Tarde Demais

        Você treme. Você acha que é o frio. Tudo bem. Seus dentes começam a ficar amarelados. Deve ser o cigarro. Tudo bem. Você está no ônibus e vê pequenos delinqüentes roubarem uma bolsa. Antes a bolsa que a vida. Tudo bem. Os pivetes têm pêlos saindo do nariz. Você acha que é coisa da idade. Tudo bem. Você está na rua e crianças te empurram balas, drops, chicletes. Você fecha o vidro e liga o rádio. Tudo bem. Você vai para casa e ela está fria. Você acha que é agosto e é inverno. Tudo bem. Você liga a TV e vê um mundo perplexo entre anúncios caóticos. Você faz as contas e vê quanto pode gastar logo ali. Você acha que dá. Tudo bem. Você olha para o céu e começa a chover. Você não tem guarda-chuva. Você abre um jornal para dar uma revista. Algumas pessoas usam estrelas nos ombros. Outras comem ratos. Outras acertam na loto. Outras falam de moratória. Você acha tudo muito complexo e esmaga uma espécie de fungo que lhe nasce entre os dedos do pé. Você relaciona isso com a umidade. Tudo bem. Você tenta dormir. O sono não vem. Você acha que porque é difícil dormir com um barulho desses. Tudo bem. Você pensa em ligar para alguém. Seu telefone está desligado. Menos uma conta. Tudo bem. Você toma uma, fuma outro, tosse uns barulhos esquisitos lhe saindo pelos brônquios. Na primavera você se recupera. Tudo bem. Você sai na rua e um fusca da guarda-civil o interpela bruscamente sobre sua procedência. Você esbarra com milhares de pessoas na rua que lhe pedem fogo. Você começa a pedir também. Não vai ser um cigarro que vai tirar seu humor médio. Tudo bem. Suas orelhas parecem que crescem. Você acha que é picada de inseto. Você sabe que mosquitos são mais comuns no verão. Suas orelhas crescem a olhos vistos. Você se acostuma. Tudo bem. Você desliga o rádio e vai ao hipódromo jogar naquela barbada do quinto páreo. Seu cavalo tropeça, quebra a pata e é sacrificado. Você acha que foi melhor pra ele e que o animal lhe fez perder o último barão. Outros virão. Podes crer. Sua barriga começa a inchar. Você não comeu nada hoje. Deve se falta de exercício. Podes crer. Você vai ao cinema e o filme não lhe diz nada. Você acha que é o sono. Podes crer. Você sai na rua e os carros quase lhe abotoam. Você acha que é o trânsito aliado a sua desatenção. Podes crer. Você vai à praia, pega uma onda e quase se afoga. Você acha que seu fôlego já foi melhor. Podes crer. Você pega um livro. Ele é igual àquele outro que é igual àquele outro. Você lê o livro outra vez. Podes Crer. Você vai ao teatro e acha um barato. Pena que não teve peça. Um ator entrou em pane. Podes crer. Você sente uma vontade irresistível de comer queijo. Você sempre gostou de queijo. Podes crer. Você vai a uma festa e não dança com ninguém. Você acha que é agosto. Podes crer. Você pára numa vitrine e uma roupa lhe chama de tesouro. Você acha que é uma alucinação de ótica. É isso aí. Você entra no metrô e não vê luz no olho de ninguém. Você põe uns óculos escuros e abre um gibi vagabundo. Você gosta do Ken Parker. É isso aí. Você repara que suas unhas começam a ficar curvas e afiadas. Você acha que é o excesso de tabaco e as noites viradas. É isso aí. Você lê nas folhas, notícias de secas e enchentes, corrupção e crime. Flagelados comem ratos ao norte da miséria. Você acha que essa terra sempre foi assim. É isso aí.. Você sai na rua, alguém lhe enfia a faca nas costelas e lhe arranca o bobo do braço. Você acha que podia ter morrido. É isso aí. Seu nariz começa a se mexer com freqüência. Você acha que é alguma nova alergia. É isso aí. Você enfia a mão no bolso e só encontra pedras. Você acha que nunca pecou e atira as pedras no chão. É isso aí. Você passa a mão no rosto e só encontra pêlos. Você acha que é falta de saco de fazer a barba. Só. Você ouve um barulho de multidão vindo do norte. Você acha que é sua imaginação. Só. Você começa a grunhir e correr acuado.

Tarde demais.


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