GILBERTO MENDONÇA TELES |
1.
— Como foi o primeiro contato com a literatura? Quais sensações
tinha ou tem ao lembrar da infância. Há algo especial, como quando
Marcel comia biscoitos, no Em
Busca do Tempo Perdido, de Proust?
Escrever é lidar com o lúdico? —
O primeiro contato foi na escola primária, numa cidadezinha do
interior goiano. A partir do terceiro ano, comecei a me interessar pelo
livro de leitura, com muitos poemas infantis do famoso Poesias
Infantis, de Olavo Bilac. Vejo hoje, recolhendo emoções na tranqüilidade,
alguns elementos que devem ter concorrido para o meu gosto pela Poesia.
Coisas que eu percebia, como
o anoitecer; ou que eu era
levado a sentir (pela guerra, pela propaganda do Estado Novo ou por um
sentimento inato de nacionalismo), como uma vaga idéia de pátria;
coisas que imaginava, como o bonde,
ou que eu conhecia de perto, como o rio,
tudo isso vinha nos poemas que éramos obrigados a ler na escola. E essa
“obrigação” é importantíssima na formação do gosto literário.
Vejo-me com nove anos, diante
da professorinha que me mandava ler em voz alta o poema “A Pátria”,
de Bilac. Ouço-a me corrigindo a pronúncia e ainda sinto a vergonha das
suas correções diante da turma, sobretudo diante de uma certa menina que
me olhava de vez em quando. Mas o que mais me agradava era algo mágico,
indefinível, que eu ia percebendo na
música das palavras, possivelmente no ritmo que ia descobrindo na
leitura em voz alta de versos como “Ama
com fé e orgulho a terra em que nasceste!” ou “Esbraseia
o Ocidente na agonia / O sol...”.
No alexandrino de Bilac, o encantamento tinha algo a ver com o
conteúdo do verso: o orgulho de haver nascido em Goiás de Pedro Ludovico
e no Brasil de Getúlio Vargas, tanto que, quando este morreu, eu
escrevi-lhe um soneto encomiástico, que aparece agora na quarta edição
de Hora Aberta (poemas
reunidos). No decassílabo de Raimundo Corrêa havia outra espécie de
encantamento, melhor, de enigma e de curiosidade. A ordem inversa e o enjambement
me faziam olhar várias vezes para o texto, tentando compreender porque o
sol vinha lá no fim, como se estivesse mesmo se pondo entre as nuvens
vermelhas dos céus de Goiás. E isso me agradava. Eu sabia o que era brasa
por causa das fogueiras de São João, mas não sabia bem o que era Ocidente
e aquele “na
agonia o sol” me estimulava a imaginação. Hoje vejo que a sucessão
de vogais tônicas (eia, ente, ia e
ol) deve ter atuado como uma melopéia nos meus ouvidos e no meu espírito
que se ia abrindo para a linguagem e para a poesia.
Aos quatorze anos aprendi a metrificar, lendo Gonçalves Dias, Álvares
de Azevedo e Olavo Bilac. Começava a compreender o segredo do ritmo na
poesia. Era tão difícil no início que eu às vezes passava uma semana
para endireitar os versos de um poema. E devo ter comido também os meus
biscoitos, madeleines, roscas e
pamonhas, pois as imagens da infância me vêm nítidas, espontâneas sem
precisar que eu lute com le
temps perdus. A única luta (ou lide) que se conta — e que é também
proustiana — é com o lúdico:
apreendendo a brincar, a jogar com as palavras, o homem aprende também a
jogar com o mundo. E é sem dúvida desse jogo que provém a poesia. A
melhor poesia, pois escrever é mesmo (como você pergunta afirmando)
lidar com o lúdico, com a alegria, com a vida. Todo poeta é também um opó-rapá-cupu-lopó
alguém que saiba brincar com a linguagem para descobrir / revelar o
outro lado das coisas. 2.
