A TERRA DA DEUSA FURIOSA

 
    O ano era 1799 Depois de Sand. Logo no terceiro mês, a nação Mowanglicana decidiu organizar uma enorme busca pelo território vizinho à sua nova colônia, Shiniha, que os nativos denominavam de Ernzal.
     O misticismo enchia aqueles dias de fim-de-século. Após uma rápida e furio-sa revolução industrial, o mundo conhecia cada vez mais a banalização e automatização da vida, bem como a exploração do trabalho.
     Que o digam as colônias das grandes nações das cúpulas do centro, o cha-mado “velho mundo”, suas cavidades ro-chosas e firmes. Havia aqueles que nunca trocariam suas terras natais pelo mundo exterior e as novas excursões... mas havia também os outros, que com apenas uma simples ordem de suas superiores, atirariam-se pelos túneis úmidos e frios, em bus-ca de riqueza e de aventura.
     Zenmark Gubal era um desses. O experiente oficial de guerra dizia conhecer o “velho mundo” tão bem a ponto de estar cansado dele. Bravatas de militar, mas não deixavam de ter sua verdade. Por isso, quando a primeira excursão às terras do Ernzal não retornou, a rainha de Mowanglicos decidiu deixar ao encargo dele uma segunda expedição.
     Nas fileiras sob o seu comando, sussurravam-se palavras de medo e estranheza. As terras e o povo de Shiniha, eram estranhos e excêntricos, de pele branca e com uma cultura considerada “primitiva” e “inferior”. Eram religiosos e crentes ao extremo, e nenhum deles ousava se apro-ximar do Ernzal senão à força: acreditavam que todos os que ali punham os pés esta-vam destinados ao sacrifício em nome de Orma, deusa das tempestades.
     Por isso chamavam o lugar de Ernzal, na verdade Ernzal Paraupil: signi-ficava, em sua língua, “Terra da Deusa Furiosa”.

