Balacobaco

ENTREVISTA COM NELSON ASCHER
Nelson  Ascher  nasceu  em São Paulo em  58,  filho  de  pais
húngaros.  Fez quase um ano de Medicina (no jornal do  centro
acadêmico  dessa faculdade publicou seu primeiro artigo,  que
falava  de J.L.Borges) e depois ingressou na Fundação Getúlio
Vargas de SP, onde se formou. Nessa época (final dos anos 70)
publicou,  no  Jornal da Tarde sua primeira resenha  e,  numa
revista  feita  na USP, suas primeiras traduções  de  poesia.
Cursou, em seguida, o Mestrado em Comunicação e Semiótica  na
PUC, passou a escrever para a Folha de São Paulo, publicou um
livro  de  poemas, Ponta da Língua (edição do  autor,  83)  e
começou  a  trabalhar nesse mesmo jornal. Foi  editorialista,
coordenador da seção de livros e editor do Folhetim, escreveu
crítica  literária, cinematográfica etc.. Em  88/89  criou  a
Revista  USP e se tornou seu editor, cargo no qual permaneceu
até  94. Desde 89, quando  visitou o Leste europeu e assistiu
à  queda  dos  regimes comunistas da região,  escreve  também
sobre política internacional. Seus livros mais recentes  são:
O  Sonho da Razão (93) e Algo de Sol (96), ambos de poesia  e
publicados  pela Editora 34; Pomos da Discórdia (93,  Editora
34)  e  Crítica  (Não  Só) Literária (Editora  Cone  Sul,  no
prelo),  os  dois reunindo ensaios e artigos; O Lado  Obscuro
(96, Memorial da América Latina) e Poesia Alheia (98, Editora
Imago),  os  dois  coletando traduções. Em 99  participou  da
tradução  de  A Dama de Espadas, de Púchkin Editora  34),  de
Alice  no  País das Maravilhas (Editora do Colégio Objetivo)e
das obras de Borges (Editora Globo). Coordena uma coleção  de
literatura do Leste europeu na Editora 34, ganhou  uma  bolsa
Vitae  em  97  e foi também correspondente de  uma  rádio  de
Budapeste, Hungria.5

Balacobaco - Você afirmou em matéria na Folha:  “Ser  hoje
contra ou a favor de Gregório implica principalmente tomar
partido num debate sobre o barroco, seu significado e  sua
relevância  para a literatura moderna.” Qual a importância
do  barroco  para  a  literatura  brasileira?  Quem  é   o
verdadeiro  Gregório de Matos? É um gênio ou um plagiário?
Um bom ladrão ou um bandido?
Nelson  Ascher – Faz algum tempo que escrevi  esse  texto,
mas,  se  estou  bem lembrado, eu tinha em mente  tanto  a
assim  chamada “questão gregoriana”, quanto o papel que  a
reavaliação do barroco desempenhou, sobretudo nos anos 20,
na  trajetória de alguns modernismos, mais especificamente
os de língua inglesa (com a atenção que, por exemplo, T.S.
Eliot dera a John Donne e aos outros poetas “metafísicos”)
e  espanhola (o próprio nome da Geração de 27  comemora  o
tricentenário  da  morte  de  Góngora  e  é   tomado   das
celebrações  realizadas em 1927 por García  Lorca,  Dámaso
Alonso e outros). Nenhuma escola, época ou estilo é bom ou
ruim por si só. E o mesmo acontece com o barroco, que  tem
momentos  esplêndidos  e  outros, deploráveis.  Na  língua
portuguesa e, especificamente no Brasil, o barroco  sofreu
por  mais  tempo do que nos países/línguas  acima  de  uma
rejeição  em  bloco. E Gregório, por ser (ou  representar)
não exatamente um poeta, mas um conjunto de poemas mais ou
menos  atribuídos a um autor a respeito de quem  pouco  se
sabe, acabou amargando mais uma rejeição. Além disso, esse
poeta,  ou melhor, esses poemas foram atingidos pelo  fogo
cruzado de mais uma questão, qual seja, a de quando começa
independentemente uma literatura brasileira que não é mais
ou  tão somente uma sub-seção da lusitana. Para finalizar,
sempre reaparece a famosa discussão acerca do plágio,  mas
as respostas clássicas para isso são, primeiro, que não  é
fácil  acusar  de plagiário um autor que virtualmente  não
deixou manuscritos autógrafos ou obras publicadas em  vida
e, depois, que, como vem colocada, a acusação de plágio se
fundamenta  num conceito de originalidade que é  posterior
ao  barroco.  São,  como se pode ver,  vários  debates  se
entrecruzando.  Seja  como for, nosso  modernismo  deve  a
alguns outros que, por sua vez, devem não ao barroco,  mas
a  uma  releitura  dele. O que vários poetas  e  ensaístas
passaram  a  colocar, não necessariamente  nesses  termos,
seria  a  indagação de por que deveríamos  nos  nutrir  do
barroco  inglês  ou ibérico em vez de ir  direto  ao  que,
naquela época, se fez em nossa língua. A partir daí  temos
várias  leituras, seja de nosso barroco, seja do Gregório.
Para  quem lê e/ou faz poesia, porém, uma coisa só  é  que
conta:  sob  o nome dele existe um número nada desprezível
de  poemas  que vale a pena freqüentar e com os  quais  há
muito  o  que  aprender.  As outras  questões,  parece-me,
pertencem  mais  à  comunidade acadêmica,  aos  filólogos,
historiadores etc., e é a eles que cabe resolvê-las. P
B - ``Pomos da Discórdia'' é um livro de ensaios. Há idade
certa   para  escrever  poemas,  novela,  conto,  romance,
ensaio?