— Dizem que livros são como filhos, gosta-se igualmente de
todos. Há algum (livro de sua autoria) predileto? —
Pode ser, mas não deixa de haver preferência por um (filho),
incompatibilidade com outro e até compaixão por um terceiro. Se a
palavra gostar pode sintetizar
essas diversidades, muito bem. Com os livros se passa de maneira análoga,
mas com uma diferença fundamental: à medida que vão sendo publicados
vai-se formando na cabeça do autor uma [auto]consciência crítica sobre
o valor deles, a não ser que se trate de um escritor cabotino, para o
qual tudo é obra-prima... Nas
duas linhas de minha produção — de poesia
e de crítica — há alguns livros por que tenho maior simpatia. Talvez
porque sofri mais a sua escritura
ou ela se deu numa época mais difícil, tanto para o homem como para o
escritor. Ou quem sabe a consciência crítica se dá melhor com a sua
“estrutura”, com os seus temas, com o seu título, etc. É neste
sentido que, como poeta, gosto de livros como Planície (1958), Pássaro de
Pedra (1962), Sintaxe Invisível
(1967), A Raiz da Fala (1972), Arte
de Armar (1977), Plural de
Nuvens (1984) e o recente Álibis
(2000). Creio que eles são pontos sustenidos na minha série de poesia, o
que não impede de achar que Plural
de Nuvens seja talvez o meu predileto. Quanto à linha de crítica, há
livros como A Poesia em Goiás, de 1964, que representa o meu primeiro grande
esforço de pesquisa e de pensamento crítico; o Drummond — A Estilística da Repetição (1970), análise
aprofundada de um recurso estilístico [4ª edição]; Vanguarda
Européia e Modernismo Brasileiro [17ª edição], o que mais me rende
em direitos autorais; Camões e a Poesia Brasileira [1973], cuja 4ª edição acaba de
sair em Portugal; e, ainda, Retórica
do Silêncio (1979) e A
Escrituração da Escrita (1996). São livros de que gosto, onde
exprimi meu conhecimento de cultura literária. Acho que o predileto pode
ser A Escrituração da Escrita, no qual me sinto maduro e à vontade, a
ponto de contornar os cacoetes da linguagem universitária. 3.
— Para o texto ser revolucionário, deve haver conteúdo e forma
revolucionários, ou com apenas um dos ingredientes, a
revolução pode ser feita? Existe novidade hoje em dia? —
Um dia me dei conta (na Retórica do
Silêncio) de que há duas espécies básicas de vanguarda:
uma, que se diz e se quer revolucionária, que faz manifestos e que
vem por fora da literatura
estabelecida e que eu chamei de provocante,
pregando a destruição e anunciando uma literatura nova, que não se
sabe bem como é; e outra, natural
e por dentro da linguagem literária. A primeira se refere a movimentos
como o futurismo, o dadaísmo, o
surrealismo e o concretismo brasileiro; e a segunda se aplica a todos os
poetas como Bandeira,
Oswaldo, Drummond e Cabral, os quais foram vanguardistas no sentido de que
tiveram ousadia,
originalidade e virtuosidade na produção de seus poemas, na criação
de sua poesia, isto é,
conheceram a fundo a sua arte/ciência de fazer versos. Depois
desta “introdução”, pego a sua pergunta e junto “conteúdo e
forma” num só termo — forma —,
sem pensar em separá-los. Quando Maiacoviski disse que “sem
forma revolucionária não há arte revolucionária”, ele não está
separando forma de conteúdo, pois ele sabia (ou intuía) que na
linguagem tudo é forma. Há, portanto,
uma forma do conteúdo
e uma forma da
forma: esta se manifesta, aquela fica latente, mas de tal maneira
que uma alteração numa repercute na outra. Por exemplo: é muito difícil
que num soneto, poema fechado nos seus catorzes versos, se possa exprimir
o sentido revolucionário das duas formas de vanguarda. A forma
da forma não encontra liberdade para expressar a forma
do conteúdo novo, literário, social
ou político. Não sei se ficou claro, mas é assim que penso. No meu livro A
