Quincas Borba


Publicado inicialmente na revista A Estação, entre 15 de junho de 1886 e 15 de setembro de 1891, o romance Quincas Borba aparece em forma de livro neste mesmo ano pela Editora Garnier. Integra a chamada segunda fase da ficção de Machado de Assis, principiada com Memórias Póstumas de Brás Cubas, donde sai naturalmente Quincas Borba.

À primeira vista, o "tema" do romance é o da loucura despertada através dum processo que ativa fatores latentes, herdados pela personagem de Quincas Borba, em suas atitudes e manias, até o pronunciamento final. Ligando estes dois extremos, ocorre a sucessão de estímulos que envolvem a personagem e desvelam as engrenagens do sistema. Neste caso, tão importante como o esquema que a define, está a caracterização da sociedade cujas virtualidades se manifestam, pondo a nu o traço mercantilista onde importam apenas os valores de troca, quaisquer que eles sejam. Nestas condições, o decantado problema do adultério virtual da personagem Sofia passa a secundário e visto apenas como outro componente que entra com igual validade no sistema de trocas consagrado, sobretudo porque jamais se consuma ou se consome.

Ora, para ressaltar estes aspectos o Autor joga com dados que permitem acompanhar as oscilações do mercado que depende do maior ou menor grau de conhecimento e consciência da estrutura que o substancia. Neste sentido a brusca mudança de status de Rubião é de extrema importância. Vendo-se transformado de repente de "professor em capitalista", constitui presa fácil de embaimento. Atraído pelo fascínio da corte, graças à gorda herança alcançada, abandona velhos hábitos, mas traz intacta a ingenuidade e com ela valores ainda não contaminados. É assim minado com facilidade pelo sistema no qual passa a viver sem os suportes do aprendizado que lhe garantissem a invunerabilidade. A narrativa acompanha o processo de degradação de Rubião até sua completa alienação, conseqüente à loucura, uma vez consumada a pilhagem. O retorno à cidade de origem é também o regresso ao estágio de pobreza anterior à herança, que completa o círculo professor-capitalista-alienado.

Aqui é importante o reconhecimento da ingenuidade de Rubião para ressaltar o estranhamento em face do novo código e os graus sucessivos da degradação:"Rubião era mais crédulo que crente; não tinha razões para atacar nem para defender nada: terra eternamente virgem para nele se plantar qualquer cousa". Colocado de chofre no topo da pirâmide, ele ignora os passos que conduzem até lá, facilita o envolvimento e o assalto, densificando o impacto do leitor que se vê cúmplice no projeto sem poder modificar as regras que, em geral, conhece pela própria experiência. Vendo o problema desta perspectiva, a herança aparece como aborto social e a busca da riqueza que corrói todos os valores, outro equívoco quando se tem como tábua a de valores ainda não degradados.

Mas a herança no caso de Quincas Borba tem pelo menos duas impicações. Uma de natureza social, bens acumulados que passam de mão a mão, meio predileto de enriquecimento nesta sociedade; outra mais complicada a que talvez se pudesse dar o nome de psicológica, abusando um pouco do termo, e se personifica em Rubião. Ao herdar as posses de Quincas Borba, herda o cão, uma espécie de consciência que prolonga no presente a lembrança do passado, e também, principalmente, herda os germes da loucura do falecido. Pelo que é e pelo que traz é elemento estranho ao meio a que foi guindado, por isso não pode compreendê-lo mas apenas sofrer-lhe a pressão.

Entre os componentes básicos desta pressão, síntese do sistema, então Sofia, seu marido, o Palha, e Camacho, para os quais Rubião se converte na grande oportunidade de escalada social. Para exemplificar, destaque-se o capítulo LXIX como momento de síntese do conjunto. Aí se revela o sucesso econômico do casal Palha que acabava de trocar a casa de Santa Teresa pela da Praia do Flamengo, passo intermediário para o palacete do Botafogo, ponto de chegada ao topo da pirâmide social; aí é que ficamos sabendo que Rubião é sócio da firma de importação Palha e Companhia; é o fundamental de algumas ambigüidades básicas de comportamento e principalmente da linguagem que define os extratos sociais: "Rubião não podia compreender os algarismos do Palha, cálculos, tabelas de preços, direitos de alfândega, nada; mas a linguagem falada supria a escrita. Palha dizia coisas extraordinárias..." onde fica evidente nos níveis do código o jogo de interesses diversos. De um lado, a linguagem técnica, dos números, cifrada para a personagem. Não conhecendo a chave, Rubião não pode compreender seu sentido nem o sentido do negócio proposto pelo Palha. Antes que revelar, a função desta linguagem é ocultar, velar o jogo. De outro lado, está a linguagem que precisa persuadir, incisiva. Fala a vaidade, nutre os sonhos de Rubião, aludindo à projeção política e social já estimulada por Camacho, o verdadeiro sócio do Palha na firma que é notável metáfora da pilhagem armada contra os possuídos no ingênuo mineiro. É que ele está obcecado pela idéia de conquista de Sofia que "só apareceu no fim, sem deixar de estar nele, desde o princípio, idéia latente, uma das causas últimas do ato". Daqui sovrevem uma ambigüidade capital da narrativa. Alimentando o projeto de conquista em Rubião, incentivada pelo próprio marido, Sofia catalisa a pilhagem, favorecendo o desequilíbrio, apressando a loucura, degradando o homem. Sofia é parte central neste jogo de que apenas Rubião ignora as regras e cujo fim é a posse que põe as pessoas à coberto da necessidades, assegurando o ócio sem as preocupações imediatas.