NA  -  Sim  e  não.  Na  história da  literatura  pode-se,
obviamente,  achar  de  tudo.  Eu  diria,  porém,  que  os
instrumentos  necessários para se escrever  um  bom  poema
podem  ser  obtidos  ou dominados relativamente  cedo  por
alguém.  O  mesmo vale para um conto ou um  breve  romance
poético.  Um grande romance, que não o seja só no  tamanho
mas  também  na  extensão do que revela,  mostra,  discute
etc., requer mais tempo, vivência, experiência. Isso   não
é  uma  regra: só uma constatação pragmática.  É  possível
escrever  um romance a partir de um mínimo de conhecimento
da realidade, do mundo, do que quer que seja. Acontece que
os mestres do passado nos legaram, nessa área, uma herança
difícil.  A forma romance pressupõe, até certo  ponto,  um
mergulho longo e profundo numa multiplicidade de coisas  e
fatos  e,  para que um romance mais ou menos se justifique
diante do leitor, ele precisará, digamos, mostrar serviço.
Um  romancista culto deve ser capaz de fazer tudo o que um
autor  de best-sellers faz, e mais. E um autor de romances
comerciais  é  capaz  de  falar,  entre  duas  capas,   de
política,  sexo,  trabalho, mecânica de carros  e  aviões,
construção de bombas nucleares e deus sabe mais o quê. Por
que  um  romancista “culto” e “literário” não deveria  ser
capaz  de nos oferecer pelos menos isso? No geral,  porém,
não  creio que haja idade e cada qual de nós deve arriscar
o  máximo o quanto antes, já que ninguém sabe quanto tempo
ainda  lhe  resta. E se alguém que o fez acabou escrevendo
algo ruim, bom, isso não é crime: mãos à obra e tentar  de
novo, até dar certo. Ou não. Porque em nenhum desses ramos
os   resultados  são  garantidos.  As  coisas  variam   de
indivíduo para indivíduo e, ademais, cabe levar em conta o
inesperado,  a  sorte ou o azar, enfim, o que  antigamente
chamávamos de destino.
B  -  Hoje  o  Poeta  é um erudito. Fala  várias  línguas,
traduz,  escreve  ensaios... Qual  o  real  valor  de  uma
formação  tão sólida? A poesia necessita de tanta erudição
para acontecer? O poeta virou um burguês?
NA – Novamente, tenho que apontar que há lugar para tudo e
todos.  Conheço bons poetas não eruditos e  vice-versa.  O
próprio  conceito  de  erudição é  complicado.  Creio  que
muitos poetas aprendem línguas e lêem autores estrangeiros
justamente para tentar sair da camisa-de-sete-varas em que
nossos  antecessores nos colocaram. Um poeta como Drummond
fez  tanta coisa –e tão bem- que,  para quem quer escrever
seus  próprios  poemas,  isso se torna  quase  assustador,
castrante  mesmo:  “O que existe ainda  para  se  escrever
depois  dele  (ou de Bandeira, Cabral, Vinícius,  Haroldo,
Décio,  Augusto, Gullar)?” Quando parece  não  haver  mais
saída,   visitar  outras  épocas  ou  lugares   é   sempre
refrescante. No meu caso, falar algumas línguas tem  menos
a  ver com uma formação sólida (que não julgo ter) do  que
seja  com  o  fato  de  eu ser filho de  estrangeiros  (e,
portanto,  bilíngue desde casa), seja com o de eu  ter  me
interessado  na  adolescência por coisas  e  autores  cujo
acesso  em  português não era tão fácil. Por  outro  lado,
acho  sim  que,  numa  área, o  poeta  deve  ter  uma  boa
formação:  em poesia. E essa se consegue lendo  e  relendo
poetas,  novos  ou  velhos, bons ou  ruins,  nacionais  ou
estrangeiros. Imagino que um poeta, antes de escrever  uma
única  linha, seja aquele que gosta de poesia,  porque  lê
poesia,  tem  o gosto pelo que outros escreveram,  decorou
poemas  de  Camões  ou Castro Alves ou Mario  de  Andrade,
tanto  faz. O poeta, imagino, quer ser poeta porque, antes
de  mais  nada, gosta realmente do que os outros  fizeram,
fazem,  acha  tudo  isso  legal,  importante.  É  a  única
formação que se requer de um poeta. O que vier além  disso
pode  ser  importante para ele, mas  só  o  será  para  os
leitores  se  ele fizer bom uso de tudo o que  sabe  -  em
termos  de  poesia, bem entendido. Não creio assim  que  o
poeta tenha virado um burguês, ainda mais porque, num país
como  o  nosso,  cuja burguesia é grossa e crassa,  nem  a
erudição  nem  a  cultura podem ser  considerados  valores
burgueses. Não faz tanto tempo assim, saber das coisas era
tido  como  progressista e informar delas  os  outros  era
chamado de revolucionário.
B  -  O  que você sente quando escreve um poema? O  que  o
poeta  deve  sentir? Quais os caminhos que a sensibilidade
não  deve penetrar... sob pena de o poeta estar escrevendo
algo  aquém  de  sua capacidade? Como  é  o  seu  processo
criativo?
