NÉVOA PRATEADA,
a continuação de Aprendiz de Feiticeiro

 Abriu os olhos.
 Ao seu redor, tudo era prata. Nuvens, névoa, fumaça prateada infiltrando-se em suas narinas, ou pelo menos onde lembrava serem elas. Parou um pouco e notou que na verdade não sentia cheiro nenhum. Pensou em afastar a fumaça e viu ela abrir caminho à sua frente.
 - O reino do espírito... - Lucas repetiu as palavras do mestre metapsíquico - As coisas aqui são apenas... o que você faz delas...
 A partir de então, a névoa começou a dar-lhe náuseas. Tossiu.
 - O que eu penso, não é? - murmurou para si próprio - Pois eu queria mais que essa fumaceira toda sumisse da minha frente!
 Não sumiu.
 - Filosofia de merda. Nunca mais confio no... - tossiu mais - Ivan de novo...
 Começou a engasgar desesperadamente. Andou sem rumo um pouco até ouvir, de longe, um grito:
 - Saúde!
 Levantou os olhos e pôde ver, à distância, um brilho vermelho claro.
 - Quem... está aí?
 - Eu faço as perguntas. Quem é você?
 - Não interessa... - ódio repentino surtiu em Lucas. - Por que essa porcaria de névoa não sai da frente...
 - Por que eu não quero, insolente.
 E daí? Então que viesse disputar. A maior força de vontade ganhava. E Lucas tinha...
 - Mais vontade... que um espírito babaca... - murmurou num esforço muito maior que suas próprias expectativas. Estava sufocando.
 - Certo...
 A luz abriu um pequeno filete, em forma de sorriso.
 Lucas caiu. Tudo escuro. Na quase inconsciência, ouviu uma voz familiar falar:
 - Idiota...

* * *
- Idiota...
 Lucas voltou à consciência, devagar. Sentiu-se deitado em algo sólido e frio. Ouviu duas vozes discutindo e ecoando alto, dizendo palavras que não conseguia compreender. Uma voz feminina se sobrepôs a primeira, falou uma longa frase, e foi novamente interrompida pela outra. Mas desta vez a ouviu mais clara, discernida. Perdeu o início das primeiras palavras, mas logo conseguiu entender por inteiro o que dizia:
 - ... mas só um idiota mesmo faria isso! Ele estava sufocando, não viu? É tão burro que deixou a própria névoa acabar com ele! Eu disse que não ia dar certo!
 Lucas parou um pouco, lembrou-se daquele tom esquisito, o jeito nervoso de falar. Raphael. Tinha que ser.
 Abriu os olhos, finalmente. Virou a cabeça pros lados, viu tudo em volta.
 O Saguão do Conselho. Então, ainda estava aqui. Apreciou por um instante novamente a beleza do lugar: as paredes do mármore reluzente, os tapetes vermelhos-sangue descendo enormes escadarias de granito, e os túneis sem-fim para onde elas levavam. E a mesa! Olhou para a própria mesa onde deitava. Era metal frio, fios de eletricidade descendo por debaixo de alguns pedaços de vidro. Tinha um formato triangular e os símbolos das escolas nas três pontas.
 À sua frente, como esperava, Raphael, no seu traje cerimonial. O manto negro e pesado cobria seu corpo, adornado pelos símbolos quadrângulares em branco fraco. Na face agora nervosa, sempre o óculos de aro vermelho.
 Cláudia estava do seu lado. Era com ela que discutia, claro. Se odiavam. Contraste puro, seu traje marrom claro, leve, mal descendo dos joelhos, contra o manto de Raphael. Sua pele escura contra a “brancura” do Metafísico. Seu rosto ativo contra a máscara de responsabilidade que ele usava.
 Marcos estava atrás dos dois. Sua roupa descia em traços semelhantes aos de Cláudia, mais um kimono que uma robe, porém branco. Era de pele escura num tom bronze, e seu cabelo louro descia num rabo-de-cavalo até bem abaixo dos ombros. A face era de uma calma tranquilizante, e os olhos de um azul celeste tão claro que quase irritava a vista.
 Mais ao fundo, Ivan. O mestre espiritualista encolhia-se dentro do enorme, porém assustadoramente leve, manto azul claro. De seu rosto ao longe mal podia-se distinguir o cabelo liso escuro, os olhos negros de vácuo, e um leve sorriso maroto.
