a humanidade fraterna, de marcos nunes

 

Acordei às seis ao toque do despertador; não me lembro de ter programado para essa hora da manhã mas, disposto, levantei da cama mesmo assim, dando primeiro um último abraço e um beijo em minha mulher, surpreendentemente, fugindo-me a lembrança de quando fizera isso pela última vez.

Fiz minhas necessidades, preparei meu próprio desjejum, verifiquei se as crianças estavam bem, fato também inédito em meu cotidiano; após o banho, vesti-me cautelosamente, fazendo pouco barulho, para não despertar ninguém sem necessidade. Assoviei um música sentimental, sem saber porque naquela manhã despertara mais cedo e, além disso, de excelente humor.

No corredor do prédio, encontrei um vizinho à espera do elevador. Assim que pôs os olhos em mim, sorriu com uma solicitude exagerada, perguntando ainda sobre a doença de minha esposa. Eu, que nunca havia falado do câncer dela com ninguém, fui forçado a fornecer diagnóstico detalhado, indagando logo em seguida sobre o desenvolvimento dos estudos da filha mais velha dele, como se estivesse a par do que se tratava há muito.

Tudo muito estranho: a vida de um e de outro, para ambos, era moeda corrente, mas em nenhum momento de minha vida, até ali, travara qualquer diálogo com ele além do protocolar bom dia, quando muito o como está, nada mais.

Apertamos nossas mãos à saída do elevador e nos dirigimos à rua, e não à garagem, como seria de hábito, posto que éramos dois empresários, possuíamos condução própria e há muito tomávamos qualquer direção tendo em nossas mãos volantes caríssimos.

Mesmo assim, não estranhei quando entrei no coletivo, até gostei, porque o veículo estava bem limpo, organizado, com todos os passageiros sentados, nenhum deles com fisionomia infeliz, cansada, deprimida. Há pouco, consideraria o excesso de boa vontade e candidez como demonstração de mau gosto tipicamente descerebrado, própria de novos-ricos ou, pior, de gente pobre querendo se passar por gente de bem.

Percebia mesmo que algo em mim havia mudado, porque eu mesmo refletia os comportamentos que abominava, sendo cordial, solícito, sorridente, otimista... um verdadeiro horror. Empunhei, entretanto, a bandeira da resistência e em certo momento disse até um não, recebido como autêntica piada por todos. Ora, ele disse não, que coisa engraçada!

Não nego: sempre fui um burguês cioso de sua posição, orgulhoso, sabedor dos limites impostos pelos próprios privilégios. Mas naquele dia minhas ações não eram em nada diferentes daqueles odiosos citadinos, vestidos de maneira semelhante, quando não igual, fazendo-me notar o corte ordinário e tecido pior ainda do terno que acreditava ser Armani.

O ar estava leve, o céu claro, manhã límpida como poucas, lembranças de filmes de família, com a diferença da multiplicidade de cores e formatos das pessoas, transitando em paisagens também fora do padrão da cidade pequena mas lotada de pequenos burgueses da risível ilusão Meio-Oeste norte-americana. Sabia que filmes como aqueles eram necessários para exemplificar um padrão ideal, mas sabia também que o ideal cultivado era um serviço prestado aos tolos; eu, como indivíduo peculiar, realizador, criativo e sobretudo excelente manipulador, não tinha nada a ver com isso. Meu mundo era o mundo feito ä imagem e semelhança de meus desejos, as pessoas com quem vivia eram também pessoas como eu, longe da mediocridade, da banalidade, do consumo de bens inferiores a cem dólares.

Apesar de tudo, alimentava intimamente o segredo de saber o meu lugar, junto com a certeza de que as demais pessoas também sabiam o lugar delas, necessariamente abaixo do meu. Era um homem a ser respeitado, mesmo no interior de uma viatura pública; chateava-me, porém, a tentar mostrar meus sentimentos e vazar somente frases chochas, sem caráter, sem a força exigida de um executivo sênior máster como eu.

