Prefácio Interessantíssimo (continuação)

Ora, si em vez de unicamente usar versos melódicos horizontais: "Mnezarete, a divina, a pálida Finéias comparece ante a austera e rígida assembléia do Areópago supremo...", fizermos que se sigam palavras sem ligação imediata entre  si: estas palavras, pelo fato mesmo de se não seguirem intelectual, gramaticalmente, se sobrepõem umas às outras, para a nossa sensação, formando, não mais melodias, mas harmonias. Explico milhor: Harmonia: combinação dos sons simultâneos. Exemplo: "Arroubos... Lutas... Setas... Cantigas,,, Povoar!..." Estas palavras não se ligam. Não formam enumeração. Cada uma é frase, período elíptico, reduzido ao mínimo telegráfico. Si pronuncio "Arroubos", como não faz parte de frase (melodia), a palavra chama a atenção para seu insulamento e ficava vibrando, à espera duma frase que lhe faça adquirir significado e QUE NÃO VEM. "Lutas" não dá conclusão alguma a "Arroubos"; e , nas mesmas condições, não fazendo esquecer a primeira palavra, fica vibrando com ela. As outras vozes fazem o mesmo. Assim: em vez de melodia (frase gramatical) temos acorde arpejado, harmonia, - o verso harmônico. Mas si em vez de usar só palavras soltas, uso frases soltas: mesma sensação de superposição, não já de palavras (notas) mas de frases (melodias). Portanto : polifonia poética. Assim, em "Paulicéia Desvairada" usam-se o verso melódico: "São Paulo é um palco de bailados russos"; o verso harmônico: "A cainçalha ... A Bolsa... As jogatinas..."; e a polifonia poética (um e à vezes dois e mesmo mais versos consecutivos): "A engrenagem trepida... A bruma neva..." Que tal? Não se esqueça porém que outro virá destruir tudo isto que construí.

Para juntar à teoria:

1.º

Os gênios poéticos do passado conseguiram dar maior interesse ao verso melódico, não só criando-o mais belo, como fazendo-o mais variado, mais comotivo, mais imprevisto. Alguns mesmo conseguiram formar harmonias, por vezes ricas. Harmonias porém inconscientes, esporádicas. Provo inconsciência: Victor Hugo, muita vez harmônico, exclamou depois de ouvir o quarteto do Rigoleto: "Façam que possa combinar simultaneamente vária frases e verão de que sou capaz". Encontro anedota em Galli, Estética Musical. Se non é vero...

2.º

Há certas figuras de retórica em que podemos ver embrião da harmonia oral, como na lição das sinfonias de Pitágoras encontramos germe da harmonia musical. Antítese - genuína dissonância. E si tão apreciada é justo porque poetas como  músicos, sempre sentiram o grande encanto da dissonância, de que fala G. Migot.

3.º

Comentário à frase de Hugo. Harmonia oral não se realiza, como a musical, nos sentidos, porque palavras não se fundem como sons, antes baralham-se, tornam-se incompreensíveis. A realização da harmonia poética efetua-se na inteligência. A compreensão das artes do tempo nunca é imediata, mas mediata. Na arte do tempo coordenamos atos de memória consecutivos, que assimilamos num todo final. Este todo, resultante de estados de consciência sucessivos, dá a compreensão final, completa da música, poesia, dança terminada. Victor Hugo errou querendo realizar objetivamente o que se realiza subjetivamente, dentro de nós.

4.º

Os psicólogos não admitirão a teoria... É responder-lhes com o "Só-que-ama"de Bilac. Ou com os versos de Heine de que Bilac tirou o "Só-quem-ama". Entretanto: si você já teve por acaso na vida um acontecimento forte, imprevisto (já teve, naturalmente), recorde-se do tumulto desordenado das muitas idéias que nesse momento lhe tumultuaram no cérebro. Essas idéias, reduzidas ao mínimo telegráfico da palavras, não se continuavam, porque não faziam parte de frase alguma, não tinham resposta, solução, continuidade. Vibravam, ressoavam, amontoavam-se, sobrepunham-se. Sem ligação, sem concordância aparente - embora nascidas do mesmo acontecimento - formavam, pela sucessão rapidíssima, verdadeira simultaneidade, verdadeiras harmonias acompanhando a melodia energética e larga do acontecimento.


O Prefácio Interessantíssimo da Paulicéia Desvairada de Mário de Andrade continua na próxima semana. Se você quiser conhecer alguns dos poemas deste livro, clique no link a seguir: Paulicéia Desvairada

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