COM A NOITE NOS DENTES                                                                      
“Ah, meu amigo, sabe o que é a criatura solitária,
vagando pelas grandes cidades?...”

Albert Camus

    Quem estiver querendo se divertir é só procurar Kiki Biquíni. A garota é do outro mundo. Freqüenta barzinhos Existencialistas, toca contrabaixo, joga capoeira, adora jazz, só se veste de preto, se diz Lacaniana e sempre diz sim.

    O Índio é a sombra de Kiki Biquíni. Ele tem complexo de inferioridade por ser índio e fica puto quando o chamam de silvícola.

    A Cidade é um cu escancarado com hemorróidas e ninguém mais está brincando de tiro ao alvo: os caras estão atirando para matar.

    "No fundo fica todo mundo boiando!" Lola Blanche é a garota da moda e é ela quem diz que "no fundo fica todo mundo boiando". Mas a noite está quente demais para se ficar ouvindo frases de efeito. Resolvo sair para chutar umas latas, ver o movimento, entrar na circulação, agitar o Parangolé.

    A verdade é que acaba ficando engraçado depois que você se acostuma com a merda toda.

    O Nariz de Martelo tem a mercadoria que preciso: "O mundo só é azul fora de órbita!", digo cantarolando a letra do velho blues. O Nariz de Martelo dilata as narinas e fica com elas dilatadas. "É isso aí, meu chapa! É só dilatar e absorver!", ele diz mostrando os dentes descalcificados.

    Kiki Biquíni é sutil como um solo de bateria as quatro e meia da madrugada e possui o dom de aparecer grudando onde quer que você esteja. Ela me apresenta Adelaine, a Surfista Loira. Deixo a conversa se desenvolver porque são elas que estão pagando os Ballantine’s. Adelaine, a Surfista Loira, diz que "terça-feira é da cor amarela", que adora jogar "Críquete do Enforcado", e a frase "Me beije com força". Ela até que consegue o efeito dramático, mas não me comove. Também não vou dizer que Kiki Biquíni é inteiramente esquizóide. Não precisa. Todo mundo sabe. Basta manter um mínimo distanciamento crítico.

    "Alguns já nascem póstumos", é o que o Crânio Saltado diz e ele sabe o que está dizendo. O pessoal respeita o Crânio Saltado exatamente por essa qualidade rara que ele possui de sempre saber o que está dizendo. É bem verdade que existe um abismo, uma distância intransponível entre o que o Crânio Saltado diz e o que ele faz. Ação e Prática. Ele fica confuso. Parece que a cabeça incha. O rosto fica vermelho-vinho. Os olhos estatelados, embaçam. Os lábios tremem. Espuma. Fica horas assim. Pessoalmente evito me aproximar porque sei que ele pode morder.

    Kiki Biquíni rói as unhas antes de dormir e, por causa do uso constante do Soneryl - a pílula para dormir que provoca sonho instantâneo sem passagem pelo sono - , ela sonha a anos que está num campo de prisioneiros sofrendo de desnutrição. Mas só eu sei disso. Digo boa-noite cortando pela metade o suspiro de afetação do travesti negro de peito cabeludo que sentou na nossa mesa, bebo numa talagada só o último gole do Ballantine’s e dou o fora.

    As ruas do Centro estão sempre intransitáveis e a magrinha de blusa assimétrica, short dool com renda de lycra, meias 7/8, botas hessianas, cabelo Chanel desestruturado e enormes cílios postiços é Vera Golik. Ouço quando ela grita meu nome e a vejo acenando seus braçinhos brancos para mim. Na rua Babylone 107, ela tem um apartamento semi-destruído num prédio condenado e é para lá que eu vou.

    Sentados no almofadão indiano feito de sacos de farinha, fumando craque em cachimbos de papel alumínio, tendo as convulsões da droga como ratos de laboratório, pálidos como gesso ainda quente, ouvindo Rain Dogs do Tom Waits no último volume, estão Os Esquartejadores de Annabelle, O Grupo De Rock Mais Pesado Do Mundo. O fato é que eles conseguiram gravar uma das canções de Paul Joplin antes do cara virar picadinho humano nos trilhos do metrô e a música foi para o topo do hit parede. Agora, em qualquer sarjeta, você escuta alguém cantando "Esmague minha cabeça com um ferro quente!" por entre os dentes e é isso que dá nos nervos.