* * *

     - Mowanglos estúpidos! - surgiu uma voz distante, esganiçada, entre a multidão - Vocês todos caminham para a morte, estão ouvindo, para a morte!
     Zenmark Gubal voltou-se para trás, a fim de tentar localizar a origem daquela voz irritante entre o silêncio da vila Shi-niha. Lá no fundo, uma berrante mancha esbranquiçada mostrava-se culpada. Gubal grunhiu.
     - Vou pedir para que removam esse incômodo, senhor. - ofereceu-se o jovem assistente Croen Tarn. Engraçado como dispunha-se a tudo que pudesse valer-lhe uma promoção... e com isso terminara por tornar-se o maior puxa-saco da história do exército.
     - Não. - Gubal sorriu - Tenho uma idéia melhor. Leve-me até ele.
     Croen pareceu espantado por al-guns instantes, mas rapidamente deu o comando para o cocheiro da carroça. Este deu uma arreada na chibata, e logo esta-vam dando meia-volta.
     Gubal enfiou a cara pra dentro do pano que dava para o interior da carroça. Seus olhos procuraram ávidos até esbarra-rem na destacada figura da nobre Tara Ga-dil. Parecia uma estátua de metal precioso ao lado dos soldados suados, cansados e nojentos.
     - Gostando da viagem até agora, Condessa? - Gubal sorriu, quase sádico.
     - Razoável. Mas ainda não vi nada da vegetação exótica, da paisagem, essas coisas que o senhor tinha prometido...
     - Estão sendo... providenciadas. De qualquer jeito, vocês estão prestes a ver algo bem divertido. - deu uma última olha-da de rabo-de-olho para a mocinha que quase tremia de tão assustada ao lado de Tara. - Dê um jeito nessa menina, está mais nervosa que um inseto de cabeça pra baixo. - e saiu.
     A Condessa olhou para Gina com um ar repreensivo. Esta tentou, em vão, parecer mais tranqüila.
     - Ele está certo, sabe. Você daqui parece mais ridícula que os aldeões lá de fora. - Tara reprimiu.
     - Eu não gosto desse lugar, Senho-ra. Por mim já teria corrido pra longe há muito tempo, só estou aqui por fidelidade à Senhora.
     Tara suspirou.
     - Bem, não importa, você logo verá como não há nada para se temer.
     Lá fora, a carroça aproximava-se do Shiniha irritado, que ainda gritava xinga-mentos com toda força de sua voz. Para-ram perto dele; Croen e Gubal desceram.
     - E eu digo - o homem continuava - nenhuma criatura viva jamais pôs os pés nas Terras da Deusa Furiosa sem permis-são, e deixou de receber punição! Vocês verão com seus próprios olhos e sentirão na própria carne!
     Gubal sussurrou para seu assistente:
     - Eles falam nossa língua?
     - Este fala, senhor.
     Gubal levou a mão ao queixo, e pensou por um momento.
     - Vamos descobrir qual é a desse pentelho.
     Andaram até o lado do sujeito, que a esta altura já estava sozinho, pois a mul-tidão abrira um buraco ao ver a carroça se aproximar; e Gubal pôs a mão em seu om-bro. O homem deu um berro e tremeu es-poradicamente, então virou-se para trás.
Olhou para os dois com olhos muito abertos.
     - Que querem, negróides estúpidos? - perguntou.
     Croen deu passou à frente, furioso, mas um gesto de seu chefe o deteve. Gubal começou o diálogo:
     - Você fala nossa língua?
     - Notou, né? - o shiniha riu.
     Gubal franziu o cenho, nervoso.
     - Que punição? - perguntou.
     O shiniha deu com os ombros.
     - Você estava falando numa puni-ção que nós receberíamos por invadir as tais Terras da deusa Furiosa. E eu quero saber qual é.
     O branco velho deu uma longa, mórbida gargalhada, depois tossiu como se fosse morrer engasgado, e só então conti-nuou:
     - Você quer saber a punição? De Orma, a Deusa Furiosa das Tempestades?
     - Sim. - Gubal respondeu. - E quero que você pare de rir, também.
     - É a morte! - o velho continuou, rindo do mesmo jeito e ignorando os co-mandos - Às vezes, ela invoca enchentes para matar os intrusos afogados. Outras vezes, usa furacões e ventos fortes para dilacerarem sua pele; ou então raios para reduzi-los à cinzas.
     Croen afrouxou a gola de sua cami-sa, enquanto uma gota de suor frio caía pelo seu rosto. Gubal bocejou.
     - Sei. E é claro que foi isso que aconteceu com a última expedição. - o co-mandante ironizou.
     - Naturalmente.
     - Pode então me dizer como é que  o senhor sabe dessa história toda?
     - Eu sei, eu sei!!! - o velho berrou com mais força ainda - Sei pois sou Dni-triko Alhuba, xamã desta tribo, sábio e grande servo dos Deuses!!
     - Conhece bem essas terras?
     - Conheço essas terras melhor do que este pedaço de madeira conhece meu nariz! - apontou para o brinco de madeira que usava. Os dois militares viraram o rosto em desgosto.
     - Então, por que não vem conosco na expedição? Seria de grande ajuda.
     O velho riu de novo.
     - E ainda vem me pedir ajuda!! Vocês são patéticos!
     - Eu não pedi. - Gubal engatilhou a pistola a dois centímetros da testa dele.
     O velho olhou espantado para aquilo, não entendendo do que se tratava. Apontou para a arma:
     - E o que esse pedaço de metal pode fazer para me convencer?
     Gubal deu um tiro no chão. Os al-deões correram pra suas casas e esvazia-ram o lugar. Os 50 expedicionários todos saíram das carroças, armados, esperando alguma tipo de ataque. E Dnitriko deu duas voltas em círculos, saltitando e berrando, para afinal tropeçar e cair no chão, gemen-do.
     - Pode estourar sua cabeça como uma ameixa. - Gubal concluiu.
     E puxou o velho pra dentro da car-roça.

* * *

     Paulo acordou de madrugada com uma vontade desgraçada de ir no banheiro.
     Abriu a porta quase fazendo nas calças, e não se deu ao trabalho de fechá-la. Missão cumprida, olhou no relógio, eram três e quinze da matina.
      “De repente deu uma sede”, pen-sou. “E uma fome. Hmmm.... onde foi que ficaram os restos daquele bolo de laranja de sábado passado?”
     Lavou as mãos e andou pra cozi-nha.

