ENTREVISTA COM RICARDO CORONA
RICARDO CORONA nasceu em 1962 em Curitiba/PR, onde vive. Na
década de 80 residiu em São Paulo/SP, onde cursou
comunicação na Febasp (1987). É autor de “A”, plaqueta de
poemas e desenhos eróticos, em parceria com Said Assal (SP,
ed. Arte Pau-Brasil, 1988), O sumiço do sol, livro
infantil, em parceria com Eliana Borges (Curitiba, ed. Arco-
Íris, 1993) e Cinemaginário, poemas (SP, ed. Iluminuras,
1999). Em 1996/97, junto com o guitarrista Johnny Tequila
apresentou em bares e casas noturnas o show poético-musical
Poesia’n’roll. Em 1998, organizou a antologia bilíngüe
Outras praias – 13 poetas brasileiros emergentes / Other
Shores – 13 Emerging Brazilian Poets (SP, ed. Iluminuras).
Traduziu poemas de Gary Snyder, Baraka, Ginbsberg e outros.
Atualmente prepara o CD de poesia Ladrão de fogo e edita a
revista bimestral de poesia e arte Medusa.
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Pergunta: Por que demorou a lançar seu livro? Como é a sua
relação com o tempo e a maturação do material poético?
Ricardo Corona: Hans Haacke diz que “os produtos artísticos
não são unicamente um meio de se fazer um nome”. Não tenho
simpatia pela idéia de individualização da poesia e acho
estranho a presença de um poeta de plantão para cada região
do país ou para cada segundo caderno de um grande jornal.
Gosto de fazer parcerias e sentir-me atuando no “tecido” da
poesia, da cultura. Talvez por isso tenha lançado só
recentemente meu primeiro livro individual de poemas
Cinemaginário.
Em 1988, saiu o livro de poemas e desenhos eróticos “A”,
uma plaqueta impressa em serigrafia, quatro cores, que é
uma parceria com o artista plástico Said Assal. Em 1993, O
sumiço do sol, livro infantil em parceria com a artista
plástica Eliana Borges. Em 1994, o livro-objeto Bem feito
pra você, uma coletânea de fotos e poemas e também uma
parceria com o fotógrafo Chico Link e o poeta Flavio
Stankoski. Em 1997, Eliana e eu organizamos duas antologias
de poesia, desenho e prosa infantis chamadas “Tirando de
letra – poemas e desenhos infanto-juvenis” e “Sopa de
letras – poemas e desenhos infantis”.
Mas nunca me propus a colocar muitos poemas em livros de
parceria. Quis mostrar aos poucos. Em “A”, participei com
apenas com nove poemas, que se somaram aos três desenhos do
Said. Nossa proposta não era encher um livro de poemas e
ilustrá-lo com alguns desenhos, mas colocar duas linguagens
num mesmo suporte e com a mesma importância. Em “Bem
feito...”, pelos mesmos motivos, participei com apenas seis
poemas.
Em 1998, organizei a antologia bilíngüe Outras Praias /
Other Shores, uma seleção de 13 poetas representativos da
produção dos anos 90. Esta antologia teve colaborações
expressivas de poetas e professores brasileiros e
americanos: Charles A. Perrone, David William Foster (EUA),
Ligia Vieira Cesar, Antonio Risério, Jaques Mario Brand,
Maurício Arruda Mendonça (Brasil). Em 1998/1999 (que se
estenderá até março de 2000), a revista de poesia e arte
Medusa, de periodicidade bimensal, que está em seu sétimo
número e irá até o décimo. Medusa é um projeto elaborado em
parceria com os artistas plásticos Eliana Borges e Key
Imaguirre Jr., e os poetas Ademir Assunção e Rodrigo Garcia
Lopes.