Escrituração da Escrita (Vozes, 1996), no capítulo “O Processo da
Moderna Poesia Brasileira”, faço uma síntese dos procedimentos da
“Nova Vanguarda Européia”, citando, dentre outros, os
seguintes movimentos: o poema visual, o sonoro ou fonético, o
multidimensional, o semântico,
enfim, uma série de recursos
de que se valem para vender um produto poético (ou não) como novo. Todo
tipo de apelação possível e impossível. Aparentemente, novidades. 4. —
Você tem a versatilidade dos tempos pós-modernos. Escreve poemas
concretos, metrificados, sonetos, verso livre? O poeta é um camaleão? — Acho que a sua pergunta atinge aqui a força de uma bela
definição teórica: ser pós-moderno é misturar tudo, mas sem eliminar
a autonomia de cada forma poética. É o camaleão brincando de poeta e
lambendo as astúcias miméticas de Aristóteles. Ou do Teles, que mantém
a tradição do aristos [aristoz],
isto é, de querer o melhor, o excelente. Se essa mistura é mesmo pós-moderna,
estou feliz. No Brasil o “pós-moderno” foi uma onda que passou pela
universidade, arrastando todos os que só vivem do novo: ser inteligente
é citar o último tango de Paris... Aliás, estou falando de barriga
cheia, pois um professor da UFRJ, num livro sobre épica, estudou a minha Saciologia
Goiana como épica pós-moderna. Nunca tinha pensado nisto. Mas
concordei com ele: o meu livro era mesmo uma mistura de todas as formas e
movimentos literários. Penso,
entretanto, que não escrevo poema concreto coisa alguma: escrevo poema
visual, que é outra coisa. Tanto que os concretos se valeram dos poemas
visuais, que são tão antigos como a escrita. Veja-se o livro de José
Fernandes, O Poema Visual,
publicado pela Vozes, creio que em 1996. A minha “versatilidade” (pena
que não é versutilidade) me
faz ser ou pretender ser um “camaleão”: daí a minha língua
comprida, língua de sogra / língua de sabre / língua de sobra / língua demais
[...] a língua
oca / que pende langue / do céu da boca. 5. — Você
é angustiado por alguma influência? —
Li o livro de Harold Bloom (The
Anxiety of Influence / A Theory of Poetry), quando trabalhei como
professor na Universidade de Chicago,
no fim da década de 1980, depois de haver escrito A
Retórica do Silêncio, que é de 1979 (Cultrix) e possui um subcapítulo
denominado “A Influência”. É
claro que já sabia do nome do autor mas ainda não o havia lido, embora o
seu livro tenha saído em 1973. Como a sua pergunta intertextualiza o título
do crítico norte-americano, vi-me na obrigação de citar a sua obra,
antes
de tocar no problema da “influência”. Levantei a história
desse termo e terminei o meu estudo dizendo que, hoje, em face de uma obra
com que o espírito do escritor encontra
identificação estética, “o novo escritor, em vez de imitar,
como nos tempos clássicos, procura conscientemente atualizar
os elementos que lhe parecem importantes na estruturação de sua
obra. Mas não resta dúvida de que à margem de sua consciência fluem
imagens, construções estilísticas e até traços do assunto de obras
literárias que o tenham impressionado. Mas sempre de maneira parcial,
nunca total. Senão seria o
plágio”. Agora,
pessoalmente posso dizer que tenho algumas influências palpáveis na
minha poesia, possivelmente nesta ordem:
Bilac, Cruz e Sousa, Raul de Leôni,
Paulo Bonfim, Bandeira, Mário de Andrade,
Drummond, João Cabral e Lêdo Ivo. Na poesia brasileira, são os
autores que mais leio. De fora, devo consciente a Lorca, Jorge Guillén,
Vicente Aleixandre, Reverdy, Aragon e mais proximamente Raymond Queneau.
Nunca o havia lido, mas um crítico brasileiro, também romancista e
tradutor, me disse: Puxa! Como a sua poesia se parece com a de Queneau.
Achei graça, mas na primeira viagem a Paris saí procurando obras de
Queneau. Hoje penso que ele devia ler bem português e acabou me
descobrindo... 6.
