ENTREVISTA COM IOSITO AGUIAR  

 

 

– Nasceu em abril de 1941 em Paramirim – Bahia – cidadezinha encravada às faldas da mágica Chapada Diamantina, onde cresceu ouvindo dentro da própria casa a subversão da semântica e esparramando a imaginação como as águas do rio que banha a cidade natal, descendo das serras para refrigerar a quentura da terra.

Além de poeta, escritor, é mais um aposentado brasileiro, tendo antes exercido o jornalismo, a publicidade, a cátedra na cadeira de literatura; foi micro-empresário na área de Comunicações; foi membro da Catequese Poética e juntamente com Lindolph Bell e demais companheiros, levou a poesia às ruas, bares, boates, clubes e estádios, isso tudo na década de 60. Participou da Antologia da  Catequese, tendo escrito:

            POESIA – Jô, o Andarilho (livros 1,2, e 3)

                               Opus Inconcluso

                            Anjo Silencioso – Contraponto Elegíaco à Rilke

                            Ailina - Auto de Amor

                            Poetamente (em preparo)

                          In Illo Tempore (no prelo)

          PROSA – Ravina (Romance)

                          Menino-Espantalho (Memorabília)

                          Tio Nochas – Havenças e Revivências (romance)

                          Espectadores da Eternidade I (romance)

                          Mumú das Arábias (em preparo)

                          Espectadores da Eternidade II (em preparo)

Apesar de todos os reveses ainda acredita poder compartilhar sem reservas os frutos da sua linguagem, levando à sério a afirmação de Ungaretti com relação à Literatura: “La segretezza sempre avvolto i suoi riti misterici i há contribuito a creare una grande suggestione intorno allá figura di questa dea dalle antichissime origini”.

 

Iosito Aguiar

 

Entrevistado por Rodrigo de Souza Leão

 

1 – Qual a lembrança mais tenra que tem do contato com a literatura?

R – A lembrança mais tenra de meu contato com a literatura vem dos tempos de criança. E como na época fui considerado uma espécie de fenômeno por ter aprendido a ler aos dois anos de idade, nas férias passadas na fazenda de meu Avohai (igual ao de Zé Ramalho), o véio também se chamava Raimundo, as pessoas me pediam para ler-lhes livretos de Cordel. Na festa de N.S.de Canabravinha, povoado próximo de Paramirim (minha cidade natal às faldas da mágica Chapada Diamantina – Bahia), havia os cantadores, violeiros que trocavam farpas em desafios ou interpretavam versos de autores mais famosos. Conto isso na ODE VI – Na Festa de Canabravinha – do meu livro IN ILLO TEMPORE:

Ode VI

Na festa de Canabravinha

 

 

In Illo Tempore

Como no País dos Mourões

O velho Pedro Bode tirou o chapéu

Limpou a garganta e cuspiu de lado

Parecendo não perceber a indignação

No olhar de Don Arlinda:

-    Cheguei ind’agorinha mermo de Canabravinha, sinhá!

     Trago um recado prau seo Nonô

    Apim de Zeca manda dizê

    Qui ta isperano seu adjutório pra festa

    É prau sinhô incumendá ni Lindolfim de Anáia

   Uma dúzia daquelas ronqueiras qui o sinhô sabe

    Iguá as mermas daquele ano quano ele foi festero de premera veiz.

   A muié de Apim, a Maria de Sá Liobina

   Manda pedir pra S’Arlinda lhe comprar

  Trinta e seis metros da bulgariana que a sinhora sabe

  Eu mermo devo de leva e me vô as quatro

O velho Nonô considerava de grande perigo

As ronqueiras que o Apim pedia

Sua explosões fariam rolar pedras da montanha

Podendo até derrubar a velha igreja

Mas se era isso que Apim queria?