NA – Primeiro, não há “o que deve sentir”: cada qual sente
coisas  diferentes  em  horas diferentes.  Quando  escrevo
prosa,  geralmente me sinto à vontade, exceto pelo  aperto
do “deadline”. Já escrever poesia é algo que, por requerer
mais  concentração, me exaure. Às vezes, quando acho  que,
aqui  e  ali, consegui algo interessante, sinto-me até  um
tanto  eufórico  (mas  isso  logo  passa:  bastam  algumas
releituras). Quanto aos caminhos penetráveis ou não,  isso
também  é  muito  pessoal. Alguns poetas  e/ou  escritores
derivam  boa matéria-prima para seus textos de êxtases  ou
impasses  amorosos, enquanto o resultado, para  outros,  é
paralisia  ou  mudez em um dos/ou em ambos os  casos.  Dos
grandes  poetas  esperamos, habitualmente, não  respostas,
mas   pelo  menos  um  vocabulário  para  nossas  próprias
experiências.  Até  que  ponto, porém,  encontraremos  uma
parcela  desse vocabulário em um poeta, mais um  pouco  em
outro  e assim por diante é algo que, de leitor em leitor,
muda  bastante  e,  obviamente, muda no  correr  do  tempo
dentro  de cada leitor específico. Nada impede que, diante
da  perda  de  alguém querido, uma pessoa repita  para  si
mesma o verso de Baudelaire “Le printemps adorable á perdu
son  odeur”  (mesmo  que seja outono) e  que  outro  diga,
digamos,  “De  repente,  não  mais  que  de  repente”.   O
problema de tentar generalizar quando se fala em poesia  é
que,  sempre que parece que chegamos a uma regra absoluta,
ocorre-nos imediatamente um exemplo óbvio e notório que  a
contradiz.
Meu  processo criativo (de poemas), se é que tenho  um,  é
algo  relacionado com os estados obsessivos. Parto de  uma
idéia,  uma  palavra,  algo que  vi  ou  até  –pecado  dos
pecados!-  de  uma encomenda específica  (“Você  não  quer
escrever um poema sobre futebol para ser publicado durante
a   copa  de  94,  ou  sobre  La  Fontaine  para  sair  no
tricentenário do nascimento dele?”) e aí começo  a  pensar
no   assunto   de  várias  formas:  racional,  irracional,
semântica, sonora, pessoal, impessoal,  livre-associativa,
delirante.  Acumulo  palavras, dados, coisas  irrelevantes
etc.  Num  determinado  momento começo  mais  ou  menos  a
entrever o que poderíamos chamar de uma forma, que mais do
que  com  metro,  rima etc., tem a ver com  o  desenho  da
frase.   Essas   coisas,  escrevo  à  mão;   vou   abrindo
parênteses,  colchetes, cobrindo o  papel  na  horizontal,
vertical,  de  formas oblíquas e assim por diante.  Quando
chego  finalmente a algo rudimentar, mas que tem, na minha
concepção,  começo, meio e fim, aí eu  passo  o  resultado
para  meu  computador (antes era a máquina  de  escrever),
imprimo  e  continuo  a  anotar  e  corrigir  numa   cópia
impressa. Quando esta já beira a ininteligibilidade, passo
as  correções  para  o  computador e continuo  no  “print”
seguinte.  O central para mim, no entanto, é  o  que  faço
antes   de   ir  ao  computador,  pois  isso  requer   uma
concentração  mais  ou menos ininterrompível.  Depois  que
consegui “configurar” o poema, ele passa a ser, para  mim,
algo que existe independentemente e eu posso entrar e sair
dele  mais  ou menos à vontade, retocando-o de  tempos  em
tempos até que alcance não um estado de “acabado”, mas  de
“apresentável”. Mesmo assim, não raro, continuo a  alterá-
lo  por  muito tempo, mesmo depois de publicado, pois  não
acredito na idéia de poema “ideal”, “perfeito” etc.
B  -  José  Paulo  Paes dizia que poesia é  talento.  João
Cabral  de  Mello Neto afirma que é trabalho. Como  encara
esta divergência?
NA  -  É uma velha discussão, mas confesso que não consigo
ver  qualquer  contraposição ento re as duas  coisas,  uma
situação de “ou ou”. Não há ramo ou atividade em  que  não
esperemos  de um bom profissional tanto talento  quanto  a
aplicação,  o  trabalho.  Uma cozinheira,  um  médico,  um
mecânico, um vendedor podem ser talentosos, mas  isso  não
os  exime  de  terem  que  aprender,  estudar,  dar  duro,
trabalhar  pesado  .  Por que isso não  se  aplicaria  aos
poetas?  Um  bom médico salva vidas, uma boa cozinheira  é
capaz  de  nos  dar prazeres maiores do  que  a  média  da
poesia,  um  mecânico lida com complicações  inimagináveis
para o comum dos mortais e um vendedor de verdade pode nos
fazer  comprar coisas que nunca sonhamos ter. Se um  poeta
for bom o bastante para se equiparar, em seu ramo, com  os
melhores  dentre esses outros profissionais, ele  deve  se
considerar feliz. A poesia é uma atividade, nem melhor nem
pior  do  que  as  outras, e requer  competência  inata  e
adquirida,  dedicação,  paciência,  esforço,  inteligência
etc.
B  -  Numa  crítica ao seu livro ``Algo de Sol'',  Marcelo
Coelho   afirma  que  a  sua  poética  “persegue   o   que
desapareceu  e  se sente perseguida pelo que  desaparece.”
Como é o ser e o não ser ao mesmo tempo? Os fantasmas  não
são  apenas parte do passado? Qual o lugar do devir em sua
poética?
NA  –  Na minha infância, minha mãe e minha avó, que  eram
herdeiras  de um longa tradição narrativa centro européia,
contavam-me (como muitas mães e avós sempre fizeram, fazem
e  farão) contos-de-fada. Ambas eram grandes contadoras de
estórias.  Às  vezes,  contudo, elas estavam  ocupadas  ou
cansadas e, então, meu pai as substituía. As estórias  que
ele  contava eram diferentes, eram quase histórias,  quase
História:  o  cavalo de Tróia; Rômulo, Remo e  a  Loba  de
Roma;  a  Grande  Armada espanhola que  tentou  invadir  a
Inglaterra;  Napoleão  em  Waterloo.  Com  o  tempo   essa
história  foi  chegando mais perto do presente  e  ficando
mais  detalhada.  Talvez  venha  daí  meu  interesse  pela
história em geral e a da minha família em particular. Além
disso,  ontem eu tinha 20 anos, anteontem 5, e hoje  tenho
41.  Há  pessoas com as quais, ainda há pouco,  eu  estava
conversando e já faz anos que elas não existem mais.  Isso
me deixa pasmo. Minto: isso me apavora, me deprime. Mas eu
sou  feito  disso,  nem  conheço qualquer  outro  tipo  de
transcendência  nem,  a rigor, nada  mais  importante.  Há
coisas, poucas e muitas, que só eu vi ou ouvi, coisas  que
existiram, frases que pessoas disseram e que só  ecoam  em
mim,  para mim, através de mim. Saber disso é um tormento.