Com a revista e a antologia, aquele princípio coletivo em
plano poético, ficou ainda mais forte, mais atuante. Por
mais que exista um grupo aqui, outro acolá, a cena é
dispersa e o que se vê são “nomes” que puxaram para si o
saldo de movimentos literários de décadas anteriores, de
períodos de extensa e intensa produção coletiva. Acho que é
o tempo certo para projetos como antologias e revistas. A
areia da ampulheta deste século/milênio está se esgotando e
publicações assim têm um papel histórico importante. Ainda
mais num tempo confuso como o nosso, de privatização
poética, promovida, em parte, pela grande imprensa e pelas
grandes editoras, mas, principalmente, por poetas que se
auto-elegem cronistas de época, disseminando seus conselhos
e passando a falsa idéia de que a poesia pertence a uns
poucos privilegiados. Esquecem que é uma das linguagens
mais antigas do ser humano, que pôde se manifestar, por
exemplo, num índio da tribo Yãnoman de cinco mil anos atrás
e que sequer conhecemos. A poesia, a arte em geral, é maior
do que essa política de personalidades. Sou contra essa
idéia de funilamento, me irrita esse filtro... Quero pensar
também o tropicalismo de Tom Zé, o concretismo de Pedro
Xisto, etc. Cadê a obra de Pedro Xisto? No meu entender,
Pedro Xisto fez o caminho inverso e sua pesquisa é
fundamental para se compreender melhor aquele movimento. O
material que ele utilizou, partia da concepção do artista
plástico em direção à poesia e isso faz com que seus poemas
visuais contenham outros desdobramentos, outros resultados
gráficos no seu designer da linguagem, etc. Nele, havia a
simbiose de artista plástico e poeta que lhe conferiu uma
poesia concreta singular. E quase ninguém conhece ou lembra
de Pedro Xisto...
É através de revistas e antologias que se pode haver com
essas diferenças que a história ou as políticas culturais
acabam soterrando. Esse é um dos papéis históricos que uma
revista pode e tem que fazer. Com elas, se pode interferir
no leque de referências e com a autonomia crítica que boa
parte da grande imprensa já perdeu. Uma revista serve para
isso. Além de poder atuar de maneira sistemática na
inclusão de novos autores. Além de estar em permanente
diálogo com outras linguagens, como a fotografia, as artes
plásticas, a música, o teatro, etc.
São esses os motivos mais fortes que me fizeram optar pelas
publicações coletivas antes mesmo de sair com um livro
individual. Depois vieram outros, que são aqueles que
qualquer poeta enfrenta: a falta de interesse das editoras
e o processo de maturação, de “pensar” um livro de poemas.
Dito isto, posso crer que o tempo não me vem de forma
abstrata. Ao contrário, sempre me pareceu uma máquina que
imprime a ruga.
Pergunta: Você classifica Cinemaginário como o "cinema
dentro do poema" mas não utiliza outros elementos
(cinematográficos) fora da linguagem poética. Como definiu
este tipo de estética?
Corona: O “cinema mental” que me atribuí é o livre fluxo da
minha imaginação. Utilizei-me, sim, de técnicas de colagem,
montagem, grande angular, zoom, cortes, closes, etc. Mas é
bom acrescentar que esses procedimentos estão a serviço do
que os poemas têm a dizer. alternar climas e alterar o
tempo no/do poema. Sei que esses procedimentos estão
presentes no cinema, num filme de Tarkovski, por exemplo,
mas também sei que eles não são propriedades exclusivas do
cineasta. São, antes, de nossa tela interna, à maneira de
Ítalo Calvino, quando diz que a imaginação é cinema antes
mesmo de o cinema ser inventado. Enfim, dei-me liberdade,
escolhi as regras, meus interlocutores e fui ao cinema
“Imaginação”.
Pergunta: Leminski é uma angustiada influência à moda
Harold Bloom? Como dialoga com a obra do poeta mais
cultuado do Paraná?
Corona: Leminski é uma referência não só para os poetas do
Paraná, mas de todo o Brasil. No meu caso, o diálogo é
pensado a priori, para que minha poesia não caia na mera
repetição de sua dicção, que é uma das mais fortes que
conheço. Quem quiser se propor ao diálogo com a poesia
deste poeta, tem que evitar o efeito “zelig”, a
contaminação excessiva e imediata ao ponto de sua poesia
ficar parecida com a dele. A poesia de Leminski, em certo
sentido, é um vírus. Penso ter escapado disso ao perceber
que quase toda sua poesia contém o exercício da logopéia
(“a dança do intelecto entre as palavras”) e escolhi
“exagerar” no exercício da fanopéia (“um lance de imagens
sobre a imaginação visual”). Só isso, que é um pequeno
desvio de rota, faz com que não me sinta encalacrado, nem
apenas repetindo a dicção leminskiana, mas, sobretudo, se
deixando influenciar na mesma medida em que se vai
conquistando diferenças. A imagem, que é a proteína do meu
“cinema mental”, em Leminski, aparece minimizada pela
qualidade superior de sua retórica. Mesmo num haicai, onde
a imagem é tudo, há uma identificação imediata desta
retórica. Bem, considerando que foi um dos poetas mais
preparados de sua geração, já é muito não repeti-lo e ser –
ao mesmo tempo – influenciado. Adquiri o vírus, mas também
o anticorpo.