Saí do ônibus diante da companhia certificando-me do poder de minhas chaves: sim, elas estavam comigo, a chave da sala e do cofre. Tranqüilizei-me com isso.

Mais ainda com a existência mantida das simples pessoas a executar suas funções diárias: o varredor a varrer, a atendente a atender, a garçonete a servir cafés, o ascensorista a dirigir seu elevador, tudo em ordem, apesar da maldita boa-vontade que observava em todos, coisa nunca vista, além de um detalhe de péssimo agouro: a ausência dos seguranças armados à frente do portão de entrada e no hall do prédio. O que foi feito deles?

Segui hesitante até o meu andar, dirigi-me da mesma forma à minha sala, sem qualquer constrangimento ou impedimento. Em seguida, estarreci-me: mesmo antes de chegar à porta de minha sala, um funcionário abriu-a tendo à mão um molho de chaves exatamente igual ao meu. Absurdo dos absurdos; se todos possuíam chaves iguais, para que a existência de uma única chave? Fiz essa exclamação em voz alta, para ser aplaudido por toda a gente, ao que só pude reagir sorrindo, guardando as chaves no bolso, entrando na sala que deveria ser exclusivamente minha, mas deixando a porta aberta, não sem antes descobrir que haviam três pessoas lá instaladas, nesse momento descobrindo seus computadores e preparando-se para o dia de trabalho.

Não me aborreci com nada disso, ao menos aparentemente. Liguei meu próprio computador, não verificando nenhuma mudança quanto aos programas instalados, métodos de programação, acesso a funções... Mundo estranho esse, quando todos parecem agir conforme um roteiro de seriado ordinário, daqueles programados para o início da tarde, quando só donas-de-casa e crianças fora do turno escolar podem vê-los...

O terror apossou-se de mim em seguida. Acessei a página da instituição bancária, teclei os dados de minha conta e, através de uma ligação imprevista, fui redirecionado para outra conta, sendo informado em seguida de um estranho saldo geral, coisa de trilhões, mas não de dólares. Quando vi a expressão UT antes da cifra dei-me conta de imediato que UT era a sigla para Unidade da Trabalho, sendo o valor expressão do geral, existindo uma tecla através da qual consegui chegar ao meu cadastro e ao saldo disponível, nada além de seiscentas e oitenta UT`s. Perguntei a quem trabalhava ali ao meu lado se o saldo estava correto, e ele disse que sim: todos os saldos eram de seiscentas e oitenta UT`s, bastava dividir o saldo geral pelo número de habitantes para chegar ao saldo particular. Mas para que se importar com isso?

Não devia ter perguntado, até porque sabia da resposta, mas como?

Por isso toda aquela humanidade fraterna, os lixeiros solícitos, serventes sorridentes, porteiros amigos, motoristas camaradas. Todos eles, pelo trabalho ordinário que realizavam, ganhavam exatamente o mesmo que eu, não importando se, afinal, alguém passava o dia fritando ovos enquanto outro tinha a incumbência de projetar fornos, fogões ou realizar os desenhos das frigideiras, muito menos criar galinhas e preparar os projetos de exportação de animais congelados, industrializados, com marca bom percentual de controle do mercado.

Aquilo não devia, até porque intimamente sabia de tudo que acontecera, mas o fato de possuir consciência não me presenteou com a liberdade; saber deixava-me louco, com uma fúria incapaz, contida, presa em seus gestos, a distribuir sorrisos quando gostaria mesmo seria estapear aquela gente que ocupara minha sala, expulsando-os dali, colocando-os em seus devidos lugares.