Poder  esquecê-lo  é um pesadelo. A possibilidade  não  de
perder  a  memória mas de nunca a ter possuído parece,  às
vezes,  uma  bênção.  Que  eu saiba,  segundo  a  teologia
judaica,  a  alma  não é imortal, e a  dos  mortos  existe
enquanto  alguém  vivo lembrar-se deles. Trata-se  de  uma
responsabilidade   pesada:  esquecer  equivale   a   matar
novamente  os  mortos. É dos fantasmas deles,  porém,  que
somos  em boa parte constituídos: se nos livramos de todas
as  aparições,  tornamo-nos uma também.  O  devir,  assim,
existe  apenas como aquilo que estamos fazendo; produzi-lo
é,  em  grande  medida, passar adiante  o  que  recebemos.
Lembrar é produzir a possibilidade de futuro.
B - Transformar acontecimentos corriqueiros em poema é uma
das  características dos grandes poetas modernos. No poema
“Hölderlin”,  uma  baixa  de voltagem  é  transformada  em
acontecimento “fenomenal”. A poesia é isso tudo  que  está
no  poema  “Hölderlin” ou é apenas o nada? Ou isto  é  uma
discussãoestapafúrdia?

NA  –  Concordo. Algo que diferencia a poesia moderna  das
anteriores  (embora  esse juízo não deva  ser  considerado
absoluto  ou  taxativo) é a recusa de hierarquizar  fatos,
acontecimentos,  coisas, palavras, estilos  etc.,  dizendo
que  estes são mais nobres e, portanto, dignos de  atenção
poética,  enquanto aqueles não o são. Nisto a  modernidade
poética   decorre,  como  se  sabe,  de  alterações   mais
profundas,  do  colapso  mesmo  de  uma  visão   teológica
(metafísica, diria Heidegger) que, para começar, postulava
uma  hierarquia da realidade na qual Deus estava acima dos
homens,  esses dos animais, os animais das  plantas  e  as
plantas,  do  seres inanimados; o eterno estava  acima  do
temporal, a poesia épica, da lírica, esta acima da  prosa,
a  prosa,  da  fala  quotidiana, o  cão  estava  acima  do
cachorro,  e  as  plumas, das penas. O poema  “Hölderlin”,
como o leio (um direito meu, apesar de tê-lo escrito, mas,
ao mesmo tempo, uma leitura como a de qualquer outro e que
nem   por   ser   minha   detém  mais  autoridade),   fala
metaforicamente  e, assim, em dois planos.  Num  deles,  o
assunto é a trajetória e, mais do que isso, o desfecho  da
trajetória  do  poeta  alemão, ou seja,  sua  loucura.  No
outro,  que  existe  enquanto  comparação  em  relação  ao
primeiro, o tema é uma lâmpada que se queima e o ruído que
ela  faz.  Talvez seja interessante dizer como essas  duas
coisas  se  combinaram (até onde se  possa  crer  seja  na
sinceridade da minha versão, seja simplesmente na acuidade
de  minha  memória)  em algum lugar no interior  de  minha
caixa  craniana. Anos antes de escrever o poema eu  estava
deitado  num sofá da minha sala, à noite, lendo  um  livro
(não recordo mais qual) quando (não havia nem em casa  nem
na  rua qualquer outro ruído) meio que (esse “meio que”  é
importante)   entreouvi  um  zunido  contínuo,   elétrico,
metálico, um pouco tristonho. Durou, talvez, um segundo ou
dois,  se tanto. Houve um clarão súbito, brevíssimo,  e  a
lâmpada  do  abajur  que estava atrás de  mim  se  apagou,
queimada.  Essa experiência, ou melhor, constatação  ficou
arquivada  em  meus neurônios. Muito depois eu  escrevi  a
“orelha” para as belíssimas traduções do Hölderlin  que  o
Antonio  Medina Rodriguez ia publicar pela  Iluminuras.  A
“orelha”  é  um gênero literário, se bem que meio  aberto,
indefinido.  Cabe nela muita coisa, desde uma  resenha  de
jornal  a uma prosa lírica a, como o Drummond já  fez,  um
poema. O que tentei escrever poderia, com boa vontade, ser
chamado  de  uma espécie de convergência entre  uma  prosa
lírica e um mini-ensaio aforismático (acho que não adianta
enfatizar que digo isso sem qualquer pretensão,  não  é?).