Pergunta: Como a poesia paranaense está enquadrada no
contexto brasileiro?
Corona: Já foi dito que o Paraná está ainda construindo sua
história cultural. Entenda-se “construindo” como um legado
à disposição, que possa ser uma afirmação positiva,
permanente. Tradições assim não nascem da noite para o dia.
Isso demanda muito tempo e o Paraná é um estado
extremamente novo, recente. Seria injusto compará-lo a Rio
Grande do Sul ou a Minas, por exemplo. Guardadas as
proporções, acho que estamos bem representados, com
poéticas como as de Dario Veloso, Emilio de Menezes, Paulo
Leminski, Alice Ruiz, Helena Kolody, Rodrigo Garcia Lopes,
Josely Vianna Baptista, Maurício Arruda Mendonça, Marcos
Prado, Jaques Mario Brand, etc. Isso sem citar artistas que
estão produzindo nas áreas de artes plásticas, cinema,
teatro, etc. Na prosa, em especial, vejo um fenômeno
interessante, que é a velocidade com que se está acumulando
narrativas que trabalham bem a linguagem. Se você analisar,
num espaço de tempo de três décadas, apareceram autores que
fizeram “prosa de arte”, na expressão de Augusto de Campos.
Refiro-me a Paulo Leminski, Valêncio Xavier e Wilson Bueno.
São apenas três autores, mas, como disse, apareceram em
espaço de tempo curto – e esse dado é importante quando se
trata de literatura de invenção. O Catatau, de Leminski, é
1975, e é uma prosa experimental, um “romance-idéia” que
está em igual importância com outros romances de invenção
brasileiros, como Grande Sertão: Veredas, de Guimarães
Rosa, por exemplo. O Mez da Grippe, de Valêncio, é de 1981,
e é uma “novella visual” que, na minha opinião, é uma
confluência de códigos que está ainda por merecer
classificação apropriada. E o Mar Paraguayo, de Wilson
Bueno, é de 1992, e é uma prosa neobarroca abismal,
construída no entre línguas, um disparate de ousadia...
Só posso concluir que nossa contribuição vai bem, obrigado.
E nem mencionei Dalton Trevisan...
Pergunta: Em Cinemaginário a Lua está em diversos poemas,
inclusive uma parte com a denominação LUNARES. Qual a
representação, o sentido e o por quê deste lugar de
destaque em sua poesia?
Corona: Depois que o homem foi à lua, tenho a sensação que
ela virou um bairro do nosso planeta, uma espécie de
periferia estelar. Ainda me interessa, em poesia, destruir
a decantação romântica da lua, através de uma idéia de
contaminação, utilizando-me de descobertas e referenciais
científicos, que a materializaram, que a transformaram em
algo mais real. Quis conversar com a lua simbolista e
zombeteira de Jules Laforgue, a lua muda de Leopardi. Da
minha parte, entrei nessa conversa com minha lua-chão,
palpável, como também foi a de Armstrong – sua experiência
ainda me soa fantástica – que reaparece no poema “via-
láctea via língua”, numa inversão no modo de olhar
(romântico) para a lua (inatingível). No poema, tem-se a
sensação de estar “pisando” no universo e, de lá,
observando a terra:
via-láctea via língua
eis minha viagem
o quasar mais além
vai estar quase ali
o planeta terra
pingo no meu i
ponto na frase que se encerra
Em outro poema, “Ondas na Lua Cheia”, valorizo os efeitos
lunares verdadeiros e os utilizo como metáforas para o
intertexto, etc.:
ONDAS NA LUA CHEIA
(poema sob influência)
A lua que tudo assiste
agora incide
O mar
- sob efeito –
ergue-se
crispado de ondas espumantes
Sua língua de sal
lambe e provoca
as escrituras da areia firme (...)