    Perto da janela de folhas japonesas casais de lésbicas trocam beijos franceses e na cozinha o tráfico corre solto. Consigo três papelotes e convido Vera Golik para ir no terraço apreciar a lua que hoje é cheia, a constelação de Oríon, para viajar comigo pelo céu líquido dos trópicos, mas ela prefere dar uma volta. Concordo e o cara do taxi diz que os semáforos estão fervilhando a sete mil graus Célsius e sai patinando, gastando os pneus no asfalto, atropelando os espaços vazios da Avenida Central.

    Em frente ao Drome a gente desce porque Vera Golik está com vontade de dançar. São ainda onze horas, mas a casa já está com a pista lotada: cafetões, empresários corruptos e uma sinistra variedade de traficantes se acotovelam diante dos arcos góticos da porta de entrada. O armário leão-de-chácara com o cabelo moicano é o Patrick. Ele coloca uma pata no meu peito e digo o nome de Paolo Baciliero. Ele tira as patas, dá um sorriso afetado e entro triunfante.

    Iluminações pontuais, efeitos estroboscópicos, dançarinos varridos por feixes de luz e é no andar de cima, nas mesinhas de ébano, onde as coisas acontecem. Peço um Ponche Vitória e subo a espiral da escada de ferro fundido. As luzes coloridas do caleidoscópio gigante pendurado no teto de fundo infinito cortam o ar deixando as pessoas todas em luminosos fragmentos de pernas, bundas, seios, braços, cabeças, mãos, pernas, olhos, bocas e dentes que se movimentam espalhados pela pista giratória. É legal.

    O cara atrás da parede de vidro, dentro do aquário, com os fones de ouvido, fazendo sinal, é o DJ da casa. Ele aponta para a própria boca e depois para mim e entendo que ele quer falar comigo. Faço um movimento circular com o dedo médio e ele sorri mostrando o rubi que tem encravado no dente da frente.

    O funk remixado e sampleado do James Brown abala as estruturas das colunas gregas feitas de isopor e os tímpanos ficam latejando pelo som da sirene de bombeiro que o DJ dispara em intervalos de quinze segundos cravados.

    Vera Golik se contorce na pista giratória. Balança o quadril como se estivesse cavalgando um caralho invisível. Joga os cabelos no rosto, faz biquinho e sinto vontade de morder o pescoço branco dela. Ela sobe a espiral da escada de ferro fundido e senta ao meu lado resfolegando. Diz que dançar a faz se sentir livre como um pássaro com seis belas asas, voando a quinhentos milhões de léguas do sol, numa pequena estrela perto de Sírio, lá onde vive um anjo e eu digo que quero morder o pescoço branco dela. Ela enfia o dedinho no meu copo e quer saber o que é isso que estou bebendo. Explico que o Ponche Vitória é uma invenção do velho Bill: "Composto de paregórico, mosca espanhola, run escuro pesado, conhaque Napoléon e calor enlatado", digo brincando com as mechas do cabelo Chanel desestruturado. Ela passa a língua nos lábios dizendo que aquilo é bom e peço mais dois duplos. "Tudo é tão divertido!", ela diz piscando os enormes cílios postiços e mordo o pescoço branco dela.

    O DJ deixa uma seleção de blues rodando no deck e vem sentar-se na nossa mesa. Vera Golik o chama de "O Meu Djzinho" e ele diz que "tudo é só uma questão de sensibilidade musical", olha para mim e balança a cabeça. Cita Jimi Hendrix e dou risadas. Conta a estória do cara que queria saber o que significava a frase "O invisível caindo aos pedaços" e Vera Golik comenta algo parecido com um "não seja grosseiro, benzinho!" O DJ diz: "Escute, irmão!", mas já faz tempo que não escuto nada. "Perda súbita de interesse!", digo olhando para a pista giratória.