Veio-me,  depois de ler e reler as traduções, a imagem  de
um poeta solar, literalmente luminoso e que chegava ao seu
sol  a  pino, ao seu meio dia, segundos antes de mergulhar
nas  clássicas  “trevas da loucura” (usamos normalmente  o
termo  “entrevado” para referirmo-nos a alguém num  estado
comatoso).  Depois de escrita a orelha, me ocorreu  que  a
descrição  que eu fazia da trajetória de poeta  alemão  se
assemelhava   àquela  minha  experiência   anterior,   que
insistia em não sair dos meus neurônios (talvez porque  eu
nunca  antes tivesse sequer imaginado a lâmpada como  algo
também  sonoro).  No  entanto, para  que  as  duas  coisas
convergissem,  faltava um terceiro  termo  que  fizesse  o
papel de catalisador, e esse foi um poema do poeta húngaro
János  Pilinszky, um poema que significativamente  termina
dizendo algo assim como (cito de memória): “deixate ligada
a  luz  no corredor/ hoje derramam o meu sangue”.  Não  dá
para  me alongar aqui, nem examinar o poema húngaro. Basta
dizer  que  o  abrupto da transição é bem  típica  do  tom
espantado,  lúgubre, melancólico e incurável de Pilinszky,
e  que me aproximando do tom dele eu tentei juntar as duas
coisas  acima. De certa forma o que eu tentei dizer (minha
interpretação apenas), entre outras coisas, é que a poesia
é  coisa  humana e está não apenas na voz (ou nos  dedos),
mas  também no ouvido, ou melhor, na relação humana  entre
eles.  A lâmpada não podia fazer um poema, mas meu  ouvido
sim,  até certo ponto e, uma vez que o que meu ouvido  fez
passasse  pelo  meu  cérebro e, de lá,  às  minhas  cordas
vocais  e/ou  a meus dedos, aí talvez começássemos  a  ter
algo  que  se assemelhasse a um possível poema.  De  resto
confesso que, quanto mais leio e estudo, menos sei  o  que
seja a poesia. Sei que ela existe. E tento, segundo minhas
luzes  (ou  trevas, ou, mais provavelmente, luscos-fuscos)
fazê-la.  E  nem ao menos é a mim que cabe julgar  se,  de
quando em quando, um pouco que seja, eu o consegui ou não.
B  -  No  poema  “Outra gata”, o poeta  consegue  momentos
“eufônicos”  de  grande intensidade. A  rima  ainda  é  um
grande  recurso  poético? O que deve  ter  um  poema  para
agradarNelsonAscher?
NA  –  Para começar, obrigado pela observação. Para mim  a
resposta é: sim. Por que não? A idéia moderna e modernista
era  acabar  com certo dogmatismo do metro, rima,  estrofe
etc. Para quê? Para trocá-lo pelo dogmatismo inverso, pela
obrigação contrária? Obviamente, não. O verdadeiro  verso-
livre  (ou melhor, liberado) pode inclusive ter 10 sílabas
métricas,  rimar  com o seguinte ou o  que  vem  depois  e
aparecer  num conjunto de 14. Se isso não puder acontecer,
então  não  há  liberdade alguma. Já diziam os  estudantes
franceses  em 68 que “é proibido proibir”, e o Caetano  os
endossou.  Digo  isso  só  para dar  um  gostinho  de  uma
polêmica  que já vem de décadas atrás, pois  a  questão  é
mais  complicada. Historicamente o que chamamos de “verso-
livre”  depende de/existe em função da tradição do  metro,
ou  seja,  ele existe (não que seja só isso,  mas  é  isso
também)  em  função dos hábitos anteriores e se  beneficia
das  expectativas que estes criaram para,  desapontando-as
de  uma  ou de outra maneira, surpreender o leitor. Depois
que  o  verso-livre se torna aquilo que  o  leitor  espera
ler/ver/ouvir, então o que o surpreenderá será algum  tipo
de  verso  metrificado ou alguma outra  coisa.  Em  poucas
palavras,  os recursos literários existem em  relação  uns
com   os  outros  numa  situação  na  qual  muitas  coisas
intervêm,  entre  elas  a  história.  Nenhum  deles  torna
automaticamente melhor um poema, mas não o torna pior. Não
há  dúvida, porém, de que, quanto mais recursos  um  poeta
dominar,  maior  será sua liberdade. Para me  agradar,  um
poema deve ter só uma coisa: inteligência. Esta pode estar
no tratamento do tema, na escolha das palavras, na sintaxe
ou  ausência dela, pode estar no som ou na imagem impressa
na  página,  pode  estar em qualquer  lugar  recôndito  ou
difícil  de  definir/explicar. Agora, se estiver  em  tudo
isso, então não há mais o que dizer.
B  - Escritores gostam do animal gato. O que o gato tem de
tão  fascinante para desbancar o cachorro e ser  o  melhor
amigo dos poetas?
NA  -  É verdade. Há dez, talvez cinquënta ou mais, poemas
sobre  gato  para  cada poema escrito sobre  cachorros  e,
aqui,  só  nos  resta  especular  assistematicamente.   Eu
realmente  gosto de cachorros e, se tenho uma gata,  é  em
parte  porque moro em apartamento. Os gatos se dão  melhor
nesse ambiente do que a média dos cachorros. As razões que
emergem habitualmente nessa discussão são as seguintes:  o
cachorro  é  servil e o gato, independente; o  primeiro  é
mais  previsível e submisso do que o segundo (não  sei  se
alguém  atacado por um fila brasileiro, dobermann ou  pit-
bull  concordaria); os cachorros são mais  domésticos,  os
gatos,  mais selvagens. Tudo isso deve apontar para  fatos
constatáveis, sem dúvida. Eu acrescentaria o  seguinte:  o
cachorro,  muito  mais  do que o gato,  já  é  um  produto
humano,  algo  produzido pelo homem e destinado  a  certas
funções (guardar a casa, vigiar as ovelhas, caçar raposas,
puxar  trenós); o gato, até onde sei, não foi domesticado;
ele  é  que se aproximou oportunisticamente de nós  quando
começamos  a  cultivar  e  acumular  cereais  que  atraíam
roedores  que, por sua vez, atraíam os felinos e,  depois,
passamos,  felinos e humanos (nessa ordem  decrescente  de
importância), a conviver simbioticamente. Eles eram  úteis
para  nós  como nós para eles, mas foram eles que primeiro
chegaram  a essa conclusão. Desta forma, o cachorro  já  é
produto  acabado, mas o gato continua sendo matéria-prima,
daí  ser mais interessante. Ele está também, ou parece-nos
à  primeira vista estar, mais próximo, do que o  cachorro,
do  estado  de  natureza.  Alguém  disse  (ouvi  isso  num
documentário  do Discovery Channel) que “Deus  inventou  o
gato para que o homem pudesse acariciar o tigre”.
