Acordou. Melhor, o despertador acordou-o pontualmente às seis e dez, mas ele barganhou consigo mesmo mais dez minutos de cama e pôde curtir aquele estado como que de lusco-fusco entre sono e vigília, em que pensamento e delírio se confundem sem que tenhamos fumado maconha nem estejamos loucos. Decorridos dez minutos, o senso do dever falou mais alto: tinha de levantar àquela hora se quisesse chegar em tempo ao trabalho.
Se fosse o personagem de um conto, algo de extraordinário lhe aconteceria naquele dia: ganharia na loteria, se enamoraria por prostituta, seria seguido por vulto misterioso... mas qual o quê, aquilo não era conto, era vida real, onde as pessoas suam e têm problemas de fluxo de caixa, e ele não passava de uma pessoa comum, que maçada.
Tirou a cueca. Desde que se separara, dormia de cueca. Atirou-a num canto da cama, depois arrumaria a bagunça. Entrou no banheiro, viu-se no espelho, não por narcisismo, mas porque o banheiro era pequeno e o espelho ficava bem defronte à entrada: espelho de porta de armário de banheiro. Não precisou levantar a tampa da privada para fazer xixi. No tempo de casado, se ousasse deixar a tampa levantada, a mulher reclamava. Hesitou entre fazer a barba ou tomar banho. Optou pela segunda alternativa. Não precisou abrir o boxe do chuveiro para entrar. Quando casado, a mulher ralhava se esquecesse o boxe aberto. Casamento nunca mais, embora sentisse saudades do contato diário com o filho.
Um homem comum, quarenta anos, aparentando 35, calvície incipiente mas miopia de cinco graus. Não se adaptava às lentes de contato. Tirou os óculos para tomar banho, colocou-os sobre a tampa da privada aí sim, teve de fechá-la e fixou na memória o local pois estava farto de deixar os óculos em algum lugar e depois se esquecer onde.
Sem óculos, os contornos dos objetos perdem a nitidez, fica tudo desfocado. Entrou no chuveiro, fechou o boxe. Na saboneteira, fiapo de sabonete, de modo que teve de abrir de novo o boxe para pegar o sabonete da pia. "Preciso de alguma aventura, safári no Quênia, conquistar louraça capa de Penthouse..." Que nada, um homem comum, que se apaixonara por uma mulher igualmente comum, embora não de todo destituída de encantos, amor cujo combustível se esgotara. Se estivesse num filme, tudo aquilo aconteceria, safári, louraça e coisa e tal, mas a vida real é monótona e com o suor do rosto ganha-se o pão de cada dia. Sequer a alegria de chegar em casa e saber que o filho tirara nota MB no colégio (ou o contratempo de saber que recebera anotação por mau comportamento), agora que se separara.
Fez cinco flexões, um mínimo de exercício físico convém praticar, e ligou o chuveiro. Água fria, fazia calor. Ademais, banho frio é saudável. Depois de molhado, desligou o chuveiro perdoa-me, leitor, contos envolvendo gente comum são maçantes, mas eles também merecem um lugar ao sol literário dobrou o corpo para pegar o vidro de xampu (que era de plástico) no chão do chuveiro, divisou mancha preta, indiscernível sem os óculos, "essa diarista não está limpando direito a casa". Entornou porção de xampu na palma da mão e pôs-se a friccionar os cabelos.
Ah, se aquilo fosse peça de teatro, estaria a declamar algum monólogo grandiloqüente, discorrendo sobre a falta de sentido da vida... mas gente comum não tem tempo de achar a vida sem sentido, isso é coisa de neurótico ou personagem de literatura.
Aproveitou a espuma do xampu para ensaboar axilas e pelos púbicos. O resto do corpo, lavou-o com sabonete. Cor-de-laranja. Com lanolina. Cheiro de... sabonete tem cheiro bom, mas tão artificial, impossível um símile com a natureza. Voltou a ligar o chuveiro para enxaguar o corpo. Vontade de mudar para quente. "Não, banho frio é melhor, faz bem à circulação. Homem que é homem não teme banho frio!" "Deixa o inverno chegar pra ver quem é homem", replicou um diabinho.