Que fosse feita a sua vontade

A bulgariana era para Tonha de Germiniano da Vargem

Costurar as camisas dos integrantes da Cavalaria Mourana

Apim queria uma festa nos conformes

Até já pedira à seo Archimimo, o prefeito

Uns cascabulhos nos atoleiros da estrada

Para que o carro do padre Benvindo

Pudesse passar sem perigo

Não iria fazer feio ante festeiros da oposição

Que seo Cazuza providenciasse

Pra que o professor Majó-de-Beata

Não saísse de Cachoeira

Mode evitar que ele viesse fazer discursos contra o padre

Na missa de Nossa Senhora

Apim tomava todas as providências

Para evitar qualquer furdunço

Até Chiquinha-de mãe-Zefa já mandara avisar

Que os assados naquele ano

Seriam por conta “de mô fi Bitonho”

Que morava num sítio do Rabudo

Era uma promessa de Zuína e Marciana

Que ela se dispusera a cumprir:

Quando as meninas vinham de um baile

Na casa de João do Poço e fora atacadas

Pelo Lobisomem do Tio Antônio

Uma premessa pra N.S. foi a Valença”

Bitonho “devia de cuida”dos assados por cinco anos

No meio da multidão zaranza

Entre as barracas da festa

Violeiros resolveram soltar a voz:

Cuma a luz pela vidraça

Entra e sai sem tocá nela

Assim foi Nossa Sinhora

Pariu e ficou donzela”

Apesar da pouca criatividade dos cantadores

Cujos versos eram de um poeta já morto

O tema despertou a atenção geral

E uma multidão se formou em torno da dupla

Tem duas coisas no mundo

Q’eu nunca pude entende

Uma é padre ir prau inferno

Outra é doto morre”.

O linguajar barroco dos versos de Inácio da Catingueira

Tocavam a alma simples daqueles sertanejos em festa

Levando Dé Catunda a comentar com seo Sinfrônio:

-Quero mais é vê quano chega nas patuscadas!

 -Não se arrelie seo Dé qui cunheço essa cantoria

 o veio Inaço só fazia versos de premera!

“Seo Romano da Mãe-d’água

 De fala branca e macia

 Quano pisa na catinga

 Nem folha seca não chia”

A sagacidade manobreira dos cordelistas com as palavras

Causavam-me o maior encanto

Aquela noite de festa em Canabravinha

Ficou gravada em mim para sempre

Foi quando descobri que as palavras

Podiam realizar tudo o que desejássemos

No princípio era o Verbo, lembram-se?

Naquela noite minha curiosidade substituíra

O sentimento de presságio opressivo que me assaltara

Quando papai dissera que as ronqueiras de Apim

Poderiam derrubar a igreja

Os dois homens cantavam e a multidão se deleitava

Enquanto eu tinha minha primeira visão da arte

A noite revelava sua grande paz

Numa sondagem interior eu contatara

A mente do meu primeiro despertar

Mente elementar a mim revelada

Pelo contato com a magia daquela noite

Contato sutil e penetrante a mostrar-me

O padrão do poeta que mais tarde deveria surgir

Papai que já sabia de tudo

Não assistiria ao reencontro secreto

Entre o homem e o poeta.

 

 

      Depois vieram os livros de Monteiro Lobato. No livro de leituras de Erasmo Braga, descobri outros autores. Papai os mandava vir para mim de São Paulo ou Salvador. Eu lia tudo avidamente, inclusive os almanaques de Capivarol e do Pensamento. Mas o deslumbramento total só aconteceu quando descobri Camões, Fagundes Varela, Castro Alves, Cláudio Manoel da COsta, Drummond, Vininha, Dora Ferreira da Silva e uma ruma danada de poetas maravilhosos.

 

2 – Há poetas que dizem que a poesia é o nada. Como lhe parece esta Questão?

 

De Nihilistas e cearenses ninguém escapa. É que em qualquer lugar do mundo onde você vá, sempre encontrará um cearense por perto. Certa feita, no ano de 68, eu estava fazendo uma reportagem na Espanha sobre “gitanos” e “Cante Hondo”. À noite fui numa Tasca típica da cidade de Sacromonte, para uma espécie de campeonato de flamenco. Enquanto aguardávamos o início do espetáculo, o amigo e pintor espanhol Don Guajardo Fajardo, explicava-me algumas características da cultura local, quando se aproximou da nossa mesa um cabra vestido de cigano, argolas de pirata nas orelhas, lenço vermelho amarrado na cabeça, tapa-olho de couro preto cobrindo o olho esquerdo e um bigodão desabado e se apresentou com o mais perfeito e puro sotaque cearense: “Sou Marcelino Lira, maitre do lugar e gostaria de sugerir ao patrício nossa fritada de frutos do mar, acompanhada do tinto local”. Espantado perguntei: “Um brasileiro aqui! E você de onde é?”