Ora, neste mercado, Sofia funciona como elemento chave do processo de troca, encarnando os valores do meio. Consome sem se deixar consumir. O Adultério ou a suposição dele mantém presente o fato viável e se transforma em componente ativo e de valor permanente no sistema, uma vez que seu poder de troca não se esgota embora seja esgotante.

Mas é preciso não simplificar para não mutilar. Sofia se compõe a partir de uma tríplice perspectiva. A do narrador que acentua seus meneios, seu charme, "a chantagem do adultério", a suposta disponibilidade. A Sofia que se comporta numa ambigüidade aparente, aversa à pobreza, vaidosa de seus atrativos, ansiosa por aparecer ao grande monde, de exibir o "corpo bem feito", o "colo decotado", "os braços cheios", que o marido usa como instrumento para facilitar a abertura de caminhos. Por fim, a Sofia composta pela imaginação de Rubião. Instalada em seu espírito, a figura de Sofia sofre todas as deformações necessárias para que ele monte a "sua" imagem dela: a mulher cobiçada que pode cumprir as promessas do desejo recalcado. A linguagem forja o perfil sedutor da mulher em cujo comportamento Rubião vê ambigüidades e maquinações. Sem dissuadi-lo, ela alimenta o pressupostos, permitindo que o marido continue a usar o capital de Rubião, num jogo que os transforma em espelhos da sociedade, enquanto se desarticulam suas estruturas correntes.

Por aí se pode ver a habilidade com que Machado de Assis ata o texto ao contexto mostrando que os dramas humanos não passam de peças que se intercambiam de acordo com os interesses em jogo. Ora, interesse, no caso, quer dizer acumular bens, sobrepor-se ao anonimato, impor-se à sociedade. Fruto do meio social que aceita e no qual quer brilhar, jamais fruto biológico segundo as regras do realismo-naturalismo, Sofia utiliza todos os instrumentos em disponibilidade, afiados pelo marido para conseguir a subida e a participação no estamento. "Com tais golpes e com tais armas alcança-se a ociosidade elegante, a riqueza sem escrúpulos, a irradiação do poder"(FAORO, Raimundo. A Pirâmide e o Trapézio. São Paulo, Cia. Ed. Nacional. p.17).

É dentro deste mecanismo que Rubião se deixa envolver mesmo antes de chegar à corte, pois é na viagem que conhece seus despojadores, Palha e Sofia. E este envolvimento é essencial para o desvelamento da engrenagem, cujos valores serão postos em causa. Enriquecido sem ser contaminado, Rubião continua portador das virtudes que se transformam exatamente em sua destruição. Aliado a elas traz também os germes da loucura e, submetido à pressão do meio, ele tende à desagregação, degradante e alienante, que é seu fim quase natural. Chegado aqui, o grupo que o freqüentava desaparece, dado que seu poder de troca se extingue.

Importa, no entanto, ressaltar outro fator. Rubião existe socialmente porque existe literariamente, graças ao poder criador da palavra. Isto, é, a obra e ele com ela só ganharam existência a partir do momento que o escritor Machado de Assis os substanciou numa palavra rica de virtualidades capazes de gerar a ilusão daquela realidade.

A narrativa constrói a sensação de joguete acossado pelas forças que o disputam e duplica a personagem entre este mundo e o dos seus sonhos e delírios. Ao memso tempo canaliza os atos pela adoção dos valores que estão na base de sua ruína e estabelece desde cedo um ritmo de vaivém. Recortando as oscilações de Rubião, traduz os níveis precários de seu equilíbrio, graças a uma linguagem em fluxo que leva Sofia a mostrar-se e esconder-se, a oferecer-se e negar-se, a avançar e recuar, projetando as idas e vindas do anti-herói Rubião. Este recurso está presente desde o primeiro capítulo. Contemplando a Praia de Botafogo da janela de seu palacete, Rubião de divide em sensações opostas entre o passado incerto de professor e o presente seguro de capitalista, entre a insegurança e a segurança, entre a Sofia que é e a que lhe parece ser. Desta maneira, enquanto gera o ser difuso que é a personagem, a linguagem compões e decompõe a realidade de que é vítima passiva.

Vista dessa maneira, a leitura de Quincas Borba deixa de ser de natureza estritamente moral, ocupada com pessimismos e dissolvências, para atingir estruturas mais profundas e válidas de seu mundo empenhado em espelhar pela criação os dados do contexto. Mas é preciso evitar a simplificação e atentar para a multiplicidade enriquecedora que desdobra as leituras da obra num jogo de permanente interesse. Forjada a ilusão daquela realidade, o escritor mantém as portas trancadas, ilumina apenas alguns lados dos fatos, instala dúvidas, varia a perspectiva para alcançar planos menos aparentes, não demonstra, sugere. Graças a sua força, o jogo atrai e permanece vivo, resistindo ao tempo, desafiando o leitor e sua inteligência, sacudindo nossa indiferença.

FONTE: José Carlos Garbuglio em: ASSIS, Machado de. Quincas Borba. 5. ed., São Paulo:Editora Ática S.A., 1985