— Harold Bloon aponta Shakespeare como o inventor da modernidade.
Concorda? —
No Jornal do Brasil (Idéias), de 2 de setembro do ano passado, falo do
Shakespeare: a invenção do humano,
de Harold Bloon, como o livro mais importante que eu estava lendo. A
tese central do crítico norte-americano é a de que Shakespeare “nos explica” porque
“nos inventou”. Ele é o “inventor do humano” e não, como
você está dizendo, “da modernidade”. A não ser que o “humano”
tenha aí algo de “humanismo” e, portanto, de modernidade avant
la lettre. Para Bloon, a arte
de Shakespeare é tão infinita que nos contém e há de continuar abraçando
os que vierem depois de nós. “As [suas] peças nos lêem
de maneira definitiva”. E não é à toa, portanto, que “Depois
de Jesus, Hamlet é a figura mais citada no Ocidente”. 7.
— Walter Benjamin erra quando hierarquiza a arte
dizendo que o cinema é a maior delas?
— Acho que sim, que erra. A começar com a comparação entre as artes. Cada uma tem sua matéria própria, sua forma específica e seu universo especial. Destacar uma em detrimento da outra não me parece metodologicamente correto. No seu conhecido artigo “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” [estou citado pela tradução francesa da Denoël, de 1971], Benjamin diz que pela primeira vez — e isto no cinema — “o homem deve agir, com toda a sua personalidade viva e segura, e entretanto privada da aura. Porque sua aura depende do seu aqui e agora. Ela não sofre nenhuma reprodução”. Compara depois o cinema ao esporte e diz que nos dois casos os espectadores são semiconhecedores e chega à conclusão, aliás verdadeira, de que o desenrolar de um filme “fornece um espetáculo que não se teria jamais podido imaginar no pasado”. Enfim, coloca o cinema como uma super-arte, em vez de vê-la como uma reunião de artes, cada uma com a sua característica, mas concorrendo todas para um sentido coletivo que tem no movimento o seu ponto culminante. 8.
— Com
quantas metáforas se faz um poema? — Eu poderia começar citando uma estrofe do meu poema “Na língua do povo” (de Álibis), onde digo queQue tudo começa em mim. Até o caos de outro universo com estrofe e rima. E eu quero te mostrar com quantos paus se faz um bote com mulher por cima. Um poema pode se fazer sem nenhuma metáfora e sem nenhuma figura: pode ser apenas o registro lingüístico de um momento, de um fato, como em alguns poemas de Bandeira. Houve até quem falasse em antimetáfora nesses casos. O problema maior é achar que metáfora é qualquer figura ou a figura dominante. Os dois lados do signo, significante e significado, criam dois planos no discurso: o da “expressão” e o do conteúdo” e cada um deles gera uma cadeia de imagens que vão num crescente, por um lado, do nível do fonema ao da sílaba, ao da palavra, ao da frase, ao da oração e finalmente ao do discurso em si; e, por outro lado, do nível do sema ao da raiz, ao do semema e às signmificações da palavra, da frase e do discurso. Daí as famílias de figuras — os metaplasmos, as metataxes; os metassememas e os metalogismos. Isto pode ser visto claramente na p.24 do meu livro A Escrituração Escrita, citado acima. Ao pé da letra, não se pode dizer que o poema é como uma metáfora, pois esta figura se dá no nível da palavra, no seu plano de conteúdo, no dos metassememas. Não metáfora de frases: a figura aí ganha outro nove, alegoria, por exemplo. Todo professor analfabeto em poesia diz que o poema é uma “vasta metáfora”. Burrice. Mas a sua pergunta é quanto ao número de metáforas num poema. Quanto mais melhor, mas o acúmulo delas pode levar ao hermetismo, à obscuridade, uma vez que o ritmo do poema perde o seu fundo de realidade convencional (o cotidiano) para apontar com mais insistência no sentido da abstração. O certo é o equilíbrio, a dosagem certa que só o tempo e muito exercício de escrita nos acaba ensinando. 9. — Quem é o escritor brasileiro? — É como qualquer escritor em qualquer país do mundo. É muito raro que ele seja somente escritor. É sempre uma mistura de médico e poeta, advogado e romancista, professor e crítico. Enfim, um sujeito que estuda pouco a sua arte, pois tem de estudar a sua profissão para sobreviver. Isto é o comum. Mas é também um sujeito, no Brasil e no exterior, que tem de lutar para aprender a escrever, para escrever, para publicar, para distribuir o seu livro, para obter reconhecimento e para receber o pouco que lhe toca de direito autoral. Mas ele possui ainda a “aura”, a sua arte de poesia ou prosa não a perdeu não. E é ela que lhe dá uma espécie de salário indireto, de estima e de admiração que acaba lhe rendendo alguns trocados. 10.