-        Sou de Roussas, Ceará, graças à Deus! E estou por aqui há cinco anos?

Pois é, o cearense nos forneceu uma fritada maravilhosa e um vinho tinto soberbo. Foi uma noitada e tanto. Mas, como eu dizia, ninguém escapa dos Nihilistas. Para estragar nossa noite de Sacromonte, um poeta local de nome Germinal de Amor, era assim que o cabra se assinava, passou toda a noite grudado em nós, nos enchouriçando com sua crença no nada e que invalidava, Garcia Lorca, Rafael Alberti e até François Viñon. Ao contrário dessa gente chata, a poesia para mim é tudo: é profecia, é oráculo, é graça, é beleza, é vida. Vida! É isso.

 

3 – O que a poesia lhe deu de mais caro? O que lhe tirou de mais precioso?

 

      A poesia é minha razão de ser. Sinto-me envaidecido por ter sido um dos escolhidos do pai Apolo, mode receber o epós. Acho que o meu bem mais precioso era a inocência e, esta me foi arrebatada quando ouvi e entendi um repentista pela primeira vez: “MENINAS, MINHAS MENINAS/ VÃO FAZER O QUE DEUS MANDOU/ ENCOSTAR PÊLO COM PÊLO/ EMBAIXO DO COBERTOR”.

 

4 – Alexei Bueno diz que a poesia de hoje é “coco de cabrito”, sequinha e idêntica. Concorda?

 

Alexei Bueno não deixa de ter seus motivos. Após o advento da Internet, o que tem de poemas ruins circulando, é uma glória! Mas gostaria de lembrar que os verdadeiros vates, aqueles fabbro do verso, de quando em vez, deixassem de lado sua Anfictiônia Helênica, deixassem de bestagens e se aforçurassem em nos conceder sua placença no convívio diário. No geral, eles estão sempre no over-acting, cheios de mogúncias e bogúncias nas suas turris ebúrneas que, nem se lembram de que em verdade, o povo é tudo. É a grei que permite a seleção da raça, até os poetas. E que apesar dos poetas o povo continua produzindo poesia, cordel, etc. É dessa diversidade – como diria mestre Francisco Galvão – que chegamos à qualidade de um Alexei. Mao Tse Tung tinha toda razão. Apenas é minha crença de que o povo e sua poesia de botequim, deva ser mais respeitado.

 

5 – É possível viver de literatura no Brasil? Quem é o escritor brasileiro? Como vive?

 

Há um mistério na aceitação de uma obra literária que, a única pessoa que poderia nos esclarecer, infelizmente já passou para o andar de cima, refiro-me ao meu mestre, Adolfo Casais Monteiro. De repente, aceita-se um livro e pronto. Não é o caso de se julgar autor e obra. Trata-se de um fenômeno que circula de boca a ouvido e pronto. Não há explicação intelectualóide que resolva. Vi muitos colegas de redação indignados com a fama de um Jorge Amado, Vinícius de Moraes, Cabral de Mello Neto, Paulo Coelho, José Mauro de Vasconcelos. E quanto mais eles ironizavam estes autores, mais eles (os autores) vendiam. E daí? Nenhum dos críticos que conheci falavam bem de um Jorge Amado, Paulo Coelho, Zé Mauro de Vasconcelos, etc. E estes, apesar et pour cause dos críticos continuaram a vender bem, graças à Deus. Há uns poucos escritores que conseguem viver e bem da sua obra. Gente como Gilberto Freire ou Sérgio Buarque de Holanda não conta. Freire fazia parte da aristocracia açucareira, assim como, o Manuel Bandeira; Sérgio foi competentíssimo professor, e este mister sustentou a si e sua prole, embora seus livros estejam entre os mais importantes produzidos no país em todos os tempos. Mas temos escritores como o João Ubaldo, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Paulo Coelho e outros agraciados pelos deuses, que conseguem viver de escrever. Verdadeiramente em se tratando de Brasil é um milagre.