A mancha escura no chão mudara de lugar, deslocada pela água. Troço estranho. Trem doido, sô, diria o mineiro, mas ele era gaúcho, tchê! Bá! Pegou a toalha pendurada sobre o boxe. Deveria se secar dentro do chuveiro pra não molhar o banheiro, mas a impaciência impediu. Ai, se a ex-mulher visse, seria chilique na certa. Ainda sem óculos, passou fio dental entre os dentes da parte inferior direita da boca cada dia fazia a profilaxia de uma região bucal; a boca toda de uma vez, não tinha saco. Apanhou a bisnaga de pasta de dente branqueadora dos dentes, estava escrito, mas era mentira. Apertou bem no meio. Xi, se a mulher visse aquilo, o certo, diria ela, era apertar a bisnaga na extremidade oposta à saída da pasta e ir enrolando aos pouquinhos à medida que a pasta se consumisse. A economia é a base da prosperidade, dizia-se outrora. Só que com as bisnagas modernas de plástico não dá pra fazer nada disso, bem feito pra mulher.
Pôs os óculos para poder fazer direito a barba. Lembrou-se da mancha preta no chão do chuveiro. Resolveu ver o que era, agora que a visão readquirira plena resolução. Levou um baita susto. Horror dos horrores! Estirada no chão do chuveiro, asquerosa barata. Mortinha! Decerto se afogara na água do chuveiro. E ele tomando banho tranqüilamente sem desconfiar de nada, o ceguinho! Uma possibilidade medonha perpassou-lhe pela mente: teria pisado no monstro? Mecanismo de defesa psicológico expulsou o terrível pensamento. Sentiu aflição indescritível.
"Tenho de tirar essa barata daí." Ah, se ainda estivesse casado. Mulher é macho, não têm medo de barata. Certa vez lembrou-se assistia tranqüilamente a um filme da televisão às altas horas da madrugada quando entrou voando pela janela hedionda barata, descomunal, chiante, dir-se-ia egressa dos círculos infernais. Baratas voam na vida real? Sei lá, aqui se trata de conto onde coisas extraordinárias acontecem. Além de gigantesca, velocíssima, transpunha instantaneamente a distância de parede a parede. Ora aparecia de um lado, ora reaparecia do outro. Ou seria legião de baratas? Ou criatura fantástica com o poder de se dividir em dois, quatro, oito ? Em pânico, correu ao quarto e acordou a mulher. Esta muniu-se de vassoura e, com a coragem que só as mulheres têm, reduziu o exército de mostrengos a um cadáver de barata. Que era maior do que baratas comuns, isso era, concedamos.
Agora não tinha mais a mulher por perto, teria ele mesmo de dar sumiço à barata. Apanhou vassoura e pá e voltou ao banheiro. Tencionou varrer o inseto, mas o braço não obedeceu à ordem do cérebro. O nojo o paralisava. Cadê coragem? "Reage seu pusilânime, és homem ou rato?" "É rato!", interveio o diabinho gozador.
Não conteve pensamento blasfemo: a barata é a prova contundente da imperfeição do Criador. "Perdoai-me, Senhor." Fez o sinal da cruz. "Deus, dai-me coragem para varrer a barata." Deus manteve-se impassível no trono celestial. Nos desenhos animados, até o repelente camundongo adquire um caráter gracioso, ares de simpatia. Mas barata não tem jeito. Foi salvo pelo gongo, melhor, pela lembrança: "Deixa pra lá, hoje é dia de Neide vir, graças a Deus! Depois ela varre." Duas vezes por semana, uma empregada diarista vinha arrumar o apartamento, lavar e passar roupa etc. Vestiu-se correndo porque estava em cima da hora, ainda não tomara café, o trânsito depois de certa hora fica uma brabeira e o chefe não gosta de funcionário impontual. Não obstante as baratas.
Ivo Korytowski - abril de 1999