 Foi ele quem primeiro notou Lucas acordar, e interrompeu a discussão no seu usual sarcasmo:
 - Parece que nosso “idiota” não está tão mal assim, caro metafísico.
 Todos viraram para Lucas, ainda levantando.
 - Hnnnn... bom dia...? - foi tudo que conseguiu falar.
 Suspiraram aliviados, todos ao mesmo tempo. Soltaram alguns “ufas”, e Raphael dirigiu-se a ele:
 - Cara, você quase me mata de susto! O que houve lá “fora”?
 - O que houve é que ele deu uma deslizada, só isso. Comum para quem vai a primeira vez no Astral. - Cláudia interrompeu, irritada.
 - Escuta aqui, eu já dis -
 - Parem com isso, os dois! - Marcos meteu-se no meio. - Deixa ele falar, por favor!
 Eles pararam, olharam-se desconfiados, e voltaram à Lucas. Ivan já estava próximo e atento. Passaram-se alguns momentos de silêncio até que Lucas, um tanto desorientado, falasse alguma coisa:
 - Deslizes... Astral... eu não me lembro...
 Marcos suspirou. Aproximou-se dele, olhou fundo, e recomeçou numa voz mansa e pausada:
 - Lembra-se do Conselho? Você estava aqui conosco, teve uma reunião. A gente decidiu que já estava na hora de você viajar no plano Astral... aprender a se virar lá... pra poder achar Julia, afinal só você...
 A simples menção do nome trouxe um turbilhão de memórias à sua mente. Levantou-se da mesa de supetão, e já ia correndo para a porta quando Marcos o parou.
 - Eu lembro, claro! O portão de ferro! Ivan rindo alto! Ela está no Astral! Está viva! Viva! Tenho que -
 - Tem que adiantar seu calendário um ano. - Ivan interrompeu.
 Lucas pôs a mão na testa, olhou pra baixo, respirou fundo. Marcos sentou-lhe na mesa, novamente.
 - Um ano...? - ainda confuso.
 Os quatro fizeram que sim com a cabeça, ao mesmo tempo.
 - E eu vim... de lá, agora?
 - Precisamente. - Raphael confirmou.
 Lucas chacoalhou a cabeça e abriu os olhos com força:
 - Que viagem.
 Parou um pouco e começou a relembrar: o ano inteiro de aprendizado, o Conselho o convocando, as lições teóricas sobre o Astral...
 Levantou mais calmamente e olhou em volta, mais uma vez. Mediu, todos um por um, novamente.
 - Cadê a Angela? - perguntou, após algum tempo.
 - Aqui. - pôde ouvir uma voz suave responder, vinda de um dos corredores.
 Lucas teve um arrepio, como toda vez que sentia a presença da Mestra do Conselho. Viu sua silhueta vermelha aproximando-se, e todos abriram caminho.
 Então, alguma coisa pareceu errada. Ao invés de sentir a energia fogosa de vida que ela transmitia, sentiu cinzas queimadas. Seu sorriso, oposto ao sincero usual, era cínico. Seus olhos ainda tinham o negro-breu, mas não mais vívidos, e sim pálidos e cor-de-morte. E, quando os longos cabelos ruivos lhe desciam pela cintura, pareciam não apenas aquecer, mas sim queimar em fúria. Seu manto unia-se ao fogo, e as chamas ilusórias surtiam algo perto do terror em Lucas. Alguma coisa estava definitivamente errada.
 Ele apenas encolhia-se em um canto, enquanto à figura à sua frente, que deveria ser, mas não era, de forma alguma, Angela; ordenou, não suave, mas masculinamente forte:
 - Chega dessa estupidez.
 Imediatamente, tudo sumiu, e Lucas sentiu uma brisa fria substituir o odor sintético do saguão. Não tardou para a brisa tornar-se névoa, e a névoa ser, novamente, prata.
 - Foi instrutivo. - a voz falou novamente.
 As palavras trouxeram, por incrível que parecesse, uma clareza enorme. Súbito, Lucas pôde compreender que aquilo não fôra real, apenas uma ilusão, misto de uma lembrança com o que poderia ter sido. Apenas um recurso usado pela entidade astral que tinha encontrado, com o objetivo de reviver suas memórias e obter suas respostas.
 O vulto vermelho mudava para uma forma maior e menos definida, mesmo que ainda humanóide; enquanto a voz continuava:
 - Bem, pelo menos, você é só um Iniciado. Não tenho nada a temer de você, e, para ser sincero, nem você de mim. Pode seguir seu curso.