* * *

     Três dias se passaram desde os imprevistos da vila Shiniha.
     A expedição continuava seu percurso pelas terras úmida da região, orientados pelos conhecimentos do relu-tante Dnitriko. Tara teve o que queria, afi-nal: conheceu a fauna e a flora exótica do local, que variava de florestas densas às planícies mais áridas, insetos à rinocitrom-bus, criaturas quase dez vezes maiores que pessoas comuns.
     Conforme chegavam mais perto de seu destino, mais frios e úmidos os túneis se tornavam. Encontraram a nascente de vários rios e então a terra passou a tornar-se cada vez mais sólida, firme. Gubal enca-rava tudo com um otimismo nunca visto, sorria de ponta a ponta do rosto. Via as mudanças no solo e a umidade como fato-res positivos, bebia vinho à noite. Mas brindava sozinho. Todos os outros dormiam após ouvirem sermões e lendas de Dnitriko sobre as maldições do Ernzal e tinham pesadelos. Acordavam e viajavam aflitos. Os soldados passavam a ver miragens de guerreiros indígenas no horizonte com freqüência, e muitos tive-ram alta febre. Croen tremia de medo toda a vez que um soldado alucinado gritava, e suava frio com as histórias do xamã. Tara a princípio maravilhou-se, e depois começou a temer a viagem tanto quanto os outros, mesmo que nunca admitisse ou demons-trasse. E sua serva, Gina, não parava de implorar para que desistissem dessa idéia louca de explorar uma terra tão perigosa.
     E no início do quarto dia, as pare-des dos túneis começaram a se estreitar, assim como um facho de luz muito forte começou a surgir no horizonte. Quase como se ela fosse sobrenatural, diferente da luz do dia a que estavam acostumados.
     - Que diabos é essa luz, velho? - Gubal indagou ao xamã, aflito.
     - Nosso sinal. Ali, no horizonte, está vendo? Ali, o túnel se afina demais para as carroças passarem, vamos ter de deixá-las.
     - Sim, mas o que há depois dele afinar?
     - Ele termina.
     - O QUÊ?! - os ocupantes da carro-ça gritaram, quase em uníssono.
     - O túnel termina. Foi o que eu dis-se, não?
     Um segundo de silêncio passou-se antes que todos pudessem acreditar que o velho realmente falava sério. Croen conseguiu, com algum esforço, quebrá-lo:
     - Você tem noção do que acabou de dizer? O túnel é o mundo! Se ele acaba, significa que o mundo acaba também!
     Dnitriko abanou a cabeça e riu cini-camente:
     - Já disse como os mowanglos têm uma visão de vida limitada.
     Dessa vez foi Gubal quem ia esga-nar o velho, e Croen quem se pôs em seu caminho.
     - Sai!! Eu vou mostrar pra esse branquelo velho quem é limitado!
     - Calma! Se o que ele fala é verda-de, então ele é o único que pode nos guiar nesse túnel e depois dele!
     Gubal parou, soltou outro grunhido e virou-se para dar ordens à seus homens:
     - Abandonem as carroças. Daqui seguimos à pé.

