Entrevista com Claudio Daniel
Claudio Daniel nasceu na cidade de São Paulo,
em 1962. Estudou Jornalismo na Faculdade Cásper
Líbero, e trabalhou como repórter e redator
free-lancer na Folha de S. Paulo. Atuou também
na Editora Abril e na Nova Cultural. Em 1989,
criou com um grupo de amigos a revista Gaia,
dedicada a assuntos culturais. Publicou dois
livros de poemas: Sutra (edição do autor, 1992)
e Yumê (Ciência do Acidente, 1999). Traduziu
autores como Rimbaud, Quevedo, Huidobro, entre
outros, e publicou ensaios sobre a poesia
latino-americana do século XX. Colaborou em
diversas revistas e jornais literários: Cavalo
Azul (SP), 34 Letras (RJ), Bric a Brac (DF),
Dimensão (MG), CULT (SP), Medusa (PR) e no
Suplemento Literário de Minas Gerais. Publicou
também em várias revistas estrangeiras, entre
elas Tercer Milenio (EUA), Serta (Espanha), Tsé-
tsé (Argentina) e Doc(k)s a lire (França).
Na Internet, seus poemas podem ser acessados no
site Popbox, http://users.sti.com.br/efres
Atualmente, Claudio está trabalhando em dois
livros: A sombra do leopardo, sua terceira
coletânea poética, e Geometria da água, com
traduções de José Kozer. O autor reside em São
Paulo com sua mulher, Regina, com quem vive há
dez anos.
Quando você começou a se interessar pela
poesia? Quais foram as sensações do primeiros
contato?
— A poesia vem das palavras, mas é alguma coisa
além de sons e conceitos. Talvez venha de uma
zona escura entre a sensação e o pensamento.
Algo que se nutre dos nomes e das formas, dos
ritmos e das cores. Só posso dizer que por trás
de toda definição está um gozo animal, uma
música estranha, um sabor de massala e uma
ascese. Não sei dizer quando começou, com
quantos anos corri atrás do coelho de Alice.
Sei que, quando criança, uma de minhas
aventuras secretas era a de entrar, sozinho, na
biblioteca de meu pai: eu trancava a porta,
acendia o seu cachimbo italiano e folheava os
volumes de capa dura. Foi assim que descobri
esse rosebud que é O corvo, de Edgar Allan Poe.
A leitura desse texto nervoso, metálico, foi um
choque. As palavras tinham música. Elas
cantavam: “... quem te trouxe a meus umbrais, /
A este luto e este degredo, e esta noite e este
segredo / A esta casa de ânsia e medo...”. O
poema provocou reações físicas em mim, algo que
não sei descrever. Depois, li as Flores do mal,
de Baudelaire: “Uma ilha preguiçosa e molenga e
sem dono / Em que há árvores ideais e frutos
saborosos; / Homens de corpos nus, finos e
vigorosos, / Mulheres cujo olhar tem franqueza
e abandono”. Aquilo eram palavras. Mas eu
sentia o sabor, o cheiro, o calor táctil de
cada sílaba, lendo em voz alta, com pausas e
ênfases. Depois, vieram outros demônios
familiares: Rimbaud, Mallarmé, Valéry. Descobri
com fervor William Blake, com suas Canções da
experiência; Trakl, com Sebastião em sonho;
Rilke, com os Novos poemas. Vieram também
Hopkins, Yeats, Celan... a Semana de Arte
Moderna, Murilo e Cabral. Eu já estava tomando
chá com o Chapeleiro Maluco, e em breve jogaria
críquete com a Rainha, em seu jardim. Escrevi
poemas antes dos quinze anos, mas não tenho
registro deles; o senso crítico falou mais alto
que a vaidade. Aos trinta, publiquei o primeiro
livro, Sutra, que já apresentava temas que eu
iria retrabalhar em Yumê: o tempo e a
eternidade, a memória, o silêncio, o sexo, a
aniquilação. Assim, por exemplo, em As
dádivas:
os dons
da água e do vento
silêncio de tigres
— o branco
areais
a areia sem tempo
— o branco
primícias
da sublime
desmemória:
vôo de borboletas
Hoje, trabalho em um novo livro de poemas, A
sombra do leopardo, em que o tecido poético é
costurado como um jorro de breves metáforas.
Gostaria de destacar, dessa coletânea o poema
Tocar os poros do verde:
O
verde,
sua pele
ácida. Tocar
os poros
do verde, florir
metálico. Ouvir
sua voz de asa
e sombra.