 Lucas já virava as costas, parte admirado, parte sem rumo, quando lhe ocorreu que a tal entidade, não precisava ser um inimigo. Sim, muitos podiam ser amistosos; ou, no mínimo, neutros. Só estavam aqui, presos, certo? E ele precisava de ajuda, estava totalmente sem rumo.
 - Pensando bem, senhor vermelho, eu... - dizia enquanto se virava, e constatava que não havia ninguém ali - hããn... esquece.
 Virou-se e voltava a andar, quando o vulto apareceu sua frente, de cabeça pra baixo:
 - Sim?
 Lucas pulou pra trás, assustado. O ser descia lentamente até sua altura, re-invertendo sua posição enquanto falava.
 - Se tinha alguma coisa para dizer, fale-a logo. - completou.
 Lucas tomou seu fôlego, e, finalmente, conseguiu falar:
 - Bem, é que eu estou meio perdido... Não sei direito como funcionam as coisas aqui, não sei como acho o que vim procurar...
 - E o que eu tenho com isso? - o vulto interrompeu.
 - Hãã... eu estava pensando se você podia me ajudar.
 A voz gargalhou. Ficou assim durante alguns momentos, e, depois de se recuperar, como se tivesse ouvido uma ótima piada; continuou, com algum esforço:
 - E por que eu faria isso, garoto? Me dê um único bom motivo!
 - Sei lá... por bondade?
 A voz repetiu a palavra “bondade” alto e explodiu risos. O vulto dava voltas no ar.
 Sem saber direito o porquê, Lucas encheu-se de fúria daquela forma indefinida, rindo da sua cara. Em um impulso súbito, conjurou energias ao seu redor, e envolveu o que seria a garganta da criatura com uma mão de energia. Ela parou de rir, surpresa.
 - Ou talvez pra eu não transformar seu pescoço em pudim. - Lucas soou ameaçador.
 - Ei, calma aí - o vulto respondeu, meio engasgado - Eu só estava brincando.
 Ele levou as mãos ao pescoço, e dissolveu as energias que o enforcavam.
 - Pois bem. Você pode ser burro, mas pelo menos tem coragem. - continuou. Lucas fez cara de bravo, de novo, mas a criatura pareceu não se importar. Voltou a falar com relativa indiferença na voz. - Você queria salvar uma garota, certo? Qual era mesmo o nome?
 - Julia. - Lucas rebateu de imediato.
 O vulto pareceu assombrado. Talvez não fosse certo, mas Lucas jurava que aquilo que o bicho sentiu foi um calafrio.
 - O que houve? Você conheceu ela? - Lucas perguntou, sorrindo.
 - Essa garota me custou muito caro, moleque. Não ache que vou ajudar você com qualquer coisa relacionada a ela.
 - Pois eu acho que você sabe onde está o corpo dela, o espírito dela, e vai me levar até os dois, AGORA!
 Olhos cresceram e se aprofundaram na silhueta escarlate da entidade. Ele olhou fundo em Lucas, e então este pôde sentir novamente névoa envolvê-lo, sufocá-lo. Tentou invocar de novo algum feitiço ofensivo, mas acabou caindo enquanto tossia muito.
 - Está ficando muito metido, garoto. - deu duas voltas meio que flutuando ao redor de Lucas, para depois continuar. - E sem motivo. Você não sabe nada. Não pegou ainda como as coisas funcionam aqui no Astral. Deixe-me ajudá-lo.
 Gesticulou com as mãos, e ele e Lucas começaram a descer pelas névoa onde deveria estar o chão. Mais rápido, cada vez mais rápido.
 - Primeiro - a entidade continuou - esqueça leis da física. A começar pela gravidade. E esqueça o chão também. Aqui também não temos nada como “cima”, “baixo”, “frente”, “trás”. Tudo isso só existe se você quiser.
 Pararam. O corpo do ser começou a mudar de forma, passando por Raphael, Cláudia, e até mesmo o próprio Lucas, enquanto ele falava:
 - Segundo; as formas que você toma são escolha sua. Você poderia ser tanto outra pessoa quanto um mosquito... é apenas uma projeção.
 Ele apontou ao fundo e, entre a névoa, pôde-se distinguir uma espécie de portão.