 

6 – Existe crítica no Brasil? Quem é o grande crítico brasileiro? A crítica foi para a Universidade? O que a Universidade deve à Sociedade?

 

Apesar do boicote de certos órgãos de imprensa, existem entre nós críticos do mais alto coturno. Falo de um João Alexandre Barbosa, Wilson Martins, Peter Rautmann, Willi Bolle, Márcio Seligman Silva, Nicolau Sevcenko, André Seffrin, Miguel Sanches Neto, Wilson Bueno, Jefferson Del Rios, Aleilton Fonseca e mais uma ruma danada de gente boa. Existem vários grandes críticos brasileiros e só para citar, lembro do professor doutor João Alexandre Barbosa, Wilson Martins, Gerana Demulakis, Dalila Teles Vera, etc. Por deficiência de veiculação (ou desinteresse mesmo) a crítica quase que circunscreve-se aos domínios da Universidade e sua produção acadêmica que, nada traz de novo como concepção inovadora. Os acadêmicos (salvo as exceções) estão transformando o livro em refém da teoria. Passam seu tempo desconstruindo obras e o que chega ao público, vem numa linguagem tão escalafobética, que levou o lendário jornalista Remo Pangella a exclamar: “Mas será que alguém normal se interessa por este tipo de escrita?”

      A Universidade de todos ao países e, principalmente, a brasileira nos deve muito. Ungaretti quando se referiu ao tema, disse entre triste e desolado: “La segretezza sempre avvolto i suoi riti misterici há contribuito a creare uma grande suggestione intorno allá figura di questa dea dalle antichissime origini”. A deusa é a literatura que a Universidade busca transformar realmente em algo misteriosíssimo.

 

7 – Com quantas metáforas se faz um poema?

 

Foi Homero, o poeta mendigo, que disse ser a poesia uma eterna METAPHORÁ. Assim sendo, a pergunta não tem sentido. Ficar girando em torno de alguns astuciados da memória só para entreter e encantar os leitores, não faz o menor sentido, não é mesmo?

 

8 – Qual a importância de Gerardo Mello Mourão para a nossa poesia?

 

O véi Gerardo (meu amigo e mestre) sempre violou despudoradamente os pseudos limites entre a prosa e a poesia. Tendo por lema eleuterìa e confiando plenamente nas lições de Lautréamont e Rimbaud, desde seus tempos de jornalista, vem transitando livremente entre prosa e poesia. A tribo dos Mellos Mourões é, talvez, a maior árvore tribal do nordeste brasileiro, e Gerardo o seu maior representante.

      Houve quem tentasse catalogar o poeta-vaqueiro cearense entre os dionisíacos (no sentido de barroco). Apesar de ter-se confessado membro da troupe de Bacco, Gerardo é e sempre foi um poeta apolíneo (no sentido de clássico). Qual promeneur distraído e confiante de seu epós, Gerardo vaga da epopéia ao Cordel, com a nonchalance de que só um boiadeiro é capaz. Nada há de paroquial ou folclórico na sua obra. A sua última criação: A SUÍTE DO COURO, é prova inconteste dessa afirmção.

      Sem nenhuma timidez, afirmo que Gerardo Mello Mourão é um dos maiores poetas da raça. Como um verdadeiro filho de Apolo, ele lança mão dos elementos telúricos do Brasil e do país do Siarah Grande, mistura tudo com a tradição da Hélade, e o arsenal mitológico que emerge das suas criações, nada têm a ver com as figuras de gesso de certos pretensos clássicos. Como já foi dito: “Há uma raça de homens e uma raça  dos deuses e a raça dos que tocam pelos bosques as músicas dos deuses”. Como disse o saudoso Nogueira Moutinho, é a esta última que Gerardo Mello Mourão pertence.

 

9 – Tem algum mote?

 

Acho que este mote quer significar algumas coisas:

                        Por dádiva do pai Apolo

                        Ser dono do próprio epós...

 

10 – Qual o papel do escritor na sociedade?

 

Esses heróis (escritores e poetas) que tentam imortalizar no espaço da página suas criações, com memórias da pátria e sua gente, são como disse Keats, “a think of beauty, a joy forever”. A sociedade brasileira não sabe disso e mais eu não digo.

 

                                            v o l t a