“Lunares” também se manifesta na contrapartida de poemas
“solares” de dois poetas que sempre me interessaram: Paulo
Leminski e mais recentemente, Rodrigo Garcia Lopes. Em
Leminski, apenas um verso: “nada que o sol não explique” e
em Rodrigo, nos poemas de seu livro Solarium. Fechei o
conjunto de “Lunares” pensando exatamente nesses dois
poetas. Não que meus poemas tenham sido feitos a partir
daqueles, pois já estavam escritos antes de eu perceber
essa relação. Agrada-me a idéia poundiana de poder escolher
meus interlocutores. Pound dizia ser preferível eleger
contemporâneos para uma “conversa poética” do que autores
já canonizados. Veja no que deu:
E NÃO EXPLICA
Praias –
eu as invento
à luz da lua alta
luz borrando zênites
A paisagem, menos
narcísica
O vento
as nuvens
- leveza -
abrindo sentidos vitais
Você nem percebe
râmulos aquáticos nascem corais
À noite,
a lua chama para si
toda possibilidade de luz
- depois, deita-se
E não explica
Pergunta: A segunda parte do livro é pontilhada de haicos.
Há algo que só pode ser dito num haicai?
Corona: O haicai, na tradição japonesa, como se sabe, era
(e ainda é) escrito num contexto de diário, de viagem, de
experiência, de busca do satori. Não sou um haicaísta, mas
sempre gostei de praticá-lo involuntariamente. Os haicais
que aparecem em Cinemaginário estão ocasionalmente
“incorporados” a outros poemas. Tem um ou outro isolado,
mesmo assim, não seguem nenhuma métrica. Quis assim porque
os aproximo da idéia central de Cinemaginário, pelo que tem
de montagem, do olho editando imagens, etc. e podem ser
apreendidos como qualquer outra imagem solta. Eles estão
servindo aos poemas como um fotograma serve ao cinema. Acho
que consegui me livrar da rigidez da métrica japonesa e dar
continuidade a uma outra tradição brasileira de haicais
“infiéis”.
Pergunta: “Para que as musas se movam/ e tudo o mais também
ganhe movimento/a paisagem passa pela paisagem.” Onde
estava quando escreveu “Passagem”?
Corona: Estava em Curitiba, num dia em que uma tempestade
de quinze minutos invadiu o atelier de minha mulher,
Eliana. O poema “Passagem” fala disso, ou seja, de uma
tempestade que se arma no Sul, passa por Curitiba e vai
desaguar no Rio de Janeiro. Na época, estava totalmente
envolvido com um texto chamado “A estética do frio”, um
poderoso imaginário desenvolvido pelo músico e escritor
gaúcho Vitor Ramil. Escrevi os poemas “Passagem” e “Miss
Tempestade” depois de tomar contato com esse texto, depois
de reler com atenção a ficção Fragmentos from Cold, de Paul
Auster e também depois da enchente ter inundado o atelier.
Uma tempestade não contemporiza, não faz acordos e
concessões e isso que me fascina.
O mais curioso é que isso já estava se manifestando na
minha poesia, pois “Paisagem Narcisista”, outro poema que
desconstrói a “estética do calor”, porque expõe a paisagem
tropical ao exagero, foi escrito antes que tivesse contato
com esses dois autores que já estavam “tramando” um
imaginário que faz sentido aqui no Sul do país. Gosto dessa
idéia de afirmação da diversidade, pelas vias da
contradição, da oposição. O estranhamento disso tudo é que
é comum ouvir do curitibano que um pinheiro do Paraná não
se pode transplantar. Se isso for verdadeiro, que eu acho
que é, então há uma contrapartida através do nosso clima.
Basta que Curitiba encontre sua porção Sul e também
influencie culturalmente Sampa e Rio como uma frente fria
influencia. Quero falar disso também, até que soe com
naturalidade, como é normal ouvir nordestinos e baianos
falando de suas características. O genial é saber que somos
todos brasileiros, pertencentes de uma cultura polimorfa,
multiforme, heterogênea e antropófaga.
Pergunta: No poema “e o amor/não é maior/nem menor/que o
mar” Qual o lugar que a lírica amorosa ocupa em sua poesia?
Corona: “Na margem de todas as coisas: uma canção” veio a
partir de uma experiência numa praia de Santa Catarina.
Estávamos, Eliana e eu, prontos para voltar para São Paulo
– na época morávamos em Sampa –, não tínhamos dinheiro, nem
trabalho, nem nada e com filho pequeno... Estávamos na
condição de esquecidos, de humilhados e falávamos da
importância do amor, enquanto a barra pesava, no sentido
que teríamos que voltar e encontrar a geladeira vazia.