 - Vê aquilo? Preste atenção agora - Lucas piscou o olho e, quando viu, o portão estava já à sua frente - Essa é a Terceira lição: aqui não existe distância entre as coisas. O tempo que demora para chegar a algum lugar, é o tempo que você escolher. Também não há lugares propriamente ditos, e a espíritos não se acha aí por um acaso. Entidades só são encontradas quando querem; e por isso não posso “levar” você até o espírito da garota.
 Lucas mostrou-se animado pela possibilidade de que o estranho ser fosse, de algum modo, lhe dar ajuda. Claro que ele já tinha noção da maioria das coisas que lhe eram explicadas; mas a teoria é uma coisa, a prática é outra. Saber que sua vontade molda as leis da física no Astral é fácil; de fato moldá-las, por outro lado...
 Novidade tinha sido apenas esta última “lição”, que enchia Lucas de esperança, por aprender novidades sobre este plano; e muito mais de desespero, sabendo que resgatar Julia seria mais difícil do que previra. Como se atrai um espírito?
 - A essa altura já deve estar se perguntando sobre o corpo da menina. - o ser interrompeu os pensamentos de Lucas - Pois aí vem nossa quarta lição: Corpos só existem fisicamente. Porém, o Astral e o Físico se interligam, e pelo plano do espírito é fácil atingir qualquer ponto físico existente. É claro, que aí temos um problema: eu sou um ser Astral, e não físico. Não posso guiá-lo a lugar nenhum assim.
 Uma expressão confusa surgiu no rosto de Lucas, uma mistura de incompreensão com desapontamento.
 - Então como eu... - começou a questionar, mas foi rapidamente interrompido.
 - Ah, calma, eu já pensei em tudo! - um filete de sorriso surgiu novamente no vulto. Súbito, ele transformou-se em fumaça escarlate, e como numa lufada de vento entrou pelas narinas, pelos ouvidos e pela boca de Lucas.
 Uma sensação estranha tomou conta dele, algo perto do indescritível. Um sentimento de perda, de dualidade; então seguida por uma agonia. Sentiu alguns espasmos e movimentos contra sua vontade, então tomou controle de novo. Já olhava ao redor perguntando-se o que teria sido aquilo, quando uma voz macabra ressoou na sua cabeça. Não exatamente uma voz, algo mais como um pensamento audível.
 Ah, que sensação excelente.
 E Lucas compreendeu tudo.
 De alguma forma, aquele espírito, aquele ser, estava dentro dele. Não tinha tomado por inteiro o controle do seu corpo, até porque não havia corpo de verdade para ser tomado. Mas mesmo assim podia dizer com certeza, e com horror, que Lucas agora não era só Lucas, era Lucas e mais alguma outra coisa.
 Começou a gritar e a se bater desesperadamente, num ato quase que inconsciente de defesa. Mesmo que fosse uma defesa inútil:
 - SAI DE MIM, SAI DE MIM, SAI, SAI, SAI!!!!
 Pare de agir irracionalmente. Eu já lhe disse...
 - NÃO QUERO SABER!... NÃO QUERO OUVIR! LÁLÁLÁLÁLÁLÁLÁLÁ...
 ...que esse é o único modo de guiá-lo até ela.
 - LÁLÁLÁÁÁÁÁÁÁÁÁ!!!!!!
 Deixe de ser estúpido. Gritar não adianta.
 Silêncio.
 Bom que tenha dado ouvidos a razão. Agora escute: me dê o controle um instante, e eu o levarei lá.
 Dar o controle? Ele devia estar brincando.
 Nem um pouco.
 Lucas parou um pouco, primeiro atônito ao constatar o óbvio, e depois muito, muito irritado:
 - Ah, peraí, você me possui, lê meus pensamentos, e ainda quer que te dê o controle?
 Eu não preciso “ler” seus pensamentos. Nós simplesmente nos ouvimos. E, sim, eu quero, ou você sabe de um jeito melhor de guiá-lo até lá?
 - Me dizendo o caminho, talvez?
 Não é tão simples. Sua queridinha está afundada no meio do Atlântico, num lugar onde só eu sei chegar. E não precisa resmungar em voz alta comigo, basta pensar.
 - Eu gosto de falar.
 Como quiser.
 - E quem diabos é você pra saber isso, hein, seu espírito?
 Um amigo.
 - Ô. Mui amigo... Seguinte, vermelhão, não vai dar, você não é de confiança, titio Ivan mandou não falar com estranhos, e...
