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Nós nunca deixamos de ser parcialmente hipócritas na medida em que raramente assumimos a solidariedade que emblematicamente apregoamos e, quase sempre, remetemo-la para a suposta caridade alheia, ou, na mais cobarde das hipóteses, encobrimo-la com a surda expressão com que nos despedimos do fardo que os outros sempre acarretam: "-Se Deus quiser, tudo há-de melhorar(!)". Infelizmente, nem Deus é suficientemente Homem para nos dar uma merecida bofetada nem a nossa honra sai o minimamente beliscada para nos redimirmos desta patética insensatez.
Em democracia, quando a solidariedade se esfacela, sobra a insustentável embriaguez dessa vagarosa marcha fúnebre a que se chama solidão. A vida dispensa a solidão, mas esta não dispensa nada: corrói-nos numa lenta e isolada ressaca que só a morte ou uma presumível ressurreição podem exterminar.
Digo isto tendo o Natal por perto e, com ele, a memória ainda viva de uma cidade que todos os anos, por esta altura, despeja nos contentores do lixo as misérias da nossa suposta grandeza civilizacional. Na verdade, é grande a nossa loucura; ao invés, é pequena (muito pequena) a nossa dignidade colectiva.
É nesta estreita margem de desbaratada felicidade que engalanamos a fantasia da solidariedade, a qual, à semelhança de um velho conto oriental, poder-se-ia resumir assim: «Os homens sentaram-se em círculo à volta de um enorme prato de apetecíveis iguarias. A cada um deles foi dado um garfo com dois metros de comprimento, com o qual se deveriam alimentar. Numa primeira tentativa, todos procuraram levar a comida a cada uma das suas bocas. Tentativa inglória, porquanto só após muitos malabarismos e muitos actos de contorcionismo, perceberam que tudo era simples se cada um utilizasse o seu garfo para servir o outro». Não é fácil a solidariedade, mas é na sua sentida simplicidade que se renova a vida e o sangue da democracia.
Curiosamente, é no Natal que alegadamente nos exorcizamos dos fantasmas que povoam o nosso mais recôndido egoísmo, mais não seja porque nesse dia damos às «ratazanas do papelão» os faustos manjares do nosso abundante desperdício: o velho televisor que durante muitos anos nos serviu de altar; a caixa da casinha de bonecas para a qual transferimos muita da cobiçada vida que nunca vivemos; os papéis de fantasia com que embrulhamos o pardo imaginário do nosso tempo; o manual da aparelhagem «hi-fi» com a qual filtramos palavras que queremos inaudíveis; o caixão do computador (com putas e sem dor) que nos leva a incestuosas relações distante e virtualmente experimentadas; ...
Seja como for, todos os anos, na madrugada de 25 de Dezembro, uma espécie de «Pai Natal dos Outros» visita a minha rua. Veste-se de negro e agita a sua farta cabeleira branca ao vento que passa. Consta por aí que é um anarquista livremente organizado, um cristão sem religiosidade e um agitador de democracias adormecidas. Costuma aparecer depois de um galo de naftalina cantar três vezes de fio a pavio. É então que o brilho dos seus olhos nos ofusca a consciência e nos deixamos embalar por um cântico que há muito esquecemos: «Je suis dun autre pays que le vôtre, dun autre quartier, dune autre solitude». E, na hora de lhe virarmos costas, relembra: «Le désespoir est une forme supérieure de la critique» (Léo Ferré).
Abraço-vos.
Feliz Natal e próspero Ano Novo. A farsa, essa continua.
Fernando Manuel Cortes Leal