Olhos, faisões
de cegueira.
Jóias de irada
divindade.
Abelhas e lagostas
amam-se, odeiam-se,
tulipas caem
na goela
do tempo.
Tuas mãos tateiam
a nervura imprecisa
da cicatriz
e não há mar,
nem pão, nem página.
Alucino-te
ao mirar-me
no silêncio
de uma laranja
quadrada.
Aqui, nada mais viceja.
Lacraias afogam-me
em tua lágrima
e se fecha a porta
esquerda. Toda palavra
me fere com sua cor.
Quando cessa
o canto, calados,
ouvimo-nos
em um corte
azul.
Este é um poema com versos breves. A concisão
permite grande agilidade rítmica. Qual é a
importância do ritmo, para você? A peça inicia
com “O verde” e termina em “azul”, o que não é
coincidência. O que é a cor na sua poesia?
— Tudo é um jogo entre o claro e o escuro, o som e a idéia. A
música dá sentido ao mistério, torna concreto o que é abstrato —
essa é a função do ritmo. Não se trata de ornamento, mas de um
princípio construtivo. A tensão no poema, o choque entre luz e
sombra, alto e baixo, não se resolve na anarquia, no aleatório
que dissolve todo o efeito estético. É preciso haver unidade
dentro da variedade de ritmos, dentro da dissonância. Isso é o
que eu procuro em meus poemas. Tocar os poros do verde é uma peça
construída a partir de relações entre os sons e as cores, que
representam estados psicológicos: “Toda palavra / me fere com sua
cor. / Quando cessa / o canto, calados, / ouvimo-nos / em um
corte / azul”. A concisão dos versos, além de dar movimento e
agilidade ao poema, concentra a expressão das metáforas. A
elipse, por sua vez, cumpre uma função sonora e de sentido:
ocultar o objeto, para revelar a dúvida. Esse vazio desejado por
mim, essa ausência de uma figura de contornos nítidos, não é
apenas um recurso de estilo: forma e fundo são o mesmo, “amam-se,
odeiam-se, tulipas caem / na goela / do tempo”. Outro poema de
meu novo livro que gostaria de citar é O poeta pedólatra:
Até
a última carícia
do prazer atípico, longe
dos seios estéreis —
plumas ou punhais, não
músculos enrijecidos
de basalto, suor de metal
libidinoso — assim os jaguares
mastigam iguanas de poliéster
sob o sol. Porém, a lenta
desaparição do olhar
(estranha metamorfose)
faz o tempo esférico
ser menos do que o espaço
indefinido pelo tato
— diálogo mudo
entre as mãos e o vazio.
(Fica o consolo das narinas
o odor — para ele —
tão sweet love, sweet honey
de pés fortes, grandes e sujos
e a voz das palavras, o mar
interminável das vogais.)
O contraponto entre o jaguar e as iguanas de
poliéster produz uma antítese entre o real e o
falso. Qual o lugar da realidade em seus
poemas? Qual a importância da realidade para o
poeta?
— O tempo é algo abstrato, concebido pela
mente. O espaço é percebido pela visão e, em
menor grau, pela audição e pelo tato. Tempo,
espaço e movimento formam aquilo que imaginamos
ser a realidade. Para quem sofre de cegueira,
no entanto, as percepções são diferentes: o
tempo é quase irreal, e as distâncias só são
compreendidas com o auxílio dos ouvidos e das
mãos. Quando dormimos, esquecemos quem somos, e
o que é o mundo; algo similar ocorre, talvez,
na loucura. No sono profundo, não há percepção
de formas; não há altura, largura, volume ou
profundidade. E é provável que, na morte, tais
noções se desarticulem por completo. A
realidade, assim, é uma construção subjetiva,
pois depende da ação dos sentidos e da mente.
Em nossa própria consciência cotidiana, as
coisas não são o que aparentam: nada é
estático, nada permanece igual a si mesmo, tudo
se altera, se transforma em outro, numa
contínua metamorfose. O que nos faz recordar, é
claro, de Ovídio e dos disfarces de Zeus, que
se fez de cisne para seduzir Leda e de chuva de
ouro para amar Dânae. Também nos relatos
indianos, no Mahabharata, no Ramáyana, temos a
transfiguração dos heróis divinos, como
Krishna, que assume a forma do universo. Tudo
isso parece fantástico, mas acontece conosco
todo o tempo — com o nosso corpo, por exemplo.
