"Cinco
mais um" Exercícios de Estilo
por
Raymond Queneau
Notas
Num ônibus da linha S, no rush do meio-dia. Um
cara de uns 25 anos, chapéu mole rodeado por um cordão
em vez de fita, pescoção como se alguém
o tivesse puxado pelos cabelos. Pessoas descem. O tipo em
questão se irrita com o vizinho. Ele reclama de ser
empurrado a cada vez que passa alguém. Tipo choramingão
que se imagina malvado. Quando vê um lugar livre, precipita-se.
Duas horas mais tarde, eu o reencontro na Cour de Rome,
na frente da Gare Saint-Lazare. Ele está com um
camarada que lhe diz : "Você deveria por um botão
suplementar no seu sobretudo." Ele lhe mostra onde e porquê.
Retrógrado
Você deveria por um botão suplementar no seu
sobretudo, lhe diz seu amigo. Eu o encontrei no meio da Cour
de Rome, depois de tê-lo deixado precipitando-se com
avidez em direção a um assento. Ele tinha acabado
de protestar contra um esbarrão de um outro viajante,
que, ele dizia, o empurrava cada vez que descia alguém.
Este jovem pescoçudo usava um chapéu ridículo.
Isto aconteceu num ônibus lotado da linha S ao meio-dia.
Hesitações
Não sei muito bem onde tudo aconteceu
Numa
igreja, no campo
Num ônibus talvez? Lá tinha
um
O que é que tinha lá mesmo? Ovos, tapetes,
rabanetes, esqueletos? Sim, mas ainda com carne em volta e vivos.
Acho que é mais ou menos isso. Pessoas num ônibus.
Mas havia um( ou dois ? ) que se destacavam, não sei bem
porquê. Pela megalomania? Pela adiposidade? Pela melancolia?
Melhor
mais exatamente
pela sua juventude ornada por
um
nariz? Queixo? Dedão? Não : pescoço.
E por um chapéu estranho,estranho, estranho. Ele começou
a discutir, é isso aí, com um outro viajante. Homem
ou mulher? Novo ou velho? Isto terminado, tudo acaba terminando
de uma maneira ou de outra, provavelmente pela fuga de um dos
adversários.
Imagino que seja o mesmo personagem que encontrara, mas onde?
Na frente de uma igreja? No campo? Na frente de uma lata de lixo?
Com um camarada que devia lhe falar alguma coisa, mas o quê
? O quê ? O quê ?
Exclamações
Nossa! Meio-dia! Hora de tomar o ônibus! Como
está apertado! Que engraçado! Esse cara! Que pescoço!
75 centímetros! No mínimo! E que fita! Que fita!
Nunca tinha visto! Que fita! Que engraçado! Nossa! Que
fita,hein? Em volta do seu chapéu! Engraçadíssimo!
Ih ! Olha o cara bravo! O cara da fita! Brigando com um vizinho!
O outro deve ter pisado no seu pé! Vão se estapear!
Claro! Não?! Ah sim! Vai lá! Vai lá! Parte
pra cima dele! Ha não! Ele desiste! O cara! Pescoçudo!
E se enfia num lugar vazio! O cara, hein?!
Não!! Verdade?! Num pode ser ! É ele mesmo!
Olha lá! Na Cours de Rome! Na frente da Gare
Saint-Lazare! Passeando! Com um outro cara! E o outro ta
falando algo! Ele devia por um botão suplementar! Sim!
Um botão no sobretudo! No sobretudo!
Teoria dos Conjuntos
No ônibus S consideremos o conjunto C o dos passageiros
sentados e P o dos passageiros em pé.Em uma certa parada
encontra-se o conjunto E de pessoas que esperam. Seja M o conjunto
dos viajantes que montam no ônibus; É um sub-conjunto
de E além de ser a união de M o conjunto
dos que ficam no corredor e M" o conjunto daqueles que vão
se sentar.Demonstrar que o conjunto M" é vazio.
Z sendo o conjunto dos Zé-Manés e {z} a intersecção
de Z e M,reduzido a um só elemento. O conjunto M"
tornando-se não vazio, demonstrar que ele se compõe
de um único elemento z (ler Zèzinho).
Filosófico
Somente as grandes cidades podem apresentar na espiritualidade
fenomenológica as essencialidades das coincidências
temporais e improbabilísticas.O filósofo que ascende
vez por outra à inexistencialidade fútil e utilitária
de um ônibus S poderá notar com a lucidez de seu
olho pineal as aparências fugitivas e descoloridas de uma
consciência profana afligida do longo pescoço da
vaidade e da transa chapelística da ignorância.Esta
matéria sem inteléquio se lança no imperativo
categórico no seu impulso vital e recriminatório
contra a realidade neoberkeleniana de um mecanismo corporal desprovido
de consciência. Esta atitude moral impulsiona o mais inconsciente
dos dois a uma espacialidade vazia onde ele se decompõe
em seus elementos primeiros e vagos.
A pesquisa filosófica prossegue normalmente no encontro
inesperado do mesmo ser acompanhado de sua réplica não-essencial
e costureira, a qual o aconselha a transportar para o plano do
entendimento o conceito de botão de casaco situado sociologicamente
baixo demais.
Tradução
de Polá Scalzo
Leia também o estilo
Lacanês