Nunca fui um homem dado a ódios, considerava sentimentos assim como menores, típicos de uma humanidade mesquinha, invejosa, rancorosa, sobretudo ressentida. Olhava para todos que lotavam aquela sala, o andar, o prédio, e não via nem mesquinharia, nem inveja, nem rancor, e muito menos ressentimento. Uma úlcera crescia em meu cérebro, e logo o maior ressentido era eu, obrigado agora a trabalhar para o bem comum, dividir meus ganhos, desconhecer o significado da palavra lucro, desarmar minha política diversionista, cerrar fileiras com toda aquela gente execrável, nascida dos piores pesadelos de um roteirista ruim.

Chamei minha secretária, ela se aproximou sem qualquer afetação, nenhum sentimento de inferioridade mas também nenhum revanchismo. Ela era ela e eu era eu; assim, tudo que pude fazer foi requerer a execução de tarefas já esperadas, logo cumpridas com satisfação, motivando estertores biliares mal disfarçados diante dos olhares de uma candidez tão irreprochável quanto insuportável.

Tenho que lembrar do passado, e dizer: sempre fui em chefe competente, nunca exigi de ninguém nada além do que seus cargos capacitavam, descontando, obviamente, algumas horas extras, minutos roubados do almoço, respeito subserviente, tolerância a carícias inadequadas e indesejadas, coisas comuns a todo ambiente de trabalho onde não se pode dar a entender a falta que o trabalho de cada um pode fazer, mesmo quando se exige mais e mais trabalho por cada vez menos remuneração. Afinal, como impor a ordem e a imperiosidade da realização de trabalhos maçantes sem a existência da boa hierarquia, provada e comprovada guia do desenvolvimento dos povos?

A falta que sentia dos olhares de secreto desprezo deixava-me louco. Onde a inveja, a ganância, o desejo de me vez falido, à miséria, de tripas expostas em um beco sujo, enterrado como indigente, preso em função de algum escândalo financeiro, escolhido como bode expiatório?

Sorri em frente ao computador, ciente de tudo mas como imerso em um sonho mal. Certamente nada do que acontecia ali era verdadeiro, existia com certeza um Grande Irmão, atrás de um exército maior ainda, além de guardiões da Constituição, polícias secretas, agentes infiltrados, o diabo. Se passamos décadas e décadas apontando para a complexidade do universo como impedimento à realização das róseas utopias humanistas, milhares de volumes e milhões de páginas não poderiam ser sepultadas simplesmente de um dia para o outro, eliminando-se o lucro, até mais, o próprio dinheiro, como se isso bastasse para extinguir a fúria competitiva inerente a cada ser humano, incapacitado assim de partir munido de sua vaidade à satisfação de todos seus desejos, contrariando qualquer lei e ordem; mais que isso, forjando todas as leis e ordens para satisfação de seus próprios desejos, enquanto as mesmas serviriam para castração alheia, condenando-os a tomar o mundo como um vale de lágrimas onde a liberdade só se obtém através da morte, condutora de todo inocente ao hipotético paraíso dos inocentes.

Nossas crenças não foram vãs, tanto não eram que, afinal, um mundo havia para obedecer aos nossos princípios, inquestionáveis e veneráveis, nascidos no princípio dos tempos e eternizados pela nossa augusta divindade.

Mas o que houve? Será que foi somente hoje um despertar de más lembranças, de um mundo há muito enterrado, a ressurgir em minha memória como neurônios doentios a disparar pura insensatez?

Logo a secretária voltou com um sorriso e a demonstração do feito correto, preciso, limpo, indiscutível, incriticável. Minha vida ali não valia nada, quanto poderia suportar daquilo tudo, quanto tive que suportar até ali?

O telefone tocou, era minha mulher para avisar sobre a necessidade de passar na volta do trabalho na casa de nossos pais e trazê-los para o jantar comunitário especial. Como? Jantar comunitário especial? Indaguei para lembrar sozinho do que se tratava: apenas uma reunião semanal com todos os ex-integrantes da velha sociedade, onde todos colocavam-se à mesa e partilhavam refeições e experiências com aqueles que anteriormente foram humilhados à serviço do orgulho de cada família abastada, cada qual cumprindo sua alegre reeducação ao lado de seus velhos companheiros explorados.