* * *

     Duas horas de caminhada depois, o túnel fechou-se a tal ponto que apenas uma pessoa poderia passar por vez, arrastando-se por uma única pequena fresta da qual saía a luz mais intensa que já tinham visto.
     - Aqui é o limite. Adiante está o Ernzal. - declarou Dnitriko, apontando para a fresta - Devíamos parar agora. En-trar significaria a morte.
     - Bobagem. - Gubal aproximou-se - Você mesmo disse que já entrou aqui.
     - Sim, mas nunca quando a luz di-vina está acesa. Significa que Orma está alerta e não quer ser perturbada.
     Gubal grunhiu novamente, e virou-se para Croen:
     - Diga aos homens que estamos entrando. Eu vou na frente.
     - Senhor, espere, por favor! - uma voz feminina e uma mão suave detiveram o comandante. Este virou-se para se depa-rar com Gina, desta vez absolutamente desesperada - Eu tenho certeza de que, se entrarmos aí, nenhum de nós vai sair vivo! Fique, vamos voltar e esquecer de uma vez essa terra idiota!
     Gubal afastou a mão dela suave-mente, e então declarou:
     - Você e Tara podem ficar, se qui-serem. - olhou para a Condessa.
     - Eu estou... curiosa demais - ela respondeu - Vamos, Gina, será uma aven-tura e tanto! - fingiu ânimo, escondendo o terror puro que fervia em seu sangue. Gina abaixou a cabeça, e começou a abaná-la negativamente.
     - E você, velho, vem logo atrás de mim. - Gubal virou-se para o xamã.
     - Eu? Mas, se eu entrar, minhas chances de sobreviver seriam...
     - Melhores do que se ficasse aqui pra eu estourar sua cabeça. - interrompeu o comandante. - Atrás de mim, agora. E pôs a cabeça pelo buraco, depois as mãos, a cintura, e enfim, quando passa-va com as pernas, todos puderam ouvir seu berro abafado:
     - Por tudo que há de mais sagrado!
     Muitos começaram a rezar, Tara gritou o grito mais estridente que já se ou-viu, e Gina chorou. Dnitriko permaneceu imóvel à beira do buraco. Todos pareceram esperar um ruído, um estrondo, qualquer coisa que significasse a morte de seu comandante, mas houve apenas o silêncio.
     - Chefe? - Croen aproximou-se do buraco, lentamente - O senhor está aí?
     - Claro que estou, idiota! - o som veio ainda mais distante. Todos animaram-se.
     - E... é seguro aí, senhor?
     - Se é seguro? Ora, melhor que isso aqui só minha casa!
     Todos olharam-se, e então Croen subiu em disparada pelo buraco, puxando Dnitriko atrás de si. Os soldados começa-ram a entrar depois deles, e todos que che-gavam lá em cima soltavam uma ou duas exclamações no estilo “Meu Deus” ou “Nossa”. Afinal, Tara tomou seu lugar na fila.
     - Menina, você não vem? - virou-se pra Gina - Ora, o comandante já disse que é seguro, deixa de ser boba!
 Gina levantou o olhar, hesitou por um momento, e então atirou-se pelo buraco junto com sua ama. A luz cegou seus olhos como nunca fizera antes, um clarão quase atormentador...
     E no instante seguinte, deslumbrou-se com a visão mais magnífica de toda a sua vida.
     A luz que a cegara provinha de um objeto alongado e brilhante, inimagina-velmente longe e, ainda assim, de aparên-cia gigantesca. Sua luz parecia que podia iluminar até mesmo Mowanglica, se não fosse a espessura dos túneis. Mas a luz era apenas parte da maravilha. O solo era firme, sólido, liso como nunca vira antes, e branquíssimo. O azul enchia tudo que não era chão, no que um dia seu povo viria a chamar de “céu”. E nesse ambiente maravilhoso, residiam as ruínas do que devia ter sido uma civiliza-ção gloriosa e poderosa: enormes edifícios piramidais e coníferos que subiam até onde a vista alcançava, estradas, estátuas, ruas, e uma praça onde havia uma fonte que jorra-va até hoje água claríssima.
     Além, é claro, do que chamou mais atenção por parte de todos: a entrada para uma espécie de mina, da qual saía um bri-lho dourado reluzente que só podia signifi-car uma enorme e estupenda quantidade de ouro.
     Não demorou muito até que o cho-que da primeira impressão passasse, e a tropa toda se atirasse em direção à mina. Atrás deles, andando mais calmamente e observando à tudo, ficaram apenas Gubal, Dnitriko, Tara e Gina. Mais adiante, Cro-en, que foi com a tropa, voltava para rece-ber ordens seu líder:
     - Devo ordenar reagrupamento?
     - Não. - Gubal respondeu, um tanto desleixado - Não há nada a temer. Deixe que façam a festa deles, merecem depois de toda essa viagem.
     - Sim, senhor.
     Gubal abriu um sorriso de satisfa-ção, e voltou seu olhar para Dnitriko. Este, ainda sério e pesaroso, proclamou, sem olhar o comandante nos olhos:
     - Ao deixar as riquezas desta terra serem exploradas, está apenas piorando sua situação em frente à Orma, negróide.
     - Ah, qual é, velhote! - Gubal riu - Será que você ainda não entendeu? Sua deusa nunca existiu! Era apenas um débil fruto da imaginação coletiva de vocês. Vocês só devem ter se assustado com essas ruínas, e começaram a inventar besteira, só isso.