 CRIANÇA FÚTIL, ESCUTE-ME! EU SOU O SEU ÚNICO MEIO DE ENCONTRAR ESSA MENINA! SE VOCÊ NÃO QUER NEM TENTAR, O PROBLEMA É SEU! - a voz trovejou mais alto do que qualquer coisa que Lucas lembrasse ter escutado. Ele instintivamente levou as mãos ao ouvido, mesmo sabendo que nada adiantava. Ao fim dos gritos, calmamente cruzou as pernas, “sentou-se” na névoa, e pôs-se a pensar.
 O tempo passou tanto, que perdeu-se completamente a noção do tempo, mesmo que ela tivesse pouca importância. Lucas permaneceu como estava, estável e em dúvida. Dúvida entre a prudência; e a esperança.
 Mas a prudência entra forçada na mente das pessoas, enquanto que a esperança é imediata, espontânea, e natural. Talvez tenha demorado para que uma simples cautela desse lugar à chance de felicidade, mas afinal aconteceu.
 Lucas descruzou as pernas, já levitando; procurou sentir-se determinado. Mas não conseguiu. Buscava a pequena cruz que sempre teve ao pescoço, para encontrar nada, e descobrir novamente que já não tinha à quem rezar. Estranho como isso pareceu deixá-lo mais vazio. Quando abriu os lábios para dizer alguma coisa para o nada, o dom do som lhe falhou. Não sabia se declarava amor, se pedia desculpas.
 Irritado consigo mesmo, e num ímpeto, Lucas simplesmente entregou o controle de seu ser à um estranho. Não podia mais sentir, não podia mais se mexer, nem molhar os lábios com a língua.
 Talvez por isso não tenha notado um sorriso se abrir em seu próprio rosto. Algo como um filete, uma leve abertura. E em seus olhos, brilhava uma luz fria, cor-de-morte.

* * *
Em algum lugar pouco acima do Atlântico, brilhou uma luz prateada. Estendeu-se como um portal, e após a prenúncia em forma de névoa, dela saiu uma figura em robes marrons.
 Minto. Saiu é uma palavra pouco apropriada. Despencou descreve melhor.
 Assim, despencou do portal, e caiu no oceano à plena velocidade. Mergulhou nele de cabeça como um bólido, mais rápido que a própria gravidade. E de cabeça continuou afundando.
 Não preciso lhes dar uma idéia de como o Oceano é grande... e fundo. Mesmo à toda velocidade, demorou quase um minuto para que atingisse o chão de areia e coral.
 Enquanto isso, Lucas, ou o pedaço de consciência que ainda restava dele, lamentava-se em seu novo estado de mero espectador da própria vontade. Como era estranho e... incômodo. Era como estar do lado de alguém que não sabe dirigir, pegou seu carro emprestado, e não vai te devolver o volante tão cedo.
 Ainda divagava sobre a sensação quando notou que já tinha os pés no fundo do Oceano. E nem sinal de Julia. Sentiu-se aflito: e se fosse um truque? E se sua escolha tivesse realmente sido errada?
 Não tenha medo de escolhas, meu caro hospedeiro - “ouviu” novamente os pensamentos do ser desconhecido que agora habitava seu corpo - Garanto que foram as mais acertadas.
 Não tinha se acostumado com isso também; afinal, um sujeito que sabe todos seus pensamentos é um saco. O cúmulo da falta de privacidade. Mas ia acabar logo, tinha que acabar.
 Aliás, estranho, só agora notava isso, mas não tinha “ouvido” quase nenhum pensamento de seu companheiro de viagem desde que saíram do Astral. Ora, se continuava raciocinando, e o ser sabia cada pensamento seu, porque Lucas não saberia os dele também?
 Seres astrais desenvolvidos podem abdicar do dom do pensamento se assim desejarem.
 Essa era nova. Como é que ninguém nunca falou disso?
 Nós guardamos mais segredos do que imaginam.
 Sei. Queria ver quem engolia essa.
 Engula o que quiser. Seria apenas outra verdade a qual você vira as costas.
 Demais. Agora ainda tinha essa de “verdades as quais ele virava as costas”. Esse sujeito era realmente um chato, na verdade Lucas sentia que já devia tê-lo chutado de seu corpo quando teve chance. Bem, agora era tarde.
