Então você quis provar o absinto
das noites verdes do néon
e se embriagar de lírios e pássaros
até tocar com a língua
o infinito brilho das estrelas?
Você quis cair do alto
sem se ferir durante o vôo?
E desejou a flor do ópio
atravessando as longas avenidas da madrugada
como um vento quente nas cortinas?
Você quis sorver o sangue espesso do tempo
para poder sentir no fundo dos olhos,
no labirinto das veias, a fúria das esquinas?
Tentou sonhar com máquinas magníficas
que não triturassem seus miolos?
Você quis provar o espesso vinho tinto aéreo da Mulher-Sereia?
Quis aparecer nos espelhos dos olhos de água-viva da Medusa?
Teve calafrios debaixo dos lençóis?
Mergulhou na tempestade
com a palavra de fogo tatuada na testa?
Então você quis cantar a canção
do anjo negro e dissolver na dura claridade?
Quis ouvir a melodia dos abismos?
Provar o doce canibalismo das borboletas?
Você quis voar rumo ao sol com asas de cera
e, no entanto, tudo que sobrou foi essa Monalisa sarcástica,
com seu sorriso de escárnio, no inevitável dia seguinte.
NÃO ESPELHO
Não amarei ninguém com você por dentro.
Algumas palavras cruas
Ainda me doem as caries
e os comprimidos vermelhos que me esfriavam
foram retirados do mercado.
Todos sabem que perdi feio logo no primeiro páreo
E, por favor, não me diga nada que possua asas.
Beberei cerveja choca e fumarei filtros brancos
quando tudo ficar entre as quatro paredes
e só nós dois no escuro.
Claro que posso ser de gelo e não derreter.
Apenas pousarei minhas mãos sem memória
no crespo dos cabelos e farei chover
apagando o tempo.
Serei um pouco de cada um de mim
e você poderá escolher o pedaço mais doce.
Agora que já não quero paz nenhuma
você pode rasgar todos os planos da eterna luz.
Há sim essa tristeza morna diante dos meus pensamentos
de homem líquido secando ao sol
e essa certeza clara que não amarei ninguém
com você por dentro.
JAZZ PARA OS INTRANQÜILOS
Aqueles caras da década de 70
viraram flores finalmente.
São agora flores do mofo
e descansam em paz
nos cemitérios das bibliotecas públicas.
Enquanto isso a garota branca
olha para os seios murchos
e senta-se ao sol da segunda-feira
para folhear sua revista de moda
e assassinatos gentis.
“Vamos fazer compras, meu bem?”
“Oh!, é claro amor!”
E é com isso que os sonhos
vão virando economia doméstica,
estrelas empalhadas no fundo dos olhos.
Confesso que foi difícil
aprender a sangrar sozinho.
Também não foi nada fácil
ver os amigos virarem idiotas.
Mas não vou chorar agora que trinquei os dentes:
não quero brincar de medo no escuro e nem tentar fugir.
Eu sei: é uma velha estória
amanhecer vivo todos os dias.
O sol frio nos pés, essa palavra úmida,
esse par de olhos embolorados
já não podem mais alcançar a estrela
e aqueles caras da década de 70
tentaram e conseguiram embarcar para a Nave do Fim do Mundo.
Lisérgicos, aqueles caras da década de 70
deixaram tudo ácido e os trocadilhos são por conta da
casa.
Mas venha consertar meus dentes podres, Garota de Aquário!
Não há medo agora que estamos seguros no refrigerador.
Vamos passear depois do bang-bang
porque não há mais perigo para nós que estamos
limpos.
Aqueles caras da década de 70
estão finalmente mortos com as flores nos dentes
e o domingo vai ser de chuva
com poucas possibilidades de sol.
SUÍTE 21Enquanto o tempo passa
você fica fazendo bolinhas de fumaça,
flutuando dentro de seu arco-íris frio,
imaginando sonhos indolores, vôos panorâmicos,
imaginando que pode dominar o mundo.Enquanto o tempo passa
há um desastre aéreo na ponta dos dedos
e você gruda o rosto no vidro da janela
e observa o sol ao longo da avenida:
há perfumes pálidos, som de frituras,
vários tipos de morte e a extensão cansa.O ar viciado e o mel apodrecido dos olhos e dos lábios
se esfarelam pelo tapete como uma melodia oca.
Dentro do meu coração ouço seu coração de casa abandonada
e os pássaros que atravessam a manhã
são de puro concreto armado.Não há crianças, gatos, música aérea
para esse domingo fechado.
Só esse sol parado
enquanto o tempo passa.
NÃO ESPELHO
Não amarei ninguém com você por dentro.
Algumas palavras cruas
ainda me doem as cáries
e os comprimidos vermelhos que me esfriavam
foram retirados do mercado.
Todos sabem que perdi feio logo no primeiro páreo.
Então, por favor, não me diga nada que possua asas.
Beberei cerveja choca e fumarei filtros brancos
quando tudo ficar entre as quatro paredes
e só nós dois.
Claro que posso ser de gelo e não derreter.
Apenas pousarei minhas mãos sem memória
no crespo dos cabelos e farei chover
apagando o tempo.
Serei um pouco de cada um de mim
e você poderá escolher o pedaço mais doce.
Agora que já não quero paz nenhuma
você pode rasgar todos os planos da eterna luz.
Há sim essa tristeza morna diante dos meus pensamentos
de homem líquido secando ao sol
e essa certeza clara que não amarei ninguém
com você por dentro.
Jorge Mendes