B  -  Falando  em  Hölderlin,  como  foi  a  sua  formação
intelectual para tornar-se o poeta que é hoje? O que  leu?
lê?
NA  - Sinceramente, eu estaria sendo mais arrogante do que
gosto  de  ser se falasse em minha “formação intelectual”,
ainda  mais  porque prefiro pensar que,  se  tal  processo
existe,  ele está longe de acabado. Apesar de ser fumante,
gosto  de imaginar que ainda tenho algum chão pela  frente
antes  de  empacotar e que, até lá, ainda estarei  somente
começando  a  me  preparar para  me  formar.  Posso  falar
rapidamente do que li/vi/ouvi, do que me interessou  e  do
que acho que me marcou. Discorri um pouco sobre o que meus
pais  me  contavam. Eles foram espertos, pois, aos poucos,
achavam desculpas para parar uma estória/história no meio,
passando-me  em seguida o livro onde estava a continuação.
Meus  pais  eram  estrangeiros e  metade  do  que  me  fez
brasileiro  foram  as obras infantis  do  Monteiro  Lobato
(seria  injusto não mencionar um autor menos conhecido,  o
Francisco  Marins  e sua fazenda, que se chamava  Taquara-
Poca).  Entre  os  6 e 11/12 anos li e  reli  muito  esses
livros  bem  como  os de uma coleção da  Melhoramentos,  a
Obras-Célebres (com versões resumidas de Dumas, Defoe, Mil
e  Uma  Noites  etc.) Meu pai é, desde  sua  infância  nos
tempos  do cinema-mudo, um cinéfilo, e me levou  muito  ao
cinema, isso antes de termos TV em casa (chegou quando  eu
tinha  6  anos). Eu era, além disso, fanático por gibis  e
houve tempo, antes dos meus 14/15 anos, quando assistia  a
8/10  horas diárias de TV. Por sorte, as escolas nas quais
estudei  mal  falavam de literatura  e,  por  isso,  houve
pouquíssimas  coisas que eu tenha aprendido a  odiar.  Dos
meus  13  aos  15, eu lia sobretudo best-sellers  mais  ou
menos  (mais mais do que menos) eróticos (Harold  Robbins,
Leon  Uris)  e divulgação científica (“Ciência Ilustrada”,
por  exemplo,  pois  queria ser  cientista).  Em  seguida,
parcialmente  por causa da coleção Imortais da  Literatura
Universal, comecei a ler literatura, mais os russos do que
os  outros, e descobri também o Borges (último  volume  da
série).  Na época do colégio dois outros de “meus” autores
eram  o  Hermann  Hesse  (que ainda  tem  bom  apelo  para
adolescentes)  e  os  ensaios e artigos  jornalísticos  do
George  Orwell (primeira coisa que li sistematicamente  em
inglês).  O  primeiro poema que me chamou a  atenção  foi,
nessa  época,  o  “Datilografia” do Pessoa  (lido  por  um
amigo).  Eu curtia, sem entender muito, a música (ou  devo
dizer,  no bom sentido, a barulheira) de Camões  e  Castro
Alves.  Ao  mesmo tempo, eu lia cada vez  mais  livros  de
história  e,  já na faculdade, virei marxista e  mergulhei
ainda  mais nesse tipo de obras. Foi com 15 anos que minha
paixão  por  cinema, ao gosto da época,  “intelectualizou-
se”, e o primeiro filme que me impressionou como algo  que
era  mais do que entretenimento (chamávamos isso então  de
Scinema  de  arte") foi, em 73, no cine Bijou (que  era  o
único onde garotos podiam assistir a filmes proibidos para
maiores de 18), o “Roma” de Fellini. A outra metade do que
me  fez  brasileiro  (e não sei o que  mais)  foi  a  MPB.
Criança,  eu adorava a Jovem Guarda (ainda sei  de  cor  a
“História  de  um Homem Mau”) e fui várias  vezes  ver  os
shows  do  Teatro Record na rua Augusta. Depois vieram  “A
Banda”,  “Alegria, Alegria” e eu acompanhei atento  a  MPB
até pelo menos meados dos anos 80. Na adolescência, eu ia,
obviamente, ao teatro, ao MASP (que, além do acervo e  das
exposições, passava belos ciclos de cinema) etc. Penso que
tive sorte em ser adolescente nos anos 70, porque era  uma
época  em que a gente podia ler, ouvir, assistir às coisas
e  depois discuti-las sem passar por metido, cdf,  “nerd”.
Uma  certa parcela da cultura ainda era parte legítima  do
quotidiano. A gente não precisava desfrutá-la em segredo e
o   melhor   de  tudo  era  discuti-la  com  amigos   (não
necessariamente  intelectuais).  Se  venho  tendo   alguma
formação  intelectual, devo o que nela me deu mais  prazer
àquela época.
B - O que faz nas horas de lazer? O poeta é poeta o tempo
todo ou só quando escreve?