— Qual uso faz da internet? — Muito pouco. Gosto imenso do computador: ele adiantou minha vida últil em mais de dez anos. Gosto também do e-mail, mas não gosto da maioria das coisas que me mandam. Acho que quando passar esta fase de “instalação”, quando ele se tornar normal e perder um pouco do seu ar de burguês, o seu uso se disciplinará automaticamete e se tornará o que já é: um notável meio de comunicação. Não tenho muito tempo e paciência com a internet. Mas visito de vez em quando algum site. 11.
— Como
é o seu trabalho acadêmico? — Sou professor universitário desde 1958. Há trinta anos trabalho na PUC-Rio. Sou professor titular e leciono literatura brasileira e teoria literária. Já lecionei no Uruguai, em Portugal, na França (duas universidades), nos Estados Unidos (Chicago) e na Espanha (Salamanca). Pelo meu Curriculum Vitae, que vai anexo a seu pedido, pode-se documentar outras coisas, como antologias de poemas meus no estrangeiro. Gosto de dar aula, mas me irrita o aluno que não sabe e dá a entender que sabe, sobretudo nos cursos de pós-graduação. Nunca deixo de preparar as minhas aulas. Como escrevo muito (estou falando de crítica literária), meus cursos têm sido leitura e debates de artigos meus. Claro, e leitura de textos literários, nunca meus. Sou pontual e exijo a pontualidade. 12.
—
O livro acaba? O desmatamento também? — Em A Escrituração da Escrita trato do mito da morte da poesia, do romance, do livro. É um mito antigo. Quando Jesus nasceu se ouviu numa das margens do Mediterrâneo a voz que dizia que o Grande Pã morreu, como se toda a cultura antiga fosse desaparecer. Mas o interessante é que algo realmente mudou, mas não morreu. Tudo continua vivo. Logo que passar a moda do computador, da internet, etc. vai-se ver que o livro continuará vivo, ocupando o seu espaço. Se o governo ajudar, o desmatamento vai acabar mesmo. Por que você não passa para o seu site o meu poema “O Matro Grosso Goiano”, de Saciologia Goiana, um poema visual que mostra o desmastamento e o critica. Se não puder encontrá-lo, me diga, por favor. 13.
