Ela quase desmaiou: devia ser um sonho, era bom demais pra ser
verdade.
Mas era! Lá estava ele, parado, braços cruzados,
ele era perfeito! O rosto firme, os cabelos curtos, morenos, o corpo forte,
escultural, bronzeado. Sempre com sua camisa pólo justa, deixando
transparecer toda aquela incrível musculatura. Perfeito, ele era
perfeito, quase como um deus grego!
Seus olhos provocantes, desafiadores, olhavam... para ela! Nem
conseguia acreditar! Passou por entre mais um espremido bolo de gente se
esfregando na pista, e chegou-se para a amiga, berrando no seu ouvido para
que ela pudesse distinguir sua voz de toda a algazarra da festa:
- Você não vai acreditar!
- Hein!?
- Eu disse que você não vai acreditar!!!!
- Ah, tá.
- Quê?!!
- Eu disse que tá bom!!!!
...
- No quê?
- No quê o quê?
- No quê eu não vou acreditar?
- Ah, é. Olha pra lá!
- Tô olhando.
- Viu?
- Vi o quê?
- Presta atenção!!
- Ah, tá falando do...
- Serginho! Não é perfeito? E tá olhando
pra mim! Ah, é hoje...
- Hã...
- Que foi?
- Olha, não quero estragar tua alegria não, mas...
- Mas...?
- Aquele não é o Serginho.
- Hein?
- Aquele ali não é o Serginho!!!
- Ah, não?
- Não, aquele é o Marquinhos.
- Ih, não é que é mesmo...
- Eu disse.
- É que tá muito cheio de gente, né? Por
isso eu me confundi! É claro que o Serginho é aquele outro
do lado desse.
- Qual?
- Aquele ali, saradinho, de cabelo curto e camisa polo.
- Não.
- Quê?
- Não!!!
- Como não?
- Esse é o Rodriguinho!
- Ah, então o Serginho é aquele ali do lado.
- Qual?
- O saradinho de cabelo curto e camisa pólo.
- Não, não, esse é o Daniel.
- Então só pode ser o saradinho do lado dele.
- Qual, o de cabelo curto e camisa pólo?
- Esse!
- Não, esse aí é o “Sapo”.
- Quem?
- O “Sapo”!!!
- Quem?!!!??
- O “SAAAAAAPOOOOOO”!!!!!!
-... “Sapo”, é?
- É, esse mesmo.
Olhou pra lata que tinha nas mãos.
- Nossa, tenho que parar com a cerveja.
- Cerveja? Me dá um gole?
- Toma.
- Ei, isso não é cerveja, é vinho!
- Ah, é?
- É!
- Por isso que saiu tão caro, então. Que merda!
E jogou o copo por cima do ombro, sem nem olhar pra trás.
Pra mudar os ares um pouco, um fato verídico.
Bem, vamos começar pelo seguinte: todo mundo sabe do que
estou falando quando toco no assunto do professor. Aqui, no Brasil, ele
definitivamente não se encaixa na categoria dos “normais”. Pra ser
professor, ou você é muito idealista, ou corajoso, ou louco;
geralmente um pouco dos três.
Assim nasce a fórmula para uma figuraça do maior
grau. Um sujeito de hábitos geralmente estranhos, cujo maior problema
no relacionamento com o aluno costuma ser acreditar que eles estão
ali para aprender por vontade própria. Por isso ele tende a ser
gozado, xingado, e esculachado das maneiras mais variadas possíveis,
por aqueles a quem trata com carinho, e por quem muito tende a se sacrificar.
Ah, sim, todos sabemos que há exceções para
estas regras - existem tanto alunos que estudam por consciência própria
e vontade, como professores que entendem a situação de seus
aprendizes e impõem respeito, ao acertar o que eles temem: as notas.
Por que qualquer sujeito que estudou sabe que aluno não tá
lá pra aprender; ele tá lá é pra passar de
ano e a mãe não encher o saco. E aproveitar pra bater um
papinho, já que a aula tá tão chata.
Pois o caso que vou contar é sobre um professor que pairava
entre os extremos da esquisitice, do respeito, e, num único pecado,
do idealismo.
Fisicamente era um sujeito baixinho, pouco menos que um metro
e setenta. A idade era desconhecida, mas devia beirar aos sessenta; já
era quase avô. Andava sempre de jaleco branco e um óculos
“de velho”, daqueles pra vista cansada - mas veja bem, quando eu digo sempre,
eu digo sempre! Ao ponto de nunca ninguém que eu conheça
ter visto o sujeito sem essa vestimenta!
Pra terminar, uma meia careca lustrosa e simpática, e
olhos castanhos claros, se bem me lembro. Simplório. Não
importava o quanto tentasse parecer um cientista louco, não sei
os outros, eu nunca o via como tal. Pra mim, bastava ver os olhos claros
mais de perto, e o ar tranqüilo, controlado, dele, que eu via uma...
uma pessoa, a bem dizer.
Bem, chega de descrições. O Arnaldo, era esse seu
nome, ensinava Matemática para o primeiro ano do segundo grau. E
para todas as turmas dessa série, quatro ao todo. Uns cento e sessenta
alunos, sem contar os outros lugares onde trabalhava: é gente, é
muita gente.