NA  –  A  poesia, como muitas outras profissões,  não  tem
exatamente  um  horário, nem uma jornada  de  trabalho.  A
maioria  dos poetas trabalha em outros ramos:  muitos  são
médicos, advogados, engenheiros, professores etc. De certa
forma, eu sou jornalista. Trabalhei na redação da Folha  e
depois criei e editei a Revista USP. Desde que deixei esta
última,    ainda   passo   bastante   tempo    escrevendo,
principalmente  mas  não  só, para  a  Folha,  artigos  de
crítica  literária  e  de cinema,  textos  sobre  política
internacional  etc. Também trabalhei e  trabalho  bastante
traduzindo poesia. Como se pode imaginar, porém, a parcela
maior  de  meu tempo é investida em leitura e a  parte  do
leão  cabe à história, antropologia, ciências. Lazer mesmo
(e  não  me  refiro à vida social) é ver filmes,  mais  em
vídeo  que nos cinemas (pura preguiça de sair de casa).  E
mais  do  que  filmes  de  arte,  gosto  mesmo  de  cinema
comercial tipo “Máquina Mortífera”, “Duro de Matar” e  por
aí  vai.  Outro  lazer  meu, se posso  chamá-lo  assim,  é
viajar: gosto de dirigir longas distâncias. Nada disso, no
entanto,   está   dissociado  inteiramente   do   trabalho
intelectual.
B  - A imprensa é paradoxal. Afirma que a poesia está viva
e  depois  ridiculariza os poetas, como na  revista  Veja.
Quem  é  o  poeta brasileiro? O que o impulsiona  para  um
caminho   difícil  e  sem  nenhum  tipo   de   remuneração
financeira?
NA  -  É difícil falar em imprensa como algo monolítico  e
unitário.  A  Veja,  de  fato,  tende  a  impor   a   seus
jornalistas uma abordagem que talvez nem eles achem sempre
a  mais  feliz.  Tenho  amigos que  ou  trabalham  lá,  ou
passaram  por  lá,  que  não só gostam  como  entendem  de
poesia, mas que, lá dentro, não tiveram muita oportunidade
para  tratar  o tema como ele merece. Mas jornais  como  a
Folha, Estado, Jornal da Tarde, Jornal do Brasil, O Globo,
Zero  Hora, Correio Brasiliense (para ficarmos só nos mais
famosos)   regularmente  noticiam  lançamentos,   resenham
livros de poesia, discutem literatura etc. Isso ocorre até
mesmo  em veículos inesperados como a Gazeta Mercantil.  O
que nesses jornais se escreve sobre poesia é mais do que o
que aparece na grande imprensa anglo-americana (a Folha já
chegou ao inusitada de dedicar um editorial, elogioso,  ao
concretismo).  E  , é claro, a razão de  as  coisas  serem
assim   é  porque  geralmente  fomos  pobres  em  revistas
literárias.  A poesia é, no mundo todo (fora a  ex-URSS  e
os  países  do Leste Europeu durante o período comunista),
um  assunto para mil e poucas pessoas e a grande imprensa,
às  vezes  equivocadamente, acha que ou só deve tratar  de
temas  que  interessem a muitos milhares, ou  deve  tratar
temas de interesse mais restrito de uma maneira que atraia
mais  leitores  (não para o temas, mas para  o  jornal  ou
revista  em  questão). É uma contradição  irresolúvel.  Se
pode haver literatura de divulgação científica, é um pouco
mais  difícil  imaginar  o  que  seria  a  literatura   de
divulgação poética. Para piorar, a competição com a  mídia
eletrônica tem levado a imprensa a tentar se adaptar a  um
público  cuja  atenção foi moldada de uma  outra  maneira,
adversa  mesmo à leitura. Temos que considerar, por  outro
lado,  que tudo está em fluxo, que a situação que  vivemos
hoje em dia é recente, muito nova, e que a humanidade  nem
começou  a se habituar intimamente às mudanças e invenções
do século que está se acabando. Qualquer previsão otimista
ou  pessimista é precipitada: nenhum de nós  faz  a  menor
idéia  de qual será a situação desses temas daqui a  10/20
anos. Vale a pena ter em mente o seguinte: a poesia é  uma
atividade  muito  antiga que existe, provavelmente,  desde
que nossa espécie tem linguagem, ou seja, dizem, desde seu
início.  Não sabemos direito o que é, a que vem, para  que
serve,  se  é  que serve para alguma coisa.  Mas  existiu,
existe  e tudo indica que continuará existindo. Os  poetas
escrevem   poesia   pelas  razões   pessoais,   psíquicas,
idealistas, oportunistas, generosas, mercenárias, sociais,
anti-sociais (ou tudo junto ou nada disso) mais  distintas
possíveis.  Antes  de mais nada, porém,  eles  a  escrevem
porque  há  algo chamado poesia.  Nem sei se é  importante
(ou  possível) sabermos mais do que isso. E fazer ou mesmo
ler a sério poesia já toma, de qualquer forma, muito tempo
e  ocupa suficientemente a massa cinzenta. Nisso, o  poeta
brasileiro  não  difere  do  americano,  francês,  alemão,
queniano,   tibetano,  fidjiano...  Independentemente   do
tamanho,  do  poder,  da riqueza ou  miséria  do  país,  a
situação  da poesia é hoje igual em toda parte.  Só  posso
dizer que quem faz poesia faz poesia porque alguém tem que
fazê-la.
B -Alexei Bueno diz que a poesia atual é “coco de cabrito:
sequinha, pequena e idêntica.” Como encara a afirmação? Há
alguma característica estilística ou temática que enquadre
a poesia feita hoje no Brasil, num mesmo balaio literário?
NA  -  Bom, acho que já disse que não confio lá  muito  em
generalizações.   O   papel  do  crítico   literário,   do
observador  dedicado, do leitor enfim,  é  o  de  nuançar,
encontrar  diferenças, separar o joio do  trigo  ou,  pelo
menos,  o joio ruim do joio pior. Dizer que tudo é ruim  é
tão  fácil quanto dizer que tudo é maravilhoso e, em ambos
os  casos, dá na mesma não dizer nada, ou melhor,  o  dito
diz  mais acerca de quem diz do que sobre o assunto de que
fala.  E  termos como os usados acima não  me  parecem  de
grande  utilidade para o tipo de discussão crítica que  me
agrada.  Para  quem  olha de longe ou desinteressadamente,
todos  os sonetos são iguais: eles têm em geral 14  linhas
de  dez sílabas métricas que rimam assim ou assado  e  não
há,  portanto,  diferença  alguma  entre  Camões,  Pessoa,
Vinícius e o próprio Alexei Bueno. Quem observar  mais  de
perto,  ou  com  um  pouco mais de cuidado,  provavelmente
achará algumas diferenças entre os sonetos desses autores.