 Após muito olhar, e sem nada declarar, o ser estendeu as mãos que Lucas outrora controlou. Um feitiço. Algumas poucas palavras, conjuração, energia mística... Era outra coisa estranha de se sentir do lado de “fora”, como Lucas sentia agora. A energia passava perto dele, mas não por ele; não o tocava.
 O chão tremeu um pouco, e então abriu-se um buraco não muito grande na areia. A entidade parou, e então conjurou outro feitiço, desta vez de menor porte. Viu-se um brilho esverdeado de dentro do buraco, e algo começou a surgir. Uma pessoa... uma mulher.
 Era Julia. Exatamente como lembrava-se dela, cada detalhe. As dobras na sua face, na sua mão; a boca aberta enquanto dormia; o jeito como o longo cabelo castanho balançava na água exatamente como ao vento, tão bonito... Seus olho fechavam-se suaves, quase podia vê-los já abertos em sua direção, naquela cor escura meio brilhante; já podia até delinear a forma que seu sorriso tomaria, quando ela acordasse.
 Lucas não tinha notado que já sentia seu próprio coração bater, e seu braço apertá-la contra o peito. Não notou que tinha andado até lá, nem muito menos que já tinha de volta o controle do seu corpo. Só notou alguma coisa, só voltou a notar qualquer coisa neste mundo além dela, quando o pensar da entidade “falou-lhe” de novo:
 Fiz o que lhe disse, afinal. Nenhum motivo para duvidar de mim.
 Sim, era verdade. Não tinha mais porque desconfiar do sujeito. Ele acabara por se mostrar boa pessoa. Se é que ele era uma.
 Muito bem. Você deveria voltar pelo menos para perto do portal astral. Eu tenho de ir, e de lá será mais fácil atrair o espírito dela.
 Lucas levantou-se, e à Julia junto consigo; lentamente. Espírito. Claro, tinha quase esquecido que só estava na metade do caminho.
 Na verdade, não exatamente a metade do caminho. Alguma coisa um pouco antes disso, eu diria.
 Antes?
 Ora, o que você acha que seria mais fácil, achar o corpo, ou o espírito preso no Astral?
 Não soube o que responder. Na verdade, sentiu-se meio idiota. Sem saber o que fazer, começou a subir em direção ao portal, com Julia em suas mãos.
 Então, a maldita voz voltou a incomodar-lhe, gostaria muito de saber o estratagema que usará para atraí-la. Ainda não pensou nele. Aposto que Ivan já deve ter lhe explicado o que fazer passo-a-passo.
 Estratagema? De Ivan? Aquele cara falava por enigmas! Não, não tinha plano nenhum, claro que não. Nem mesmo sabia que iria precisar de plano... E como diabos esse cara sabia do Ivan?
 Eu o conheci, também. Sem plano? Isso é estranho. Que irresponsabilidade da parte dele, mandar você aqui tão mal instruído.
 Irresponsabilidade?... Uma baita sacanagem, isso sim! Raphael sempre reclamou das vagabundagens dele, desde antes do Despertar, quando eles rachavam um apartamento. Nem ligava pra Lucas, todo o esforço que ele fez...
 Sem dúvida, um esforço soberbo! Eu lhe entendo; afinal em um único ano você passou de Aprendiz a Iniciado do quinto círculo, até mesmo convidado honorário do Conselho!
 É! Sabia quantas pessoas chegaram ao quinto círculo em um ano? Quantas?
 Não chegam à casa dos setenta em todo mundo, eu sei muito bem! E sua amada foi uma dessas poucas! Você não é merecedor desse desrespeito!
 Não era mesmo. O cara tinha razão.
 O preço do seu poder foi alto! Você viveu por isso! Viveu pela magia por um ano inteiro! Sem conhecer ninguém, sem ligar pra ninguém, só pra ela...
 Lucas olhou para Julia, deitada em seus braços.
 Agora os desgraçados te deixam na mão.
 Aproximou-se do portal, de cabeça baixa, pensativo. Sem um plano... o que ele deveria fazer?
 Ora, chame por ela. Se ela realmente o ama, deve vir. A não ser que...
 Que o quê?
 Ora, você entende. Poderia ser um truque.
 Truque? Não, não podia ser. Ele tinha feito tudo esperando esse momento. Sua vida, viveu com o único propósito de achá-la. Amigos, tinha poucos. Sua família, estava morta. Não tinha casa, não tinha ninguém; tudo que tinha era ela, se fosse mentira... é porque tinha vivido... em vão...
 Não! Não podia ser! Recusava-se aceitar isso!
