ENTREVISTA COM SÉRGIO NAZAR DAVID |
1."Eu
quis fazer poesia sem ser muito diferente dos poetas que li". Com
quem se parece a sua poesia? Quais foram/são seus mestres? R:
Sim, eu quis. O verbo está no passado. Logo em seguida, no mesmo poema eu
escrevo também que “já não quero mais dizer o que vivi”, que “o
passado são linhas sem desenho”, e que na verdade o que eu estou mesmo
é “fazendo um sonho à toa ser verdade”, “ser poeta sem saber o que
estou sendo”.
Veja bem. Retire qualquer presunção do que vou dizer agora: minha
poesia não se parece com a poesia de ninguém. Enquanto eu me lia e
achava que a minha poesia não era muito diferente da poesia dos outros
poetas, durante o longo período em que este fato acontecia entre mim e os
meus poemas, eu não desejei publicar. Eu só quis publicar “O romance
do corpo” porque eu mesmo em primeiro lugar, e antes de qualquer pessoa,
achei que havia uma singularidade ali, uma mina de onde eu tirava uma água
só minha. Uma outra pessoa, lendo “O romance” pode até achar que não
é nada disso. Não importa. O que vale é que eu acredito neste livro que
escrevi. Esta deve ser a sinceridade do poeta. Buscar incessantemente o
novo, sem pressa, porque poesia é coisa séria, embora seja uma loucura
fazê-la. Um poeta não pode de jeito nenhum achar que tudo já foi dito.
Isto é um álibi perfeito pro beletrismo ou para a poesia daqueles que
parecem que escrevem porque viram Deus e voltaram contentes.
Alguém poderá dizer que muitas vezes me ocupo dos temas
aparentemente banais. E de fato aprendi isto com Manuel Bandeira. Já me
disseram que retomo os temas clássicos da poesia, como o amor, o corpo, o
tempo, a morte, como o grupo do Cartuxo
fez. Só que comecei a ler os poetas portugueses do Cartuxo
depois que meu amigo Vítor Hugo Adler Pereira me falou que viu muito da
poesia do João Miguel Fernandes Jorge na minha poesia. Aí fui lá
conhecer. O que quero dizer com estes exemplos é que eu aprendi muita
coisa com os poetas que amo.
Ler poesia então às vezes é igual estudar. Só que não é um estudo
qualquer. É o estudo de um soldado que sabe que vai pra guerra. A guerra
é a poesia. E na hora de guerrear quero distância dos livros. Mas faço
isso porque antes da guerra eu já estudei muito.
Enfim, pra fazer poesia é preciso muita coisa. Eu persigo esta
coisa. E os “mestres” travaram suas batalhas também. Saber como
fizeram isso pode ajudar. Mas cada um tem que lutar a sua luta. Ou pior
ainda: cada um, queira ou não queira, tem apenas a sua luta pra lutar.
2.
"Não tenho saudades da aurora da minha vida". Não acha que é
paradoxal o fato de não ter saudade da infância e a poesia ser um jogo lúdico
de criança? R:
Você não se esqueça do que Casimiro de Abreu já disse antes de mim.
Então quando digo que não tenho saudades da aurora da minha é porque
Casimiro de Abreu tinha. Ele achava a infância aquela beleza toda que os
anos não trazem mais. Não é o meu caso.
Não acho a poesia um jogo lúdico de criança. Mas acho que lanço
sim a todo momento perguntas que se dirigem ao território da infância. Há,
de fato, na minha poesia um caldo infantil, mas isso é uma construção.
Uma construção que não é porque é construção que é artificial.
Sim, porque a coisa vem também. Eu acredito na inspiração. Mas não é
porque eu acredito na inspiração que vou sair publicando qualquer merda
que me vem na cabeça. Talvez o jogo
da poesia pra mim esteja aí: eu desconfio tanto da inspiração quanto da
construção. Quando a coisa tá muito inspirada demais eu fico meio
preocupado. Mas também quando fica aquela poesia certinha, rimadinha, ou
então cheia de palavras bonitas, imagens surpreendentes, eu também
recuso isso. 3.
"Mentir é meu abismo:/sou um homem que não quer parar." Há um
pouco de filosofia pré-socrática nesta sua afirmação. O tempo é um
rio que não repete suas águas? R:
Sim. É. E mentindo também dizemos verdades. Como neste caso em que começo
um poema dizendo “o que sigo é o coração”. Mas este coração aqui
não aquele dos poetas do século passado, é um coração que não
pertence ao seu dono. Está lá no poema: “Quem é dono desse monstro,
dessa parte, desse grito,/ desse fato de que sou presa indistinta?” 4.