—
Qual epígrafe personifica você e sua obra? — Vou juntar duas numa só, para responder. A primeira, uma epígrafe que tirei de Raymond Queneau, do livro L’Instant Fatal. Aí se diz, num poema, que “ça a toujours kékchose déxtreme / un poème”. A segunda, tirei do livro Lettres en Folie, de A. Duchesne e Th. Leguay. E diz simplesmente isso: “En nous incitant à jouer avec eux les mots nous invite à juer avec le monde”. A primeira é a prática da segunda e ambas nos põem no sentido do ludismo: brincar ou jogar com as palavras, com a linguagem. A primeira abre o livro L’Animal, publicado em Paris, numa edição bilíngüe, em 1990; a segunda abre o Álibis, do ano passado. Elas personificam a minha concepção de poesia, percebida por alguns críticos, como Paulo Rónai e como Péricles Eugênio da Silva Ramos que escreveu o seguinte na Revista de Poesia e Crítica, de 1985:
Duas
coisas chamam a atenção, liminarmente, neste Plural
de Nuvens de Gilberto Mendonça Teles: em primeiro lugar, mostra-se
com toda a clareza o virtuose
do verso [...]. E tudo isso casado com estilo por vezes sério, mas freqüentemente
lúdico ou zombeteiro: Tudo o que
escrevo / tem algo de travesso — assevera Mendonça Teles. [...] A
faceta bem humorada do poeta e o modo como a lapida situam-no em posto
perfeitamente dele, pessoal, inconfundível, apesar das raízes longínquas
que possa ter de escassos mestres. Na verdade, ninguém desenvolveu, como
ele, em nossa poesia moderna, essa feição alegre, foliona, mas
completamente destituída de ferrão, satírico ou mordaz, de qualquer
ofensa ou maldade. O poeta brinca, como escrevia Mário de Andrade
transcrevendo Pallazeschi: Lasciatemi
divertire! E, brincando ou divertindo-se, realiza-se numa poesia de
presença marcante. Plural de Nuvens
não é livro que possa passar sem que se assinale seu lugar de realce em
nossa poesia: chega a redmi-la de torrenciais mesmices e da obnubilação
dos que pensam que cantam, mas na verdade coaxam. Aliás, o humor constitui o tema da dissertação de mestrado de Marília Núbile, A Carnavalização na Poesia (Estudo da poesia de Gilberto Mendonça Teles), defendida na Universidade Federal de Goiás e publicada pela Universo em 1998. 14.
—
O papel do escritor na sociedade é ser, como diria Erza Pound,
antena da raça? — É coisa demais, Seomario; prefiro brincar por agora e responder com um poema que está em Plural de Nuvens. Mas diria antes que o papel do escritor, a sua função social, é escrever e, assim, descrever com a sua observação e com a sua imaginação tudo o que lhe parece “escrevível”, revelar o irrevelado, mostrar o invisível do visível. Captar, com a antena da raça ou da roça, a sua maneira especial de ver a vida e o mundo. Mas veja o meu poema brincalhão: TEATRO DE ARENA Estou
desempenhando o meu papel- carbono:
aqui está o seu nome como
uma tatuagem no meu peito. Aqui,
o acetinado para as suas mãos e
o aéreo para uma viagem clandestina. Já
fui como um papel almaço muito
bem pautado e com margens para
as emendas e correções. Amanhã
serei algum papel de embrulho se
não for um desses papéis de oficio com
timbre e protocolo para comunicar oficialmente
a seu marido que
entrei em gozo de férias ou
de licença-prêmio com você. Hoje
eu sei me transformar nos
papéis mais difíceis: ser
bufão como um papel bouffant, faminto
como um papel de arroz, discreto
como um papel de alcova, fino
como um papel de linha, sensual
como um papel de rolo para
as nossas abluções. Mas
também um autêntico linha-d’água só
para ver você na contraluz. Já
representei papéis estrangeiros: China,
Índia, Holanda, Japão. Você
pode fazer de mim o seu correio, o
seu papel-moeda ou papelão. Quando
você me receber, não me olhe de soslaio, apesar
de ser muito bonita esta palavra. Me
olhe de banda, que é a coisa mais linda, e
me guarde no bolso da calça, bem em cima daquele
sinal na coxa esquerda. Depois,
antes que alguma coisa aconteça, me
tire da cabeça. Um
dia, quando
a roupa voltar da tinturaria e
este poema perder seu significado, você
me encontrará todo enrugado: —Que
papel será este? E por capricho me
deitará no lixo.
GILBERTO MENDONÇA TELES
Verbete*
[Dados Biográficos] TELES, Gilberto Mendonça
nasceu em 30 de junho de 1931, em
Bela Vista de Goiás, GO. Reside
há 30 anos no Rio de Janeiro. Fez toda
a sua formação acadêmica em Goiânia: o ginásio, no Ateneu Dom Bosco,
dos salesianos, e no Colégio Estadual, onde cursou também o científico;
o curso de Letras Neolatinas, na Faculdade de Filosofia da Universidade
Católica de Goiás; e o de Direito, na Universidade Federal do mesmo
estado. Em 1965, foi com bolsa de estudos para Portugal, obtendo, em
Coimbra, o Curso de Especialização em Língua Portuguesa. Em 1969,
doutorou-se em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, defendendo também tese de Livre-Docência em Literatura
Brasileira.