 Então chame-a. É como eu disse, se estiver lá, ela responderá.
 Lucas parou. Olhou para o portal. Respirou fundo, enquanto seu coração batia cada vez mais rápido. De dentro, no Astral, já podia sentir o vento frio e cortante. Já quase sufocava-se em prata. Fazia sentido. Ela estava viva esperando por ele, ou pelo menos era o que dizia Ivan. Se fosse assim, então ela ia responder. É claro.
 Abriu sua boca e inspirou forte. Engoliu ar como nunca o fizera em toda sua vida; e então soltou um longo e forte grito:
 - Juuuuulllliiiiiiaaaaaaaa!!!!!!!!!
 Silêncio. Em pouco tempo, Lucas teria sua felicidade... ou sua miséria final. Seu peito parecia que ia explodir.
 O tempo passou. E novamente passou tanto tempo, que perdeu-se totalmente a noção do mesmo. Não que ela importasse, é claro. E não que Lucas prestasse atenção; na verdade, não notava nada. Nada além do vazio do portal, da névoa prateada que escorria ao vento por todos os lados.
 Só foi notar algo, só voltou a ver alguma coisa no mundo além disso, quando a voz do ser, novamente, acordou-o do transe:
 Olhe, reconsidere o que eu disse. Talvez eu esteja enganado, quer dizer, talvez exista algum tipo de entrave desconhecido que -
 - Não há... entrave... nenhum... -  Lucas murmurou, falando pela primeira vez desde que retomara seu corpo.
 Silêncio.
 - Tudo que eu tinha... tudo que eu amava... não existe mais. Minha vida tornou-se um esforço sem significado.
 Não se desespere! Você ainda tem muito... tem sua magia...
 - Minha magia era apenas por ela... - ainda murmurava.
 ...seus amigos...
 - Amigos?! Que amigos?! - mais alto.
 ... sua fé...
 - Fé em quê? - mais alto.
 Em... Deus, ora. - a voz parecia arrependida.
 - Deus está morto!!! - gritou, e o grito parecia esvaziar mais ainda sua própria alma - Morto por si mesmo e por uma vida eterna e sem sentido! - baixou sua voz, e continuou - É uma verdade tão cruel que os magos sempre esconderam...
 Talvez isso seja um sentido. Você tem sua verdade...
 - De quê me adianta isso? Eu já devia estar morto... junto com ela.
 Silêncio. Silêncio por um longo tempo.
 - Na verdade, não sei porquê tanto esforço. Não sei porquê todos tentam viver nesse mundo, quando até seus criadores já desistiram.
 No céu já era noite, uma noite sem estrelas. Apenas a lua brilhava, mais intensa do que nunca. Pois assim tinha sido todas as noites desde o Despertar, e assim seria até o fim dos dias...
 As estrelas sempre soaram-lhe como esperança. A falta delas afetou, e ainda afetava Lucas, mas do que a de qualquer cruz. Quase sem perceber, entrou pelo portal, mais para livrar-se do céu do que por qualquer outra coisa.
 Está tentando me dizer que vai desistir desse mundo!?
 A pergunta afetou mais a Lucas do que poderia se imaginar. Desistir? Porquê não? Já tantos diziam que não havia vida após a morte, e ele nunca deixou de acreditar nela. Bastava querer sair... e aqui no astral ele sairia. Encontraria Julia, sua família, seus amigos, todos... Dizer que não existe outra vida era apenas outra mentira dos Arcanos. Sim justificavam seu nome: aqueles que sempre souberam a verdade, e sempre a manipularam.
 Ele não seria mais enganado. Ele se libertaria das amarras. Seria feliz de novo.
 “Eu só queria que a felicidade fosse tão fácil de se atingir quanto parece.” Era Raphael. Lucas não sabia porquê, mas suas palavras vinham-lhe agora, como se as ouvisse pela primeira vez. “Nunca é. Nunca. Eu aprendi isso rápido... e da pior forma. Não queria que você passasse pelo mesmo, mas de alguma forma, sei que vai.”
 Raphael estava mudado... mais sábio, mais responsável, mais... chato. Mesmo assim, nunca tinha tentado enganar ninguém. Nunca tinha mentido pra ninguém. Era seu amigo -
 Não! Estava com eles, então mentia como eles! Sem meios-termos! Era provavelmente tão cafajeste quanto qualquer espiritualista!