A poesia deve refletir a alma do poeta: "O que lhes prometo é o
retrato de minha alma,/muito embora saiba o que é retórica." As
promessas são para serem cumpridas? R:
Sim, deve refletir. Mas o que é a alma? No poema meu a que você se
refere ela só pode ser nomeada pelo que ela não é. Então, a alma aqui
“é quase nada”, é um grande ponto de interrogação. Se as promessas
são para serem cumpridas? Sei lá. Talvez fosse mais certo dizer que as
promessas existem como uma meta, um alvo. Todo dizer escapa de quem o diz.
Isto para a nossa imensa salvação e para a nossa desgraça também. Então
quando escrevo isso de retrato da minha alma, além do ponto de interrogação
que é a alma pra mim, existe também uma proposta de me afastar do
cabotinismo, daquela poesia enganosa e enganada que em outro poema eu
chamo de “engenharia de palavras”. 5.
Se perder para se encontrar: "quero me perder./Mas não com todas as
partes de mim." Se perder com algo que possa mostrar o caminho de
volta ou permanecer perdido vivendo o eterno devir? R:
Na poesia, me aproximo de uma espécie de desejo puro. Aquele mesmo desejo
que fez com que Antígona mandasse um “foda-se” pra tudo. Antígona é
a imagem de um impossível. Ela acha que perdeu tudo. Por isso quer tudo.
E perder tudo e ganhar tudo são coisas impossíveis. Só posso permanecer
neste território por alguns instantes, e mesmo assim nunca com todo o meu
corpo, e mesmo assim preciso das palavras para descer a este continente
submerso. 6.
Tem alguma epígrafe que o acompanhe pela vida? "Recorro aos
epigramas,/às manchas de café," Nas frases curtas, assim como nos
menores frascos, é que se
tem o melhor conteúdo? R:
Isso é engraçado. Eu sou mesmo frasista. Mas as frases a que recorro são
quase sempre as da filosofia de algibeira, aqueles ditos que ouvi
principalmente do meu pai. Meus amigos morrem de rir disso. Já tive
alunos que reservavam uma folha no final do caderno pra anotar essa
bobajada que eu repito às vezes por puro jogo. Mas isso é na vida. Na
poesia não. Não gosto de fazer gracinha na poesia. Mas, é curioso,
porque apesar disso alguns leitores meus vêem muito humor no que escrevo,
o que não é de modo algum premeditado. Acontece para a minha surpresa. A
atriz Cristina Mayrink, quando estava ensaiando um espetáculo com poemas
meus, do Pucheu, do Heitor Ferraz, do Antônio Cícero e do Caio Meira,
chamado Esta língua será da alma
para a alma, isso no ano passado, me falava disso: que há humor na
minha poesia. Eu olhava aquilo e achava estranho. Sim, porque eu não
tinha feito graça. Por outro lado, ela também não estava rindo de mim,
porque se dizia sinceramente tocada por aqueles poemas. Então cheguei à
conclusão de que era um riso triste, um rir pra não chorar. E não deu
outra. Quando a peça entrou em cartaz, naqueles momentos onde em tese
havia humor ninguém riu. Ou, se riram, riram por dentro ou pra dentro. Ou
então o riso não conseguiu sair pela boca. Morreu no nascedouro. 7.
"Não faço engenharia de palavras./Escrevo o que sinto." Qual a
importância da inspiração na sua poesia? R:
Eu acredito na inspiração. Podem dizer que isso é uma babaquice. Podem
dizer o que quiserem. Mas eu acredito nisso. Só que a inspiração não
faz sozinha o poema. Escrever um poema é também filosofar. É também
operar com o conhecimento. Por isso o poeta tem que pensar. O poeta não
pode ser burro. Porém, não basta ser inteligente para ser poeta. Sim, até
porque há muitos modos de ser inteligente. A poesia aborda o conhecimento
de um modo muito particular. Isso pra não dizer estranho. Poesia e
filosofia são vizinhas. Freud é um grande filósofo e sua obra invade o
terreno da poesia muitas vezes, embora o rigor teórico e o amor à
verdade o façam tantas vezes o perseguidor incansável de uma certa
precisão. Mas Freud sabe deter-se também, sabe refazer-se, retomar o já
dito, exatamente porque não há precisão. Sabe desfazer as fronteiras do
senso comum quando por exemplo mostra-se incapaz de delimitar as
fronteiras entre o masculino e o feminino. Nestas horas ele é um grande
filósofo. E, embora não faça poesia do ponto de vista formal, ele toma
da poesia algo fundamental: o modo de dizer modifica o dizer. E mais: o
poeta não pode se esquecer nunca de que a poesia é uma luz. Mas uma luz
que não ilumina tudo. Descemos às profundezas. Mas nosso facho de luz não
elimina as sombras da caverna e nem a caverna deixa de ser caverna só
porque somos poetas. 8.