 De repente, Dnitriko mirou para o alto com olhos bem abertos, e no instante seguinte corria para baixo de uma das ruí-nas, desesperado. Enquanto gritava, ao longe, deixando seus companheiros atôni-tos, gritou sua resposta, acompanhado de uma trovoada fortíssima:
     - Repete isso agora!
     Os quatro imediatamente olharam para cima, e compreenderam: o azul claro de antes enegrecera, cobrindo a luz até quase a total escuridão. Caia o primeiro pingo de chuva, enquanto que o trovão, provava-se apenas conseqüência de um primeiro raio, que descia para partir em pedaços um dos soldados saindo da mina.
     - Corram! - foi tudo que Gubal pode gritar enquanto tomava fôlego para sair em disparada.
 Dispersaram-se. Gubal e Gina cor-reram para debaixo de um edifício cônico, ainda razoavelmente inteiro; o xamã en-contrava-se perto deles, mais ou menos na mesma situação; Croen e a Condessa ru-mavam para o tunelzinho da saída; en-quanto os outros soldados, em sua maioria, eram arrastados pela aguaceira que agora enchia a mina. Uns poucos deles escapa-ram em direção às ruínas da cidade, mas já eram em uma quantidade diminuta.
     - Oh, meu Deus... - Gubal sussur-rou, os olhos arregalados de pavor, en-quanto via de dentro do edifício o caos que viviam.
     - Eu disse, não disse? Disse que tinha um péssimo pressentimento!... - Gina lamuriou, sentada no chão frio.
 A chuva tornou-se ainda mais que torrencial. Dos soldados, apenas três que restavam agora estavam prestes a ser soter-rados debaixo de uma pirâmide, derrubada por outro raio. E quando tudo parecia perdido, Gubal pôde ver seu segundo em co-mando se embrenhando pelo túnel de en-trada, com a Condessa a seu lado. Gritou para Gina, animado:
     - Olha, vem cá ver! Estão fugindo!
     Gina pôs a cara pra fora, esperan-çosa. Olharam-se:
     - Depois deles, nós seguimos. - o comandante concluiu.
     E já estavam fora do prédio, quan-do um relâmpago pulverizou Croen, a saída, e qualquer chance de escapar. Tara primeiro ficou estática, e depois caiu de joelhos em frente ao túnel soterrado. Os gritos de “corre” de sua serva e do comandante de nada adiantaram para impedir que ela se deixasse levar pelo violento tufão que se formava.
     Olharam-se de novo, e correram de volta para as ruínas. Gina começou a rezar.
     Perto deles, Dnitriko mostrava-se para sua Deusa, de braços abertos:
     - Orma!! Orma, Deusa da Tempes-tade, ouça seu humilde servo implorar teu perdão! Oh, onipotente e piedosa, sabe que não tenho culpa pelo que aqui aconteceu!
     A chuva parou por um segundo, no qual o xamã mostrou um sorriso malicioso de felicidade. Ele olhou para Gubal de lado, quase como se zombasse do comandante...
     ... Apenas para ser tragado pelo tufão no instante seguinte.
     Gina gritou de pavor e encolheu-se contra a parede. Gubal abaixou-se próximo à ela. O tufão caminhava na direção deles.
     - Será que é tarde demais pra pedir desculpas? - o comandante sussurrou.
     - Pra ela? - Gina riu, meio que pra não chorar mais.
     - Não. Pra você. Pra todos. Pra que saibam que eu morri arrependido.
     Gina encolheu-se mais ainda. Gu-bal levantou-se, olhou para o tufão aproximando-se, depois para o vasto horizonte do Ernzal. Então puxou Gina pelo braço, e arremessou-a pelo portão:
     - Corre! Corre pra qualquer lugar! - foi a última coisa que disse, instantes antes da construção desmoronar. Então Gina correu com todo o ar de seus pulmões, enquanto atrás de si o edifí-cio era totalmente carregado. Correu pelo que lhe pareceu uma eternidade, a vida toda passando novamente pelos seus olhos, até uma parada súbita.
     Olhou para baixo, e viu que o chão acabava. À sua frente, havia apenas um imenso vão, um abismo. Voltou os olhos para o tufão, e em desespero, berrou, como se esperasse ser ouvida:
     - Porquê?! Por quê mesmo eu, que de todos aqui não tem culpa?! Porquê!!?? - caiu de joelhos - Será que eu, que nós re-almente merecemos isso??!! Será que...
     Não terminou de falar. Mesmo an-tes disso, seu corpo despedaçado foi carre-gado pela força dos ventos, e depois joga-do no abismo.

* * *

     Paulo limpou os restos da última das formigas de seu dedo, e então olhou pra zona que tinha ficado a mesa.
    Cinqüenta. É isso aí, pelo menos umas cinqüenta formigas em cima do bolo de laranja, que ele teve o trabalho de es-magar, uma a uma. E isso porque o DDT garantiu que não tinha sobrado nenhuma.
     Merda. Perdeu o bolo! Um final perfeito para um dia medíocre.
     Deu uma limpada na mesa com uma pá, jogando as formigas mortas todas no lixo, e então voltou pra dormir, de mau humor...
     Mas garanto que seu humor estaria ainda pior se soubesse que, em algum lugar, era conhecido como “Orma, a Deusa Furiosa das Tempestades”.

* * *
por Heitor Coelho;
em memória daquele monte de
formigas que eu mato quando vou
na cozinha de madrugada.