contém de belo e de trágico.

 

18.Qual o papel do escritor na sociedade?

 

O papel é ético, é o de escrever com a maior honestidade e humildade possíveis. E é também o da resistência, hoje, contra a desumanização, a despersonalização, a fragmentação da realidade. Sei que é uma grande responsabilidade, uma utopia, mas cada um faz o seu pouco, cuida do seu pedacinho de jardim, que para algo deve servir. Parece que não serve, mas serve. A arte existe para isso e sem ela perderíamos o sentido das coisas, a beleza e a intensidade dos momentos vividos, a riqueza de cada instante de amor ou mesmo de sofrimento, a consciência da nossa fragilidade, da nossa sensibilidade. 


Poemas de Vera Lúcia de Oliveira

 

Do livro Geografie d’Ombra, Fonèma, Veneza, 1989.

 

 

Rua de comércio

 

 

Sou poeta da cidade magra

da cidade que não

caminha

sou dessa planicidade

sou da violência das vidas

poeta da cidade que afunda casas

e pessoas

sou da puta da cidade que só tem

superfície

 

amanheço todo dia nua e estreita

como uma rua de comércio


Profano as coisas

 

 

Profano as coisas por amor

crio rachaduras

invento olhos e palavras

dentro de mim as coisas não sobrevivem

grudam desesperadas no muro

e rudes

no tempo

rabiscam formas

de lucidez


O mar e o brejo

 

                           Para Gladys

 

Não é no mar que deponho as redes

não é âncora

o maciço do mar

o mar não projeta o gesso das urnas

o mar rasga as cicatrizes

   corrói as agulhas

 

Não conhece demora o mar

 

Não foi olhando o mar que aprendi a retalhar as palavras

no silêncio pesado da casa

cavoucando na cidade

as doenças do charco

sonhando cemitérios menores para sofrear a evasão

das coisas

               da seiva

 

Buracos que as goteiras afundavam

e o chão acalentava como uma coisa que se deve inchar

que deve por destino absorver o brejo

 

Por isso estou diante do mar como quem tem medo

como quem engole com pressa os remendos

as pedras

os estiletes que o mar no seu movimento corrói


Pedaços

 

 

Estou estilhaçada

silêncios saem da boca

mansos

estava desenhando

palavras

perdi o jeito de amanhecer

 

tenho tantos pedaços

que sou quase infinita


Do livro Pedaços/Pezzi, Etruria, Cortona, 1992.

 

 

 

O direito ao esquerdo

 

 

até prova contrária

não amassem o corpo de pegadas

não agucem a espera da morte

não contaminem a propensão à luz

não passem rolo compressor

nas palavras da alma

não decretem que não existe

até prova contrária

o direito ao esquerdo


O filho

 

 

o filho do teu filho

vai condecorar o peito

de um assassino

ou fuzilar o pai

 

o filho do teu irmão

vai derrubar florestas

decretar a lei marcial

arrastar a mãe na prisão

 

os filhos dos filhos

estão decidindo se viverás ou não

para concebê-los


Canção de exílio às avessas

 

 

cidade antiga

cansaço pulsa e corta o tempo

presente

 

chão arado pelas guerras

consumido pelas horas

produz e expande erva daninha na fecundidade

       mutilada

 

caminho outro país

olho outros rostos

sinto outras raivas

 

apodrecer em outro país

é uma dor que não satisfaz nunca


Misticismo

 

 

sou medieval e escura

por isso prefiro a tarde

 

meu misticismo não se sacia com as imagens de Giotto

diante de todas as portas fico lucidando olhos

às vezes desejo ser cega para penetrar melhor tudo

 

o que é frágil

quebro dentro de mim

o que é duro afago

aperto contra o peito

alcanço com a raiva que grudo nas horas

sorvendo as indagações que asfixiam


Do avesso

 

 

meu dedo viola coisas

desta cidade com úlcera

o calor das tábuas

o sol estende parreiras verdes

no olho das janelas altas

 

a alma violentada é uma perfuratriz

disseca coisas na tarde nua

inventa a morbidez de rachar nos muros

as palavras

 

o sol ilumina a vida em silêncio

a casa lúcida

dentro de mim as coisas perfuradas

       olham a noite

       (do avesso)

       e se afogam

       apertadas


Do livro Tempo de doer/Tempo di soffrire, Pellicani Editore, Roma, 1998.

 

 

Canções

 

 

canções

    perfumes

  gemidos

que o vento incrusta

nas ruas

em dias triviais

 

 

rondam

enrouquecidos

  loucos

 

 

chamam nossa alma


O vento na árvore é Deus

 

 

o vento na árvore é Deus

que sopra onde rasga

Deus escolhe a rocha

onde pousar seu rastro de árvore

e a unha-fome de tirar

da pedra

veia de pedra que se fia

em planta provisória

 

 

Deus escolhe

para cada raiz a roca

para cada galho seu precipício

para cada fome sua forma de filtrar

o máximo

   da consunção


Vezes

 

 

vezes da ave

que sonha a árvore

por transportar nas raízes não a inconsciência

vezes que voa a árvore

sonho de ave

por desconhecer que a asa

nela não começa

 

 

ave asa!

os que vão partir saúdam a imobilidade

os que não vão partir pregustam o medo


O olho

 

 

quem está oculto

para o olho?

o que mais caminha

fustiga

o que mais espera

e urde

emboscada

é o olho

corda da nossa alma

prego da nossa porta

 

 

tudo já entra

rasgado

 

 

o olho cobiça fendas

sabe o barulhinho

que faz a luz quando

derrete a pupila


A história

 

 

o corpo de um torturado

escava através dos séculos

sua intensidade de dor e morte

 

 

mas Deus, para quem não existe a história

como atura o horror

desse instante

onde só o que muda é a boca

que grita?


Diante de Deus

 

 

está chovendo

     chovendo

 

 

nasceu o mundo

esta manhã

doloroso em seu

inverno

o mundo depois da criação do

castigo

do abandono de Deus

e sua ira de morte

 em nosso ventre

 

 

somos como Eva depois

do fruto

diante de Deus

esperando a hora de poder gemer


Cortes

 

 

a árvore genealógica destes cortes

testemunha que o amor

sem um mínimo

de aniquilamento

não existe


Rodas

 

 

minha infância era cheia de trens

também minha adolescência

se encheu de rodas

 

 

de manhã acordo

aprendo:

vida está

é

 

 

paralisia é o nome mais doloroso que tem a morte


Quando eu morrer

 

 

quando eu morrer

trucidem a dor

libertem o corpo

da dor

 

 

que a alma não carregue

fragilidades

     (vozes doídas ao vento

       propensão a cortes)

 

 

que não evoque sombras

seja nada ou não

 

 

possa olhar a tarde

adoecer

sem cobrir o rosto

    sem susto

    terror


Andorinhas

 

 

estou de bem com o mundo até

um tanque de guerra se cansa

da guerra até um pássaro pára

para

repousar

 

 

e depois o céu hoje é de um

azul que faz mal aos olhos

agudo que a gente fica ali

barriga pro ar

admirando as andorinhas

   que volteiam

matutando no que pensam lá no alto

no que

sabem

se sabem que estou de bem com o mundo

que volteiam lá em cima também para mim


Gênese de Miró

 

 

para Miró

o mundo voltou a ser

menino

com suas linhas e formas

primordiais

menino-pássaro

menino-lua

e o olho absorto de Deus

se distrai da nova gênese

 

 

no húmus da tela

o sopro

dos primeiros traços

separa as cores

do caos

 

                                                                    volta