Possuir é uma arte que poucos sabem dominar.
"Ter é o que mais dói"? R:
É. Poucos. Isto porque a gente quer mesmo é tudo. E pra sempre. A
diferença está no modo de lidar com esse querer. Esquecer a dor que
nunca é abolida completamente? Insistir em costurá-la a qualquer preço?
Tentar se haver com ela? Mover-se na direção do desejo apesar dela?
9.
A poesia atual é multiplicidade pura. O que deve haver num poema para lhe
agradar? R:
Sempre houve de tudo. O que acontece é que por razões as mais
variadas alguns poetas permanecem em destaque. A meu ver, o tempo faz
justiça mas faz injustiça também. Bilac, por exemplo, não me agrada.
Sou eternamente grato aos primeiros modernistas por terem dito deste
cultor da literatura de chá de senhoras o que disseram. Mas Bilac está aí
de volta, mais vivo do que nunca. Tudo bem. Ninguém é dono da poesia.
Nem eu quero este lamentável papel pra mim. Mas também não sou obrigado
a ficar quieto. Eu não gosto. Eu não leio mais Bilac. Eu acho que não
é poeta. A diferença é que não quero e nem poderia querer que todos
concordassem comigo. Tudo isso é pra dizer que nunca a subjetividade
poderá ser abolida completamente. Isto é: para cada um de nós um poema
tem que ter alguns traços para nos agradar. Não é verdade que tudo que
se diz que é poema é poema. Não. Mas também não é verdade que alguns
autores alcançam o Olimpo e passam a ser pra todos. Não concordo com
nenhuma das duas idéias.
Isto posto, vamos lá: o que que um poema tem que ter pra me
agradar. Um poema tem que ir além do que o senso comum considera o Belo,
ele tem que cavar fundo nesse território. Ele tem também, como já
disse, que indagar a verdade, questionar, e muitas vezes enxotar o que
também aqui o senso comum delimita como o Bem. E pra fazer isso o poeta
tem que descer, tem que fazer um trabalho nas profundezas. É uma busca
impossível. Impossível enquanto totalidade. Possível naquilo que de
provisório, precário e misterioso a poesia tem.
10.
Qual o papel do escritor na sociedade? R:
A literatura só me interessa enquanto possibilidade de indagar o
território do desejo, quando põe um ponto de interrogação aí. E a
partir deste vazio, desta pergunta, o escritor começa seu trabalho. É óbvio
que um escritor deve inquietar o leitor, e que eventualmente uma
literatura pode mover mundos e fundos. Mas eu, quando escrevo, não penso
nisso. Pensar nisso que normalmente chamam de “papel do escritor na
sociedade” me dá a impressão de que o escritor pode saber o que que é
bom pros outros. Dou um exemplo: o Poema sujo, do Gullar. Eu duvido que aquela maravilha tenha sido
escrita com o Gullar pensando no papel dele na sociedade, ou, pior ainda,
no quanto ele estaria fazendo um bem para a humanidade escrevendo aquele
poema. Quando leio o Poema sujo
me emociono porque está claro ali que acima de tudo há algo da realidade
que em primeiro lugar tocou o poeta em sua singularidade, há ali algo que
o afetou subjetivamente, e por isso ele pôs mãos à obra de escrever. É
isso então. Se há algum papel eu só poderia considerá-lo do ponto de
vista da afirmação de uma singularidade, a do poeta, neste caso, frente
aos outros discursos de nossa época que neste aspecto tanto se parecem,
porque quase sempre estão nos repetindo “quanto ao desejo, quanto ao
que lhes é mais próprio, podem esperar sentados”. |