Todas  as  épocas em tais ou quais lugares têm  algo  que,
dando  à  expressão um sentido amplo, chamaríamos  de  uma
certa  homogeneidade estilística. É, em primeiro lugar,  o
estado da própria língua que subjaz a isso. Além do  mais,
as  formas literárias, os recursos poéticos, o vocabulário
e  outras  tantas coisas têm uma história.  Não  que  essa
história  seja  absolutamente determinante e  inescapável,
mas  escrever  inteligentemente consiste também  em  saber
negociar com ela: acatá-la, negá-la, burlá-la, melhorá-la,
piorá-la  etc. A poesia feita hoje no Brasil, a  meu  ver,
divide-se, desde que tenha alguma competência, naquela que
dá  continuidade ao modernismo e naquela que prefere negá-
lo  ou fazer de conta que este foi um equívoco passageiro.
Em  ambos  os campos, porém, a variedade é muito grande  e
não só o trabalho do crítico, mas igualmente sua diversão,
reside  em, encontrando essa variedade, fazer suas opções,
discuti-las,  mudar de idéia (ou não), continuar  lendo  e
procurando.
B - Como é fazer parte da antologia “99 poets”?
NA  -  Sofremos  há décadas da ausência de  antologias.  O
lugar  civilizado para o leitor “descobrir” poetas  é  nas
revistas  literárias  e  nas antologias.  Fazer  parte  de
qualquer antologia é, normalmente, ser lido através de  um
recorte  que  alguém fez de seu trabalho, num  determinado
contexto, que é o dos outros poetas (e do aparato  crítico
da  antologia: notas, prefácio etc.) A antologia  é  tanto
uma  boa interface entre os livros de um poeta e o público
quanto  uma  hipótese de leitura. Quanto  mais  antologias
houver,  melhor. E é tão importante fazer parte de algumas
como  não  constar de outras, pois a antologia  é,  à  sua
maneira,  um tipo de crítica, um feedback necessário  para
quem escreve.
B - Qual uso faz da internet?
NA  –  Sou fã. Passo atualmente mais tempo “navegando”  do
que assistindo à TV. Leio nela jornas e revistas nacionais
e  estrangeiros. Quando há algum evento internacional  que
eu  esteja acompanhando, comentando ou cobrindo, visito os
sites   pertinentes.  Encomendo  livros  do   estrangeiro.
Pesquiso  assuntos  na rede. Freqüento, obviamente,  sites
literários. O mais importante, todavia, é que,  tendo  por
toda a vida sido um péssimo missivista, corrigi-me, agora,
na   antecâmara  da  terceira  idade,  graças  ao  correio
eletrônico.  Os  artigos que mando para a  Folha  ou  para
outros lugares seguem geralmente via internet.
B - Tem alguma epígrafe que o acompanhe?
NA  – A que compus para mim mesmo, que é também meu futuro
(muito  futuro,  espero, batendo três  vezes  na  madeira)
epitáfio, que segue agora em primeira mão:
“Aqui jaz Nelson Ascher, consumido
Pelo amor próprio não correspondido.”
B - Qual o papel do escritor na sociedade?
NA  -  Não  sei.  Vale  dizer:  não  acredito  que  exista
necessariamente (de quando em quando, aqui e ali, por  tal
ou  qual  razão, pode até existir) um papel ou uma  missão
social  do  escritor.  Não estou  com  isso  defendendo  o
escritor  “alienado”  ou condenando o “comprometido”.  Não
costumo  gostar  de gente “alienada” e me dou  melhor  com
pessoas  “comprometidas”. Mas, para começar, não me  atrai
em   nada   a   obrigatoriedade  do   comprometimento,   o
compromisso  cobrado, verificado, medido.  O  compromisso,
qualquer que seja, só é real se for feito livremente,  por
escolha não sujeita a sanções. E como não creio que alguém
saiba mesmo, que alguém seja capaz não só de dizer como de
provar,  qual  a função social da literatura,  sempre  que
surge a idéia do compromisso político obrigatório, ela vem
menos  para  fazer a literatura servir de alguma  forma  à
sociedade,  do  que  para  subjugá-la  aos  que  fazem   a
sociedade  servi-los. Em outras palavras, os  compromissos
obrigatórios da literatura nunca passaram de  uma  maneira
despótica de controlar os escritores. Vejo uma outra razão
para  dizer  que  o escritor não tem outra  função  social
clara  além da de fazer bem o que sabe (ou deveria  saber)
fazer  bem, isto é, escrever. A razão é a de que  suspeito
da noção segundo a qual um escritor sabe a priori, sobre o
mundo,  a  vida, a realidade, a sociedade, a  nação  etc.,
mais  do  que qualquer outro cidadão. Ele deve saber  mais
sobre  seu  ofício,  mas  no  resto,  principalmente   nas
questões  políticas, não há por que não  considerá-lo  uma
pessoa  comum,  que  não tem nem mais  direitos  nem  mais
obrigações. Ele não é um mestre, um profeta, um  iluminado
ou   qualquer   coisa  assim.  Escrever  já  dá   trabalho
suficiente.  Pensar o contrário disso, algo a  que  muitos
escritores sucumbem, é uma forma meio desagradável, quando
não   perigosa,  de  arrogância.  Não  espero   social   e
politicamente  dos  escritores  mais  do  que  espero   do
jornaleiro,  do  zelador, do dentista, da secretária.  Mas
tampouco espero menos.

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