Em Goiás, foi, durante14 anos, funcionário do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística
e, ao mesmo tempo, professor do Colégio Estadual [Liceu], antes de
iniciar sua carreira de professor-universitário. Foi professor-fundador da Universidade Católica e da Universidade Federal de Goiás,
onde estruturou e dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros, fechado
pelos militares em 1964. Por duas vezes presidiu a União Brasileira de Escritores,
secção de Goiás, e o Instituto Histórico e Geográfico de Goiás.
Atingido pelo AI-5, quando professor de literatura brasileira no Instituto
de Cultura Uruguaio-Brasileiro, de Montevidéu, veio para o Rio de Janeiro
em janeiro de 1970, sendo saudado por Carlos Drummond de Andrade, que lhe
dedicou os seguintes versos:
Repito
aqui — repetição é meu forte ou
meu fraco? — tudo que floresce em admiração no itabirano peito rudo (e em grata amizade também) ao professor, melhor, ao poeta que de Goiás ao Rio vem, palmilhando rota indireta, / mostrar — com um ou com dois eles no nome — que ciência e poesia em Gilberto Mendonça Teles são acordes de uma harmonia.
Durante três meses deu aula em pequenos colégios e cursinhos do
Rio de Janeiro, até ser contratado pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro [PUC-RJ], onde é hoje Professor Titular de literatura
brasileira e teoria da literatura há trinta anos. Com a anistia,
transferiu seus cargos públicos para as Universidade Federal Fluminense e
Federal do Rio de Janeiro, aposentando-se em 1988 e 1990,
respectivamente.. Além de professor no Uruguai, lecionou em Portugal [Professor-Catedrático-Visitante
da Universidade de Lisboa], na França
[Professeur
Associé da Universidade de Haute Bretagne, em Rennes; e Maître de
Conférence na Universidade de Nantes], nos Estados
Unidos
[Tinker
Visiting Professor da Universidade de Chicago] e na Espanha
[Catedrático Visitante da Universidade de Salamanca].
Já recebeu 18 prêmios literários, entre os quais: "Álvares
de Azevedo" [Poesia], da Academia Paulista de Letras, 1971;
"Olavo Bilac" [Poesia], da Academia Brasileira de Letras,
1971; "Sílvio Romero" [Ensaio], da A. B. L., 1971;
"IV Centenário de Os
Lusíadas" [Literatura Comparada], da Comissão do IV Centenário
de Camões, 1972; "Prêmio
de Ensaio", da Fundação Cultural do Distrito Federal, 1973;
"Brasília de Poesia", do XII Encontro Nacional de Escritores,
1978; "Cassiano Ricardo" [Poesia], do Clube de Poesia de São
Paulo, 1987; e "Machado de Assis" [Conjunto de Obras], da
Academia Brasileira de Letras, 1989.
Em 1979, a Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás elegeu-o
"Príncipe dos Poetas Goianos".
Em 1987, o Governo Português outorgou-lhe a "Comenda
da Ordem do Infante Dom Henrique"; e a Universidade Católica de
Goiás deu-lhe o "Diploma de
Honra ao Mérito". Em 1992, a União Brasileira de Escritores de
Goiás instituiu o "Concurso
Nacional Gilberto Mendonça Teles de Poesia". Em 1995, Homenagem
do Centro Acadêmico do Departamento de Letras da PUC-RJ, de que resultou
o livro Gilberto: 40 anos de poesia.