As células nascem e morrem, a compleição
muscular se altera ao longo dos anos, e também
a ossatura, a vitalidade dos órgãos e a textura
da pele. Até os nossos pensamentos mudam. Essa
constante mutação, ou vir-a-ser, fogo
heraclítico, é a única coisa que não muda, na
matéria; é o único “real” que podemos
apreender. E os meus poemas, claro, refletem
essa eterna metamorfose, como em Até cinzas:
Talvez
pétala, bailado
mudo, ardência:
aqui
é onde a seda
inflama o azul
em amarelo
(fosse tingida
em volátil púrpura,
cicatriz esculpida
em outra voz).
Algo de felina,
ruidosa volúpia
em seu desejo,
que se consome
até cinzas.
O tempo esférico é o que acaba com a concepção
de progresso?
— Sem dúvida. No Ocidente, desde o cristianismo, firmou-se a
idéia de que a história é uma linha reta, evolutiva, da Gênese
até o Apocalipse. Depois, tal princípio perdeu o sentido bíblico,
de história da salvação, e ganhou outro significado, o de avanço
econômico e tecnológico. Prefiro pensar no tempo como esfera, não
linha reta; como um sonho (yumê) ou jogo cíclico. Nesse sentido,
não acredito em evolução ou progresso, mas em sucessivas
mutações; porém, como as possibilidades combinatórias são quase
infinitas, nesse I Ching ou caleidoscópio ilimitado, temos uma
variedade de resultados que não pode ser calculada. A matemática
não seria possível sem as noções de zero e de infinito; a
filosofia também não, e a poesia dialoga com a idéia e o número.
Em meu poema Nagarjuna, digo:
Olho
peixe flor
tão falange
pelicano
— pedra até
morder
o verde
leopardo:
cego espaço
para um galo
acender o chá
de manteiga
e a sopa
de cevada.
Disse
Nagarjuna:
por trás
das treliças,
o avesso
do sonho
(impalpável),
que não cessa.
O que a poesia tem em comum com a filosofia?
— A poesia é uma forma de pensamento. Quando o
poeta muda a linguagem, ele age sobre a
consciência: mudar as relações entre as
palavras é alterar a nossa atitude junto às
pessoas e ao mundo. Por que é assim? O idioma,
regido pela gramática, tem uma lógica própria,
que define não apenas a nossa forma de ler e
escrever, mas também o nosso modo de sentir,
pensar e agir. Todos nós somos aristotélicos,
pelo uso que fazemos do idioma. Porém, ao criar
outra lógica verbal, outra sintaxe, diluindo e
alterando as funções normais de sujeito, ação
verbal e objeto, o poeta cria uma nova visão de
mundo. Dos pensadores que tenho lido ao longo
dos anos, poucos me impressionaram tanto como
Schopenhauer, autor de obras maravilhosas: O
mundo como vontade e representação, Parerga e
Paralipomena, entre outras. Dediquei a ele um
poema, que leva o seu nome por título:
Breve,
a jornada
— água de nenhuma
fonte, gema
de extinta mina —
não mais que o fulgor
de vidros (cristaleira)
e o viço de madeira nova,
lua líquida. O tempo
lacera o verde
nos olhos do gato,
lepra das flores, ácido
que corrói toda cor ou pele
em escuro miasma,
peixes do nada.
Sim, você sempre soube:
este é um ofício doloroso,
uma ópera ruidosa.
Porém, tu foste o tigre.
A existência da morte, um fato que hoje não
preocupa tanto a filosofia, sempre foi uma
questão central em Platão, Sêneca, Descartes,
Montaigne, Schopenhauer, porque ela põe em
xeque todas as nossas certezas. Em nosso
íntimo, mesmo se formos ateus, existe a
esperança de uma vida infinita, de algo que
sobreviva às mutações. Esse algo pode ou não
ser um Deus interior (Atman); talvez seja uma
Vacuidade, Nirvana budista, ou algo que jamais
saberemos, ou sempre soubemos. De todo modo, se
“la vida es sueño”, tem de haver Aquele que
sonha este sonho.
Você é um poeta dionisíaco? Como lida com as
sensações e as percepções? Como vê o mundo?
Como é o mundo no filtro que é o poema?
— Tudo o que sabemos e sentimos vem de nosso
contato com as palavras e as coisas. Quer
dizer, da experiência sensorial e intelectual.
O poema reflete tudo isso, nama-rupa. Porém, o
texto poético não é um simples reflexo ou eco
do “real”, mas um ente em si, uma coisa, com
sua lógica interna, estrutural. O poema tem sua
própria fauna e flora, como queria Huidobro.