Estávamos nos sentindo à margem do sistema e nas delícias
de uma praia – que é uma margem física – e falando de
amor... Então o que eu posso lhe responder? O verso que
você cita na sua pergunta: “e o amor/ não é maior / nem
menor / que o mar”, vem daí. Quis pegar esse sentimento e
dar-lhe uma medida: o mar. Por isso a citação de “When I
heard at the close of the day”, de Walt Whitman.
Algum tempo depois, quando retomei o poema, percebi que ali
estavam os quatro elementos: água, terra, fogo e ar. Com o
uso do olho em movimento, que vai editando imagens, que é
próximo do método cut-up, de burroughs, fiz o poema. Numa
leitura atenta, as duas colunas (“margens”?) que dividem o
poema, abrigam os quatro elementos: ar/terra, de um lado, e
água/fogo, do outro, através de palavras correlatas:
“vento”, “pedras”, “ondas”, “atrito”, etc.
Pergunta: “como as pedras duras/um dia nascem dunas”. O
tempo em sua poesia provoca rugas e modifica esteticamente
os elementos de seus poemas. Haveria civilização sem o
conceito de tempo? O tempo é sempre perda?
Corona: Como disse, meu conceito de tempo não é abstrato.
Nem linear. O tempo imprime, marca, transforma e eu o vejo
nas coisas. “O tempo não pára”.
Pergunta: “OS HOMENS SÃO TODOS IGUAIS” é um poema piada?
Fale sobre.
Corona: Pode ser, mas não foi o que mais me motivou a
escrevê-lo. Claro, tem o humor dos poemas-piada de Oswald.
Mas não pensei nisso. Sou mais devedor à charge, ao cartum
e ao quadrinho. “Os homens são todos iguais” tem marcação
rítmica da fala dos roteiros de histórias em quadrinhos,
que é feita de uma mistura de respiração nervosa com humor.
Na gravação deste poema para meu CD de poesia Ladrão de
fogo, incluí risadas e cochichos. Acho que ficará mais
evidente esse modernismo que você vê e que sequer pensei ao
escrevê-lo. Se for um poema-piada, na gravação, virou um
poema-risada.
Pergunta: Qual a sua relação com a mitologia grega e
egípcia? Que elementos destas culturas são matérias de seu
trabalho?
Corona: Leio sobre as mitologias (grega, iorubá, egípcia,
etc.) como vou ao cinema. Mutação. Alucigenia. Obra aberta.
Movimento. Imaginação. Etc. Se são conteúdos para minha
poesia? Qualquer assunto é um ótimo assunto, desde que a
poesia esteja presente.
Pergunta: Você colocou notas no final do livro. Ainda não
se arrependeu?
Corona: Não. Notas atrapalham quando “explicam” o poema ou
quando o autor se vale delas para tornar público alguma
correspondência particular que pouco interessa ao leitor.
No meu caso, estão funcionando como créditos que até seria
desonesto não serem atribuídos. Refiro-me a diálogos com
filmes ou quando aconteceu alguma parceria de trabalho.
Também usei notas para dar significado a algumas palavras
Sestranhas”, como por exemplo, “Tunguso-manchuriana”.
Ninguém é obrigado a saber o que isso significa. Mas note
que os poemas sobrevivem bem sem as notas. E isso é uma
nota à sua pergunta...
Pergunta: Segundo o poeta Italo Moriconi há uma vertente
“esteticista, representada por poetas como Carlito Azevedo,
Claudia Roquette Pinto, Nelson Ascher, Josely Vianna
Baptista, o Jorge Lúcio. De maneiras muito próprias, podem
ser incluídos nessa vertente poetas como Paulo Henriques
Britto e Lu Menezes. A outra vertente seria uma vertente
neoconservadora, metafísica, representada por Alexei Bueno,
Bruno Tolentino, Marco Lucchesi. Talvez Ivan Junqueira se
encaixe desse lado. Paralelamente a isso, existe um
aprofundamento e diversificação da vertente
feminista/feminina, com a própria Claudia Roquette Pinto,
Clara Góes e muitas outras. E como emergência temática
marcante nesses anos 90, aparece a poesia gay, que é um
belo rótulo, mas que eu prefiro chamar de homoerótica
masculina. Nessa nova voz, incluo-me eu mesmo (Italo), e
poetas como Antonio Cicero e Valdo Mota, mas nós 3 temos
abordagens bem diferentes, que qualquer leitor poderá
verificar por conta própria. “ (A gente pode diminuir mas
tive que citar para você ler, certo). Em qual destas
vertentes se enquadra. Qual escolheria?