Foi demais para mim, não pude resistir àquilo. Semanas e semanas de íntima humilhação voltaram para desreprimir o ódio de meu combalido coração: soltei um urro, mas um urro tão impressionante que fez calar todo andar, senão todo prédio.

Desculpe, desculpe, foi tudo o que pude dizer. Dei uma canelada na mesa, expliquei. Todos sorriram, sem qualquer constrangimento.

Minuto a minuto aproximava-se a hora do almoço. Novamente o terror tomava conta de mim, pensando no refeitório comum a todos, tão diferente do elegante restaurante onde passava duas ou três horas refestelando-me na companhia de amigos (e até de concorrentes), bebendo muito vinho francês acompanhado dos mais finos pratos. Certo estava que o mesmo restaurante servia repasto para todos, mas seria tudo muito diferente. Horários fixos, meses vagando uma após a outra, ocupadas por pessoas sem qualquer refinamento, por mais que bebessem vinho francês e degustassem as melhores delícias do norte.

Percebi a existência de algum relógio secreto a dirigir as pessoas para o corredor, enquanto outras permaneciam tranqüilas e sentadas como eu. Havia uma consciência de turnos sem qualquer necessidade de buzinas ou sirenes. Olhando em torno, descobri de fato a inexistência de relógios de parede, como a ausência do Rolex de ouro no meu pulso, aliás como algo que nunca tivesse estado ali. Resignei-me, silenciosamente, a esperar, continuando a manipular dados no computador, com uma diligência que me exasperava. Tentava, estupidamente, sabotar o trabalho, mas tudo que conseguia eram soluções melhores e melhores, colocando a possibilidade do cumprimento exemplar de minhas tarefas do dia em apenas quatro horas, empurrando-me não para a rua, mas para a descoberta de outras tarefas a realizar, com mais diligência ainda!

Sentia-me, enfim, como as frias criaturas daquele filme Os invasores de corpos, não por acaso um exemplo e evidente contra-propaganda dos efeitos da ideologia comunista. Contudo, eu era eu, sentia, ou não sentia.

O desespero, enfim, varreu-me por completo. Finquei pé na grande verdade segundo a qual ninguém pode contrariar o seu destino, dirigindo-me assim à janela aberta, supondo fácil jogar-me dali do vigésimo andar e estatelar-me na calçada, com a satisfação adicional, talvez, de atingir algum transeunte desavisado, matando mais alguém.

Suposição tola. Como que guiados por um Grande Grande Enormíssimo Irmão, como por milagre uma dezena de pessoas interrompeu o prazer do suicídio, agarrando-me pelos ombros, pernas, braços, cintura, enquanto diziam palavras doces, de amizade, de compreensão.

Então não havia mesmo jeito, descobri ali. Eu não existo.

Mas não foi outro que chorou no primeiro ombro amigo e contou suas misérias. Não ou outro que voltou à mesa de trabalho, realizando em um único dia trabalho digno de uma semana inteira.

Ao final, telefonei para minha mulher certificando a busca dos velhos parentes. Certamente seria ótimo mais aquele jantar, repleto de comiseração, piedade, aflição, culpa, e tantos mais sentimentos humanos. Teria que me acostumar a isso, como posso me acostumar com a existência de espaços delimitados: esquinas, sinais de trânsito, paredes, cidades, prédios, guardas de trânsito. Afinal, se antes sonhava que era livre mesmo com tantas provas do contrário, agora, certo da inexistência desse sonho, talvez esteja a viver como um sonâmbulo essa utópica liberdade, vagando pelos cômodos da minha casa, à procura da janela aberta de onde possa me lançar, esquecido das dimensões, espaços, ou a alimentar a esperança medieval de ser um anjo, possuir asas, ver o mundo com os olhos de um deus esquecido, cujo nome estava inscrito em notas de dólar, a única verdade que havia - até hoje.