MUUNAITE III, DE PARTI
 

 Ela quase desmaiou: devia ser um sonho, era bom demais pra ser verdade.
 Mas era! Lá estava ele, parado, braços cruzados, ele era perfeito! O rosto firme, os cabelos curtos, morenos, o corpo forte, escultural, bronzeado. Sempre com sua camisa pólo justa, deixando transparecer toda aquela incrível musculatura. Perfeito, ele era perfeito, quase como um deus grego!
 Seus olhos provocantes, desafiadores, olhavam... para ela! Nem conseguia acreditar! Passou por entre mais um espremido bolo de gente se esfregando na pista, e chegou-se para a amiga, berrando no seu ouvido para que ela pudesse distinguir sua voz de toda a algazarra da festa:
 - Você não vai acreditar!
 - Hein!?
 - Eu disse que você não vai acreditar!!!!
 - Ah, tá.
 - Quê?!!
 - Eu disse que tá bom!!!!
 ...
 - No quê?
 - No quê o quê?
 - No quê eu não vou acreditar?
 - Ah, é. Olha pra lá!
 - Tô olhando.
 - Viu?
 - Vi o quê?
 - Presta atenção!!
 - Ah, tá falando do...
 - Serginho! Não é perfeito? E tá olhando pra mim! Ah, é hoje...
 - Hã...
 - Que foi?
 - Olha, não quero estragar tua alegria não, mas...
 - Mas...?
 - Aquele não é o Serginho.
 - Hein?
 - Aquele ali não é o Serginho!!!
 - Ah, não?
 - Não, aquele é o Marquinhos.
 - Ih, não é que é mesmo...
 - Eu disse.
 - É que tá muito cheio de gente, né? Por isso eu me confundi! É claro que o Serginho é aquele outro do lado desse.
 - Qual?
 - Aquele ali, saradinho, de cabelo curto e camisa polo.
 - Não.
 - Quê?
 - Não!!!
 - Como não?
 - Esse é o Rodriguinho!
 - Ah, então o Serginho é aquele ali do lado.
 - Qual?
 - O saradinho de cabelo curto e camisa pólo.
 - Não, não, esse é o Daniel.
 - Então só pode ser o saradinho do lado dele.
 - Qual, o de cabelo curto e camisa pólo?
 - Esse!
 - Não, esse aí é o “Sapo”.
 - Quem?
 - O “Sapo”!!!
 - Quem?!!!??
 -  O “SAAAAAAPOOOOOO”!!!!!!
 -... “Sapo”, é?
 - É, esse mesmo.
 Olhou pra lata que tinha nas mãos.
 - Nossa, tenho que parar com a cerveja.
 - Cerveja? Me dá um gole?
 - Toma.
 - Ei, isso não é cerveja, é vinho!
 - Ah, é?
 - É!
 - Por isso que saiu tão caro, então. Que merda!
 E jogou o copo por cima do ombro, sem nem olhar pra trás.


“O ARNALDO É LOUCO!”