Corona: Aqui perto da minha casa tem um boteco que serve
vários tipos de cachaça. Não vejo problema algum nessa
diversidade de destilados. O problema começa quando algum
freqüentador, que ainda não descobriu a arte de beber, fica
insistindo que alguém beba do seu copo porque acha que a
sua bebida é melhor... Esse sujeito normalmente é o chato
do pedaço.
Pergunta: Você não parou no livro e vai lançar um CD de
poemas. Fale sobre este novo projeto?
Corona: Ladrão de fogo é um CD em que serão gravados
trinta poemas meus com acompanhamento musical de quatro
instrumentistas. Os poemas não serão cantados, ou seja, não
serão transformados em letras de música ou canções. Ao
contrário, serão gravados com entonação de récitas para
ficar mantidas as sonoridades e ritmos internos próprios da
poesia e que muitas vezes são intransferíveis.
Têm vários anos que venho realizando récitas em teatros,
bares, praças, livrarias, casas noturnas, etc. e com a
gravação deste CD estou tendo um aprendizado e uma
motivação ainda maiores. É um aperfeiçoamento de
experiências e isso é ótimo. No Brasil é bem pequena nossa
tradição de poesia gravada, se comparada à dos americanos,
por exemplo. Então, há uma inquietação da minha parte, por
perceber que este é um caminho que minha geração pode
seguir, interferir.
Inicialmente, com os poetas provençais, entre os séculos
XII e XIII, no sul da França, se inventou um diversificado
repertório de formas e estilos, que, segundo Augusto de
Campos, vão do trobar leu (a poesia leve) ao trobar clus (a
poesia hermética) e ao trobar ric (a poesia rica ou rara),
com equilíbrio perfeito entre poesia e melodia. Mais
recente – para ficarmos com exemplos da antigüidade e de
agora –, a experiência dos poetas Beats, nos EUA, que está
na base do surgimento do rock’n’roll.
Os poetas brasileiros sempre foram tímidos nessa área, mas
com as novas mídias, que facilitaram o registro oral da
poesia, eu acho que será um caminho inevitável. Hoje
podemos experimentar mais e, quem sabe, alimentar um gosto,
um costume de se “ouvir poesia”, que é uma coisa distinta
de se “ler poesia”. Para entender melhor o que estamos
perdendo, basta ouvir (ler também, claro) “The Ballad of
the Skeletons”, de Ginsberg.
Pergunta: A revista Medusa é outro projeto seu. Fale sobre?
Corona: A revista Medusa não é um projeto só meu. Ela foi
criada em parceria com a artista plástica Eliana Borges e
os poetas Ademir Assunção e Rodrigo Garcia Lopes. Lembro-me
de quando nos reunimos aqui na minha casa, em Curitiba,
onde discutimos o projeto poético e artístico de Medusa.
Isso depois de centenas de e-mails e telefonemas. Um quebra-
pau danado. Lembro-me também que tinham três nomes na mesa.
“Calibán” (depois saiu uma revista carioca com esse nome)
sugerido por Rodrigo, “Canibal” por Ademir, e “Medusa”, por
mim. Quando o núcleo editorial da revista estava formado,
fizemos uma votação e “Medusa” ganhou. Os três nomes eram
fortes e bastou uma votação para resolvermos. A partir daí,
o mito/mote se desdobrou em várias idéias-valise,
funcionando como impulso para nosso projeto de revista. A
idéia de subconsciente popular, defendido para a mitologia,
prevaleceu. Todos tinham uma metáfora medúsica na cabeça.
Fizemos/fazemos disso uma espécie de mitocrítica. Como por
exemplo: as várias cobras da cabeça de Medusa – e agora me
refiro ao mito – me parece ser a leitura, ou o ícone, mais
acertado para uma época que se afirma pela diversidade:
cada cabeça uma sentença, cada língua um veneno, etc, e,
tratando-se de cobras, não há dúvidas de que o que se
coloca é a diferença, a vitalização do que é dessemelhante,
contraditório, etc. O fim do período utópico das escolas
literárias de vanguarda colocou-nos algumas questões: Como
pensar uma revista, que é, necessariamente, um projeto
coletivo, em tempos de diversidade? Como não cair no mero
ecletismo? E como trazer o coletivo para uma revista sem
adotar a visão diminuidora de alguns críticos sobre a
cultura feita nos anos 80/90? Conheço algumas revistas que
já no título entregam sua baixa auto estima. Medusa não.