Não acredito na inspiração, nem na “escrita
automática” dos surrealistas, para mim uma
desculpa psicológica para justificar maus
versos. Concordo com Poe, que em seu ensaio O
princípio poético afirma que a imaginação é
combinatória: ela faz permutas e simbioses com
os elementos de nossa memória, que vieram de
leituras e vivências. O trabalho do poeta é
coisificar as impressões que vêm desse vasto
repositário de lembranças e obsessões. Ou, como
diz Poe, nessa memorável sentença: poesia é a
“construção precisa do impreciso”. Com
Mallarmé, aprendi a buscar "o verso que, de
diversos vocábulos, refaz uma palavra total,
nova, estranha à língua e como que
encantatória”. Apolo e Dioniso, diz a Sibila,
são duas máscaras de um deus sem rosto. Onde
começa em mim o exaltado, o delirante, e onde
termina o cerebral, o geômetra? Não sei bem o
que dizer. Sei que a linguagem de meus poemas é
planejada; nenhuma palavra é colocada ao acaso.
O ato de escrever, porém, é compulsivo; sinto
um êxtase de bacante, de sultão com odaliscas,
de santo levitando sobre as ondas.
O camaleão alucinado de nossa época acena
em duas direções: a primeira, alvorada, jardim
de cerejeiras, manga fatiada num prato; a
outra, glacial, cabelos de Medusa, escorpião
mordendo a própria cauda. Dizendo de outro
modo: fico animado com as chances de um novo
humanismo, que vem do encontro entre a ecologia
profunda, o pacifismo, a nova física e o
budismo tibetano. Surge desse caldeirão,
aquecido por uma nova safra de intelectuais, a
hipótese de que a Terra é a nossa única pátria,
sem distinções entre etnias, credos e
fronteiras. Por outro lado, vemos ressurgir a
fênix mórbida do racismo, do fascismo, das
guerras coloniais; e vemos a rapinagem dos
grandes monopólios, que tentam impor um
“monoteísmo de mercado”, na frase feliz de
Roger Garaudy. Os EUA se arrogam em ser a
polícia do mundo, e um resultado dessa
prepotência foram os ataques brutais da OTAN à
Iugoslávia, que motivaram meu poema Olhar atrás
do pêssego:
I
Olhar atrás do pêssego:
pálpebras, mãos
que se tocam
esse canto, algo entre
a garganta
e a coluna cervical.
II
Malva túnica, água verde água
jasmim é nome de flor
a pele (pétala)
brutalizada em grafite.
Áspero é o tecido da voz, modulada
em pontas de agulha.
III
Todo lugar é aqui, o dentro se expande
metal canta metal, florações
de lâminas, e o tempo
se desfaz. (Ela sorri, manqueja
e traz o cego alaúde
decorado.)
IV
Rosbife, queijo de cabra, presunto
vinho serbo, esterco ou nada,
uns tocam violoncelo,
águias bicéfalas, os turcos
/se foram com o crescente
em ondas: celebra-se
o rito bizantino, liturgia em esloveno.
V
Campa, campânula, campanário,
verde-malva em volta, pinheiros
o lago, a moça (trigo, centeio)
ainda sorri: é esmeralda, mas
logo garrafadas, tumulto
de pontes que desabam.
VI
Aqui é a estação do olhar: toda
/história é impureza.
Alvura, escarlate, azul-piscina,
o abismo é sem cor,
íblis que te abisma, espelho
(desluzido) âmbar. O tempo é ruína;
onde cessa, é o canto.
“Navegar é preciso viver não é preciso”?
— Fernando Pessoa desejou escrever os Lusíadas
da Hora Morta, o épico da twilight zone. O
resultado é esse belo e estranho livro,
Mensagem. Aqui, o poeta adotou o lema dos
antigos navegantes portugueses: “Navegar é
preciso, viver não é preciso”. Essa legenda é a
exaltação do herói trágico, que renuncia ao
gozo da vida “fútil, cotidiana, tributável”
para mergulhar na eternidade. O poeta fez a
denúncia do homo faber, do homem oco e
empalhado, manequim ambulante de shopping
centers, ao qual contrapõe a figura de Dom
Sebastião, o arquétipo do santo guerreiro. Esse
poemário alegórico, em sua riqueza de símbolos,
permite muitas e diferentes leituras.