A aula dele era, no mínimo, peculiar. Basta começar
pelo fato de que uma vez por semana o Arnaldo convocava alguém da
turma para trazer um bolo, que era irmamente distribuído à
todos, enquanto se fazia uns exercícios. Sim, o sujeito simplesmente
estipulava um “dia do bolo”, e a galera naturalmente adorava. O detalhe:
ele dava aula todos os dias, pra pelo menos uma turma diferente por dia
da semana. E era isso, tínhamos um professor que comia bolo no lanche
absolutamente todo dia.
Mas a aula dele em si, também era um delírio. Arnaldo
lotava quase tudo que falava com jargões e tiradas de um humor e
tom próprios. Quem, dos que estudou comigo, vai algum dia esquecer
o “Oh, tipo 1”? “Troca x por banana e y por maçã”? E que
outro professor seria tão apaixonado pela matemática a ponto
de chamar todos os seus estudantes de “artistas”?
Sim, para ele, não era ciência exata, era arte!
Tão infinitamente complexa em seus caminhos, tão deslumbrante
a ponto de ser a única das exatas, que nunca poderia ser exata ao
todo. Teria sempre seus “poréns”. Arnaldo devia amar sua arte.
Esse fascínio, vinha a nós em formas de lições,
exemplos, teorias e exercícios; muitos exercícios. Mas não
reclamem do Arnaldo, todo professor acha que só temos a matéria
dele para estudar, isso é um mal comum. O problema é que
ele podia não ser um gênio, mas suas lições
viriam a valer muito para depois - no fatídico vestibular, na fatídica
faculdade, os Tipos 1 da vida eram de maior utilidade que se podia supor,
ou pelo menos assim me disseram - mas mesmo assim eram complexos demais
para quem não tinha gosto, ou saco, para Matemática.
Pois já falei nisso antes, certo? Aluno quer é
passar de ano. E o Arnaldo, queria que aprendessem. Incompatibilidade de
objetivos total. Ai dos que disserem que dá na mesma; eu bato.
Gostavam da aula dele, como eu disse. Mas prestar atenção?
Naquela maluquice toda? Nem em sonho. Pra quê? Antes da prova a gente
estuda, e se dá bem.
É claro que havia exceções, sempre há.
No caso, havia os que sempre se interessaram, sempre participaram, sempre
quiseram aprender, nem que fosse só um pouco; e os outros que tentavam
voltar no meio do caminho.
Não entendeu? “Voltar de onde?”, você pergunta.
E você acha que quem não prestava atenção
total e completa ia à algum lugar? Não ia. A pauta parecia
uma poça de sangue, tantas notas vermelhas. E os arrependidos,
os que tentavam recuperar a nota depois de se arrebentar, aumentavam em
número a cada prova.
E muito poucos eram bem-sucedidos. Se você não acompanhava
de começo, não entendia o meio, nem o fim. Era tiro e queda.
Sem volta.
Mas, não era só isso que enraivecia os alunos.
Não senhor, eram os métodos dele, também.
Porque o Arnaldo não ensinava a matéria e depois
dava exercício. Ele dava exercício primeiro, na esperança
de que conseguissem deduzir a matéria por si próprios. Aos
vitoriosos, pontos na prova. Aos outros, restavam apenas confusão,
xingamentos.
Mas quem pensa que ele próprio não sabia disso,
engana-se. A aula que o Arnaldo sempre dava, a única certa, era
a qual ele detalhava a cronologia da opinião pública, ou
seja, mostrava no quadro como a opinião a respeito dele mudava com
o passar das provas. Algo mais ou menos assim que ele esquematizava:
- nas primeira e segunda provas: “todo mundo adora o Arnaldo.
O Arnaldo é esquisito, a prova é difícil, mas ele
é legal!”
- terceira e quarta: “o Arnaldo está começando
a puxar demais. É muito exercício.”
- quinta e sexta: “Aula do Arnaldo é um saco. Têm
que dar um jeito nele.”
- qualquer coisa depois disso: “Louco!!! O Arnaldo é Louco!!!!
Tem que mandar ele embora!”
Ah, pobre do Arnaldo, ele achava que as pessoas podiam vir a
gostar tanto de matemática quanto ele, se mostrasse a eles a ridicularidade
de suas afirmações. É claro que ele puxava a matéria!
É claro que a prova era difícil! Mas por que será
que os alunos só reclamavam disso mais tarde?
E porquê, seguindo eles, vinham as mães e os pais,
afirmando que seus filhos, que a turma toda, não estava aprendendo?
Que o tal do Arnaldo devia ser louco?
Espero que meus astutos leitores tenham entendido o que quis
dizer.
E quem vocês acham que era o louco afinal? O Arnaldo?
Ou os alunos, por odiá-lo; os pais, por seguirem seus
filhos; ou até mesmo a escola, por demiti-lo?
Vocês sabem qual foi a resposta. Afinal, ela é o
título.
E é por isso, que o Arnaldo não é o único
louco...
Eu também, sou doidinho. Maluco de pedra.
E você, está se sentindo um pouco louco, também?