    Vera Golik dá um gritinho assim que ouve os primeiros acordes de Summertime e quer dançar comigo. Digo que estou com cãimbras nos testículos e então ela fala o seguinte: "Antes de aplicar o rímel passe uma camada de pó translúcido. Corte pequenos tufos de cílios postiços e cole junto à raiz dos naturais desde os cantos externos até o meio dos olhos. Depois aplique mais rímel e você verá que os cílios pareceram maiores e mais cheios!"

    Olho para o DJ e ele diz: "É isso aí, mano!", e volta para o aquário. Coloca os fones de ouvido, faz soar a sirene dos bombeiros e detona com meia hora do mais pesado heavy trash metal do planeta, lixo sonoro puro, uma maravilha.

    O cara do Idiota Sou Eu, o talk show mais comentado da Cidade, chega com uma ruiva de dois metros e dez e vem justo na minha direção. Fica um tempo me encarando com sua cara lustrosa de buldogue super bem alimentado e eu observo. A ruiva de dois metros e dez que ele está exibindo é na verdade Zhora Liz, travesti e dedetizador. Pense na Bela e a Fera, ela é as duas. Mas não acredito que o cara do Idiota Sou Eu mereça saber disso. "Vamos sacudir os ossos desse velho esqueleto, meu bem!", digo numa naturalidade forçada, puxando Vera Golik pelos pulsos, descendo a espiral da escada de ferro fundido e desaparecendo na pista giratória.

    Fico pulando ali no meio até perder totalmente o controle dos braços, pernas, quadril e pescoço. Caio sem fôlego no piso iluminado do chão de plástico temperado da pista giratória e fico olhando o teto de fundo infinito. As luzes multi-coloridas do caleidoscópio vão me deixando mais tonto e é o Índio que me estende a mão. Ele berra em meu ouvido algo que não entendo e aponta para a saída.

    Dentro do Maverick azul metálico, com o celular na orelha grampeada de brincos de caveiras e demônios Astecas, Kiki Biquíni diz que "a nossa maior alegria é o aplauso do público" e cai na gargalhada. O cara sentado no banco da frente é o Solimões. Ele tem esse nome de rio porque quando ele bebe fica serpenteando. Ele passa a garrafa de Popokelvis e tomo um longo gole. Depois ele atravessa todos os sinais vermelhos, fecha dois coletivos, um babaca num conversível vermelho, passa em cima das omoplatas de um cachorro e estaciona na calçada do Ca’d’oro. O lugar é um dos restaurantes de mais classe da Cidade e Kiki Biquíni sempre diz que é para delirar.

    O cara com os cabelos pintados de cenoura e com o coqueiro tatuado no braço, vai abrindo caminho. Entradas e Bandeiras. Ele é o nosso Anhanguera. Estamos em expedição de reconhecimento e exploração do território e não temos a preocupação de respeitar os limites territoriais estabelecidos pelo Tratado de Tordesilhas. Kiki Biquíni vai desfilando por entre as mesas mastigando um ramo de agrião que ela tirou do prato de saladas do coroa barrigudo sentado na terceira mesa da esquerda. O cara com os cabelos pintados de cenoura e com a tatuagem do coqueiro no braço escolhe a mesa do centro. Kiki Biquíni toma posse e o Ca’d’oro é nosso.

    Os garçons olham para o Índio com ar esnobe e vejo o infeliz ir se encolhendo na cadeira até se transformar numa pasta de mandioca cozida. O Solimões diz que as luzes estão irritando a sensibilidade dele e Kiki Biquíni coloca o seio direito para fora da blusa de crochê de couro com trama bem apertada. O bico do seio é marrom com vários pontinhos roxos arrepiados. Certa vez ela me contou que sempre imagina que os bicos dos seios vão se abrir como uma flor de carne, num tumor maligno e repugnante, com a gordura das glândulas mamarias escorrendo num líquido pastoso e de odor nauseante. E é esse medo que a faz colocar os seios para fora da blusa.

    O Solimões faz um pedido épico e os garçons ficam ouriçados. Digo que estou sem apetite e dou o fora. Kiki Biquíni quer vir comigo e aviso que para onde estou indo ninguém ainda saiu vivo. Ela dá uma gargalhada e nós dois desaparecemos numa espiral de fumaça dentro da noite lua cheia.

 

Jorge Mendes


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