Para mim, é uma metáfora de gritante
atualidade. Nós perdemos a dimensão do sagrado,
as mitologias, e trocamos os valores morais
pela tabela de preços. Nos afastamos do
Mistério, e sem ele não é possível a unidade
com o Todo. Em outras palavras, não existe
ética sem metafísica, e nós ficamos órfãos da
Divindade. Hoje, só se discute economia de
mercado, tecnologia, dicas de saúde e beleza:
como Fausto, seduzido por Mefisto, trocamos
toda a cultura humana por uma pobre visão de
mundo que nos reduz a robôs. Nesse sentido, a
voz de Pessoa é quase profética, oracular:
precisamos repensar nossos valores e modo de
vida. Será que não fizemos o pacto com o Cujo,
o Tinhoso, o Não-sei-que-diga? Sem a busca do
sentido mais profundo, a comunhão com o
sagrado, o homem é apenas “uma besta sadia, /
cadáver adiado que procria”. Fernando Pessoa
foi um poeta-vidente, dos poucos que fazem
sentido hoje, na Era da Banalidade.
Quem existe, como poeta, em seu interior? Que
vozes poéticas escuta?
— A poesia vem da poesia, disse Jorge Luis Borges. Vem dos
livros e autores que lemos. É a leitura e a nossa vivência no
mundo que definem a nossa relação com o idioma e a linguagem.
Hoje, ouço o eco de muitas vozes, um imenso coral; e essa
multidão de timbres, sem dúvida, vem inseminando a minha criação
poética. Ouço em mim um anacoreta japonês, que viajou com Bashô
nas sendas de Oku; um trovador provençal, comparsa de Arnaut,
amante de belas damas, da lírica imprevista e dos duelos; um
poeta barroco, vizinho de Don Luis de Góngora, para quem as boas
metáforas não são menos complexas do que as catedrais; um
romântico, por certo, amigo de Keats, Hoelderlin, Sousândrade; um
simbolista francês, que fumou ópio com Rimbaud num café imundo de
Paris; um modernista avesso ao moderno, como Eliot e Pound, para
quem a invenção verbal é um modo de zombar da idéia de progresso;
e um cultor de enigmas e labirintos, como Borges. Por certo, há
muitas outras vozes — sou uma espécie de médium dos autores que
li. Sei que devo muito a Cruz e Souza, Ernâni Rosas, Augusto dos
Anjos; a Oswald de Andrade, Murilo Mendes e João Cabral; a
Augusto e Haroldo de Campos e Paulo Leminski. Por certo, estou
sendo injusto; mas não seria possível citar todos os poetas a
quem amei aqui. Devo acrescentar, fora das referências
literárias, a música de Richard Wagner, em especial suas últimas
obras, Tristão e Isolda, O Anel dos Niebelungos, Parsifal, que
despertam em mim um júbilo selvagem, quase sexual. É a música do
paraíso, ou pelo menos do “meu” paraíso, nesse inferno de gralhas
desafinadas que nos atormentam, dia e noite, nos meios de
comunicação.
Como está a poesia brasileira? Concorda com a
matéria publicada na revista Veja?
— A nova poesia brasileira, produzida nos anos
90, possui autores de primeira qualidade, como
Carlito Azevedo, Claudia Roquette-Pinto,
Ademir Assunção, Angela de Campos, Ronald
Polito e Jussara Salazar. Poucas vezes, em
nossa literatura, tivemos um conjunto tão
expressivo de poetas. Infelizmente, essa
riqueza é ignorada pelos cadernos culturais da
imprensa diária, que preferem noticiar
amenidades sobre o show business americano,
novelas de televisão ou grupos musicais de
valor duvidoso. Vivemos sob o império da
mediocridade, que só lê obras de auto-ajuda,
romances sentimentais ou manuais de direito e
economia. A matéria publicada em Veja apenas
ilustra a miséria de nosso jornalismo
“cultural”. A melhor poesia brasileira tem sido
publicada em revistas de pequena circulação,
mas de alta qualidade, como Dimensão, Medusa,
Inimigo Rumor, Monturo e no Suplemento
Literário de Minas Gerais. É nessas
publicações, e não na imprensa “oficial”, que
vamos encontrar a corrente sangüínea que
alimenta nossa literatura.