Em 1996, a Universidade Federal do Ceará conferiu-lhe o título de
Professor Honoris Causa; e a Câmara
Municipal de Bela Vista de Goiás deu-lhe o diploma de "Título
Honorífico". Em 1997, a União Brasileira de Escritores do Rio
de Janeiro conferiu-lhe a medalha "Carlos
Drummond de Andrade"; e o Governo de Santa Catarina a "Medalha
de Mérito Cruz e Sousa". E em 1998, é eleito Sócio Correspondente da Academia das Ciências de Lisboa.
I — OBRAS DO AUTOR
1. POESIA Alvorada. Goiânia: Escola Técnica de Goiânia, 1955. Estrela-d’Alva. Goiânia:
Brasil Central, 1956. Prêmio
Félix de Bulhões, da A.G.L. Planície. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1958. Prêmio de
Publicações da Bolsa Hugo de Carvalho Ramos, da Prefeitura Municipal de
Goiânia. Fábula de Fogo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1961. Prêmio
Leo Lynce, da União Brasileira de Escritores – Seção de Goiás. Pássaro de Pedra. Goiânia:
Escola Técnica de Goiânia, 1962. Prêmio Álvares de Azevedo, da Academia Paulista de Letras. [Sonetos do Azul sem Tempo]. Goiânia: Publicados em O
Popular, em 1964, e incluídos em Poemas
Reunidos, em 1978. Sintaxe Invisível. Rio
de Janeiro: Cancioneiro de Orfeu, 1967. A Raiz da Fala. Rio
de Janeiro: Gernasa / INL, 1972. Prêmios:
Secretaria de Educação e Cultura do Distrito Federal, do V Encontro
Nacional de Escritores (1970) e Olavo Bilac, da Academia Brasileira de
Letras (1971). Arte de Armar. Rio de
Janeiro: Imago, 1977; 2ª ed., Imago,1977. Prêmios: Banco Bandeirantes, da Sociedade Amigas da Cultura,
Belo Horizonte (1976) e Brasília de Poesia, do XII Encontro Nacional dos
Escritores, Brasília (1978). Poemas Reunidos. Rio
de Janeiro: José Olympio / INL, 1978; 2ª ed. José Olympio,
1979; 3ª ed. aumentada, José Olympio, 1986, com o título de Hora Aberta. Saciologia Goiana. Rio
de Janeiro. Civilização Brasileira / INL, 1982; 3ª ed. Goiânia:
Conselho de Cultura de Goiás, 1987. 4ª ed. Agência de Cultura Goiana,
2001. Plural de Nuvens. Porto:
Gota de Água, 1984; 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1990. HORA ABERTA. (3ª ed. dos Poemas Reunidos).
Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
Prêmio Cassiano Ricardo do Clube de Poesia de São Paulo (1987):
Prêmio Machado de Assis (conjunto de obras), da Academia Brasileira de
Letras, 1989. 4ª ed. aumentada. Londrina: Universidade Estadual, 2001[no
prelo]. Traz a Cronologia da
Vida e Obra do Autor. Prefácio de Ángel Marcos de Dios, “Arabiscos”,
a s egunda parte de Álibis
e Caixa-de-Fósforos,
poemas circunstanciais. 2
volumes. Sonetos (Reunião). Rio de Janeiro: Edições Galo Branco,
1998. Prefácio do autor Caixa de Fósforos (Poemas Dedicados e Circunstanciais). São
Paulo: Giordano, 1999. Álibis.
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Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. Seleta de Bernardo Élis. Seleção e estudo final.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1974. Tristão de Atayde (Teoria, Crítica e História Literária).
Seleção, introdução e notas.
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2001. Poesia Completa de Augusto Frederico Schmidt. Rio de Janeiro:
Topbook, 1995. Prefácio e revisão. Os Melhores Contos de Bernardo Élis. São Paulo: Global, 1995. 2ª ed., Global, 2001. Tropas e Boiadas, de Hugo de Carvalho Ramos.
Organização, introdução e notas. Goiânia: Universidade Federal
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Organização, estudo e notas.
Rio de Janeiro: Aguilar, a sair. * Verbete do Dicionário Biobibliográfico de Escritores Contemporâneos do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro, 1997.
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