Medusa é uma mulher com cabeça de serpentes! É um mito
forte, polêmico, feminino e que teve seu nascimento
vaticinado pela coragem de blasfemar. Disse Medusa: “Eu sou
mais bonita que as deusas do Olimpo!” e Zeus a transformou
em criatura horrenda. São muitos os motes que este mito nos
dá para meter cobras e visões na babel contemporânea. O
olhar petrificador (paralisador) do mito Medusa, na
revista, transmuta-se em visão aprofundada de determinada
obra. A cada edição, “petrificamos” um poeta recente, com
miniantologia de sua produção, o que significa mostrar
densidade contra a idéia de ecletismo que corriqueiramente
tem-se apresentado por aí, com mosaicos de poetas e poemas.
Não acreditamos nisso. A época pede densidade para a
diversidade. Na revista, esse conceito também se manifesta
nas grandes angulares (também chamados “dossiês”) que
costumamos fazer com determinado artista que tenha uma obra
extensa e ainda pouco difundida. Neste caso, apresentamos
uma miniantologia de seu trabalho, ao lado de entrevista,
ensaio e fotos. Enfim, “petrificamos” criticamente o
trabalho/pensamento/processo de criação de determinado
artista. Com isso estamos interferindo diretamente no leque
de referências.
Pergunta: A revista Veja publicou uma matéria em que
ridiculariza os poetas cariocas e em matéria diz
ironicamente que os poetas “(...) quem diria! ainda
existem”. Como encara a “polêmica”? Será que a matéria
acaba com o marasmo?
Corona: Engraçado, mas achei que a matéria é que auto-
ridiculariza a revista, pois tratou o assunto poesia como
modismo, comportamento de época, etc. Isso acabou
ridicularizando tanto o jornalista que a escreveu como a
revista que o publicou.
Pergunta: Como encara a internet e os novos meios de
divulgação. O livro acaba?
Corona: Na minha opinião, essa discussão de o livro acabar
já foi problematizada e também resolvida, exaurida. Mas
vamos lá: A invenção do cinema não ia acabar com o teatro?,
a tv não ia acabar com o cinema?, e agora net vai acabar
com o livro?! Não seria linear demais? Acho mais
interessante pensar que a internet é o meio de comunicação
que mais materializa nosso subconsciente mundial. A partir
daí, abre-se uma discussão sobre liberdade de expressão,
ética, censura, serviço público sem burocrocacia, etc.
Tenho certeza que o livro continuará nosso parceiro, na
estante, ao lado do cd-room, próximo dos cds, acima do
computador, ao lado do fax, do vídeo.
A internet é um meio privado em que se põe rapidamente as
idéias em público. Com o tempo, quero crer que esse meio
poderá ser o princípio de um exercício pleno da
comunicação, onde a “censura” seja apenas ética. Mesmo com
todo o lixo on line, a internet é o meio mais democrático
de todos, que deveria ser ainda mais, não fosse a ditadura
econômica que estamos vivendo, a qual impede que todos
possam comprar um computador.
Outro fato que me chama a atenção, é o retorno da escrita.
Em certo sentido, através do e-mail, todos estão escrevendo
mais. A carta voltou, de outra maneira, mais veloz e
telegráfica, mas voltou. O e-mail, hoje, é a carta em alta
velocidade. Aí fico pensando no que disse Almodóvar: “o
homem é mais verdadeiro quando escreve, a humanidade
deveria calar a boca e escrever”. Ou, como canta Luis
Melodia: “Se a gente falasse menos / talvez compreendesse
mais (...)”. Também acho que esse meio, que se dá pela
escrita, pela carta, acaba equilibrando a ditadura da
imagem e podemos ser mais confessionais. Ana Cristina César
iria adorar...
Pergunta: Qual o papel do escritor na sociedade?
Corona: Nesse sentido, ainda vivo de horizontes utópicos.
Acredito que a poesia se soma àquelas práticas que podem
mudar o homem. Não que o poeta deva assumir esse
compromisso. Mas não há como negar que inventar poemas é
bem diferente de inventar bombas ou remédios falsos.
Devolver o texto para a tribo, eis uma epígrafe para livros
de poesia.
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