 Lucas deixou-se cair de joelhos, mesmo que não houvesse chão. Tinha tomado sua decisão, nada o impediria. Nada.
 Olhou para baixo, largou o corpo inerte de Julia. Não entendeu porque, mas de repente a névoa ficou cristalina, lisa... como um espelho. Sorriu. Gostaria de dizer adeus a si mesmo antes de sair deste invólucro mortal.
 Olhou atentamente para seu próprio rosto. Cada curva, cada fio de barba mal feita, cada dente da sua boca. Prestou atenção em si mesmo como não se lembrava de ter feito.
 Então, alguma coisa pareceu errada. Seu sorriso deixou de ser de felicidade espontânea; era malícia encarnada. Seu cabelo sempre liso e reto; estava desgrenhado e em pé. E seus olhos, antes castanhos-claro; tinham o brilho vermelho e sombrio da morte.
 Morte! Sua morte!
 Levantou-se rápido, nervoso. Em sua mente tudo que se ouvia era o eco de uma gargalhada sinistra; e uma voz maquiavélica repetindo:
 “Ah, que sensação excelente!”
 Essa voz! A entidade! Tinha-se esquecido dela!
 Já tomou sua decisão? a voz falou novamente, dessa vez no presente. Com uma conotação muito mais cínica, muito mais transparente.
 - Seu desgraçado, era você o tempo todo!!! - Lucas gritou, furioso e surpreso ao mesmo tempo. Era claro agora. Já entendia tudo.
 Hã... Hein?!
 - “Não vale a pena, desista”! Se minha vida não vale a pena, por que você queria, hein, por quê? Meu corpo era sua saída desse inferno, sua liberdade. Assim que eu saísse, você entrava! Muito fácil!
 Silêncio.
 - Não vai conseguir! Não vai conseguir nada! - berrou, com o corpo cheio de energia mística e de vontade.
 Acha que pode comigo, moleque? Já disse que não. Você não sabe de nada!
 Lucas abaixou-se, e segurou o corpo de Julia em seus braços, enquanto preparava sua investida. Já sabia o que fazer. Não podia ficar no Astral, aqui perderia sem dúvida.
 - Acho. - respondeu, e atacou. Não cabe a mim descrever aqui peripécias do combate psíquico. Posso, talvez, usar da analogia de que, ao invés de socar, chutar, agarrar, em vez de usar qualquer outra manobra física complicada que se possa imaginar, Lucas deu um empurrão. Com toda força de vontade que tinha, conseguiu expulsar, mesmo que temporariamente, a entidade de seu corpo.
 Expulso, o ser tomou novamente sua forma humanóide, em fumaça avermelhada. Furioso. Preparou-se para descarregar sua fúria em Lucas... mas ele já não estava mais lá.
 Teleportes estavam entre os feitiços mais exaustivos, mas valiam a pena. Lucas tinha certeza disso agora, enquanto caía para a liberdade azul do oceano... Teleportara-se do Astral para uns 500 metros acima do mar. Essa era a parte difícil. Agora, bastava invocar um feitiço de vôo, e sair por aí. Mas, mesmo assim, estava cansado. Deveria estar voando, mas na verdade não conseguia mexer as mãos, quanto mais invocar tal feitiço.
 Que irônico. Estava longe de qualquer ameaça astral, mas prestes a desmaiar e morrer afogado. E a inconsciência vinha a ele tão... doce. Enquanto sentiu-se bater na água e afundar, fechava os olhos, e parecia ver apenas Julia sorrindo.

* * *
Abriu os olhos.
 Mas nem tudo ao redor era prata. Talvez a lua, que majestosa já punha-se no horizonte; no máximo a luz que ela refletia na água.
 Olhou para as mãos, e pareciam estar todas sujas... de areia! Sim, areia rodeando-o; uma praia! Estava vivo, deitado na areia de uma praia, talvez uma ilha, não importava!
 Fez menção de se levantar, mas mãos suaves puseram-se em seu ombro, impedindo-o. Deitou-se novamente, olhando para cima.
 Julia.
 Viva, ela estava mesmo viva! Sorrindo a sua frente, como... num sonho...
 - Eu... Eu... tenho que avisar a todos, só pode ser um - Lucas quase explodia em alegria, enquanto virava-se de frente para ela.
 - Sshhhh! - ela levou seu dedo à boca, e sorriu. Ele sorriu de volta.
 Beijaram-se.
 E a noite parecia ter apenas começado.