Por outro lado, as grandes editoras não se
arriscam a publicar os novos poetas, que são
obrigados a pagar do próprio bolso a impressão
de seus livros, cuja distribuição em livrarias
deixa um pouco a desejar. Como diria aquele
sósia russo e mal-humorado de Verlaine, o que
fazer? Em minha opinião, cabe aos próprios
poetas a tarefa de divulgar sua produção. Um
caminho lógico para isso seria a criação de uma
revista especializada em poesia, periódica e de
circulação nacional, distribuída em livrarias e
bancas de jornal, que espelhasse o que se faz
hoje de melhor em nossas letras. Uma revista
aberta à invenção, à pesquisa de linguagem, que
fosse a caixa de ressonância do novo. A crítica
séria e qualificada é exercida hoje por quem
faz poesia, por quem que está atento aos
processos de criação, e não por jornalistas que
vêem o poeta como uma espécie de planta exótica
africana ou libélula rara de Madagascar.
Qual a utilidade da Internet? Quais sites lhe
interessam?
— Se a poesia do século XX teve influência do
jazz, das artes plásticas e do cinema, a do
novo milênio, com certeza, será marcada pelo
computador, que permite integrar som, imagem e
movimento. O espaço cibernético, além disso,
possibilita a edição de “livros” eletrônicos
interativos, realizando a profecia de Mallarmé.
O que não representa a morte do livro impresso,
a meu ver, mas amplia as possibilidades de
veiculação da poesia. A Internet significa a
superação das fronteiras nacionais. Hoje, é
possível a troca de informações entre
diferentes pontos do planeta numa velocidade
nunca vista. Isto fortalece as chances de um
universalismo, a afirmação de uma cultura
humana pluralista, rica e diversificada, o que
é diferente da globalização, que significa
apenas a dominação econômica dos grandes
monopólios. Creio que o caminho para evitarmos
o desastre é o da integração: somos da mesma
raça, habitamos o mesmo planeta, temos os
mesmos direitos e responsabilidades. A Internet
não tem apenas importância para a informação
estética, mas para a transformação política:
agora, não podemos mais ficar indiferentes à
fome na África, ao genocídio em Timor Leste ou
à ocupação do Tibete pela ditadura chinesa.
Podemos nos manifestar, boicotar, pressionar
governos, exercer a nossa cidadania planetária,
indo além dos limites de fronteira. Eu e minha
mulher, Regina, somos adeptos dessa guerrilha
tecnológica. Dos sites que visito, indicaria
três: Popbox, editada pelo excelente poeta
Elson Fróes, com páginas de tradução, poesia
visual e sonora; Caqui, especializado em
haicais; e o Jornal de Poesia, editado a duras
penas pelo Soares Feitosa, que é uma verdadeira
biblioteca virtual.
O espelho e as coisas
OLHO-de-virgo, barriga-de-peixe, dentes-de-
leão: palavras são reflexos. Habitei no espelho
e comi serragem, vidro moído, trapos de jornal;
e copulei com os relógios de pulso, com as
navalhas, com fechaduras. Sobre a mesa da sala,
entre as vogais dispersas do alfabeto,
estilhaços de ampolas para abolir a idéia do
tempo. Os vermes saem pelo buraco da agulha, a
palavra jade é pus, a palavra jalde é cuspe. A
palavra janga está nua, vestida de alarme. As
maçãs enlouquecem. O verde enfurece as conchas
e a lesma pensa na árvore da palavra despida
que sonha. Tudo são nomes e formas. Lâminas
cortam os fios desatados de água estagnada. Há
uma praça onde comprei pêras ou figos, não sei.
Onde ouvi a menina dizer eibishuá. A lua pisca
um olho para a jovem parca, ela é cega e surda,
e come entulho no banco da praça. Sua voz
arisca, bruta, tantaliza: fio de arame tenso,
buraco de agulha, cano de pistola. Tudo são
palavras, e palavras são coisas. Que não
permanecem. Tudo queima, e o sol vegetal é a
urina de um cão que arde em vermelho. A poesia
pode dizer o tempo que escorrega de seus dedos?
A poesia diz tudo e não quer dizer nada e seu
nome se escreve no vazio da página, sítio de
possíveis reflexos. Tudo são simulacros,
pegadas no limo do nada. Todavia, o velho coxo
sangrado disputa comida com o cão. A poesia
pode andar de bicicleta, deslancha no mar azul,
onda em castelhano se diz ola, nuvem em francês
se diz nuage. Ela pode ser escrita em pele
viva, em algodão, no suor do Marrocos, no
violoncelo de São Petersburgo, numa bodega de
La Habana. Porém, a tesoura corta tudo em
pedaços. Permanece uma sombra, um eco de
ruidoso silêncio. Que o espelho captura e
multiplica em um número incalculável de
reflexos.
<==