 Pra mudar os ares um pouco, um fato verídico.
 Bem, vamos começar pelo seguinte: todo mundo sabe do que estou falando quando toco no assunto do professor. Aqui, no Brasil, ele definitivamente não se encaixa na categoria dos “normais”. Pra ser professor, ou você é muito idealista, ou corajoso, ou louco; geralmente um pouco dos três.
 Assim nasce a fórmula para uma figuraça do maior grau. Um sujeito de hábitos geralmente estranhos, cujo maior problema no relacionamento com o aluno costuma ser acreditar que eles estão ali para aprender por vontade própria. Por isso ele tende a ser gozado, xingado, e esculachado das maneiras mais variadas possíveis, por aqueles a quem trata com carinho, e por quem muito tende a se sacrificar.
 Ah, sim, todos sabemos que há exceções para estas regras - existem tanto alunos que estudam por consciência própria e vontade, como professores que entendem a situação de seus aprendizes e impõem respeito, ao acertar o que eles temem: as notas. Por que qualquer sujeito que estudou sabe que aluno não tá lá pra aprender; ele tá lá é pra passar de ano e a mãe não encher o saco. E aproveitar pra bater um papinho, já que a aula tá tão chata.
 Pois o caso que vou contar é sobre um professor que pairava entre os extremos da esquisitice, do respeito, e, num único pecado, do idealismo.
 Fisicamente era um sujeito baixinho, pouco menos que um metro e setenta. A idade era desconhecida, mas devia beirar aos sessenta; já era quase avô. Andava sempre de jaleco branco e um óculos “de velho”, daqueles pra vista cansada - mas veja bem, quando eu digo sempre, eu digo sempre! Ao ponto de nunca ninguém que eu conheça ter visto o sujeito sem essa vestimenta!
 Pra terminar, uma meia careca lustrosa e simpática, e olhos castanhos claros, se bem me lembro. Simplório.  Não importava o quanto tentasse parecer um cientista louco, não sei os outros, eu nunca o via como tal. Pra mim, bastava ver os olhos claros mais de perto, e o ar tranqüilo, controlado, dele, que eu via uma... uma pessoa, a bem dizer.
 Bem, chega de descrições. O Arnaldo, era esse seu nome, ensinava Matemática para o primeiro ano do segundo grau. E para todas as turmas dessa série, quatro ao todo. Uns cento e sessenta alunos, sem contar os outros lugares onde trabalhava: é gente, é muita gente.
 A aula dele era, no mínimo, peculiar. Basta começar pelo fato de que uma vez por semana o Arnaldo convocava alguém da turma para trazer um bolo, que era irmamente distribuído à todos, enquanto se fazia uns exercícios. Sim, o sujeito simplesmente estipulava um “dia do bolo”, e a galera naturalmente adorava. O detalhe: ele dava aula todos os dias, pra pelo menos uma turma diferente por dia da semana. E era isso, tínhamos um professor que comia bolo no lanche absolutamente todo dia.
 Mas a aula dele em si, também era um delírio. Arnaldo lotava quase tudo que falava com jargões e tiradas de um humor e tom próprios. Quem, dos que estudou comigo, vai algum dia esquecer o “Oh, tipo 1”? “Troca x por banana e y por maçã”? E que outro professor seria tão apaixonado pela matemática a ponto de chamar todos os seus estudantes de “artistas”?
 Sim, para ele, não era ciência exata, era arte! Tão infinitamente complexa em seus caminhos, tão deslumbrante a ponto de ser a única das exatas, que nunca poderia ser exata ao todo. Teria sempre seus “poréns”. Arnaldo devia amar sua arte.
 Esse fascínio, vinha a nós em formas de lições, exemplos, teorias e exercícios; muitos exercícios. Mas não reclamem do Arnaldo, todo professor acha que só temos a matéria dele para estudar, isso é um mal comum. O problema é que ele podia não ser um gênio, mas suas lições viriam a valer muito para depois - no fatídico vestibular, na fatídica faculdade, os Tipos 1 da vida eram de maior utilidade que se podia supor, ou pelo menos assim me disseram - mas mesmo assim eram complexos demais para quem não tinha gosto, ou saco, para Matemática.
 Pois já falei nisso antes, certo? Aluno quer é passar de ano. E o Arnaldo, queria que aprendessem. Incompatibilidade de objetivos total. Ai dos que disserem que dá na mesma; eu bato.
 Gostavam da aula dele, como eu disse. Mas prestar atenção? Naquela maluquice toda? Nem em sonho. Pra quê? Antes da prova a gente estuda, e se dá bem.
 É claro que havia exceções, sempre há. No caso, havia os que sempre se interessaram, sempre participaram, sempre quiseram aprender, nem que fosse só um pouco; e os outros que tentavam voltar no meio do caminho.
 Não entendeu? “Voltar de onde?”, você pergunta.
 E você acha que quem não prestava atenção total e completa ia à algum lugar? Não ia. A pauta parecia uma  poça de sangue, tantas notas vermelhas. E os arrependidos, os que tentavam recuperar a nota depois de se arrebentar, aumentavam em número a cada prova.
 E muito poucos eram bem-sucedidos. Se você não acompanhava de começo, não entendia o meio, nem o fim. Era tiro e queda. Sem volta.
 Mas, não era só isso que enraivecia os alunos. Não senhor, eram os métodos dele, também.
 Porque o Arnaldo não ensinava a matéria e depois dava exercício. Ele dava exercício primeiro, na esperança de que conseguissem deduzir a matéria por si próprios. Aos vitoriosos, pontos na prova. Aos outros, restavam apenas confusão, xingamentos.
 Mas quem pensa que ele próprio não sabia disso, engana-se. A aula que o Arnaldo sempre dava, a única certa, era a qual ele detalhava a cronologia da opinião pública, ou seja, mostrava no quadro como a opinião a respeito dele mudava com o passar das provas. Algo mais ou menos assim que ele esquematizava:
 - nas primeira e segunda provas: “todo mundo adora o Arnaldo. O Arnaldo é esquisito, a prova é difícil, mas ele é legal!”
 - terceira e quarta: “o Arnaldo está começando a puxar demais. É muito exercício.”
 - quinta e sexta:  “Aula do Arnaldo é um saco. Têm que dar um jeito nele.”
 - qualquer coisa depois disso: “Louco!!! O Arnaldo é Louco!!!! Tem que mandar ele embora!”
 Ah, pobre do Arnaldo, ele achava que as pessoas podiam vir a gostar tanto de matemática quanto ele, se mostrasse a eles a ridicularidade de suas afirmações. É claro que ele puxava a matéria! É claro que a prova era difícil! Mas por que será que os alunos só reclamavam disso mais tarde?
 E porquê, seguindo eles, vinham as mães e os pais, afirmando que seus filhos, que a turma toda, não estava aprendendo? Que o tal do Arnaldo devia ser louco?
 Espero que meus astutos leitores tenham entendido o que quis dizer.
 E quem vocês acham que era o louco afinal? O Arnaldo?
 Ou os alunos, por odiá-lo; os pais, por seguirem seus filhos; ou até mesmo a escola, por demiti-lo?
 Vocês sabem qual foi a resposta. Afinal, ela é o título.
E é por isso, que o Arnaldo não é o único louco...
 Eu também, sou doidinho. Maluco de pedra.
 E você, está se sentindo um pouco louco, também?