| Entrevista com Marília Librandi Rocha | 
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         Marilia
      Librandi Rocha
      é Doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP,
      estudando a obra poética do psicólogo Jacob Pinheiro Goldberg. É autora
      da dissertação de mestrado, As
      espantosas palavras – uma análise de Grande Sertão Veredas”, de
      Guimarães Rosa (USP). Foi co-roteirista do espetáculo Um
      Certo Olhar – Pessoa e Lorca, encenado por Raul Cortez e dirigido
      por José Possi Neto(em cartaz no RJ). Escreve resenhas sobre literatura 
      para o Caderno de Sábado, do Jornal da Tarde e revistas literárias.
      Foi responsável pelo projeto editorial da Revista Magma
      (USP). Deu aulas e palestras
      sobre literatura no  Seminário Internacional Guimarães Rosa 
      (PUC- Minas, BH, 1998), e na Faculdade de Letras da USP, graduação
      e Pós-gradução, como Professora convidada.  É
      autora de ensaios e artigos, como “A
      Trama do Desejo – Uma leitura do conto “Desenredo”, de Guimarães
      Rosa” (a sair na Revista Magma,
      SP, março 2000), “Todas as odisséias
      de Clarice Lispector”(Jornal da Tarde, 2.10.99, que pode ser
      acessado no site: http://www.secrel.com.br/jpoesia/mlrocha.html;
      “Entre o subjetivo e o prosaico”.
      (sobre Tripé, de Rodrigo
      Lacerda, J.Tarde, 1999); “Stefan
      Zweig, o Candelabro aceso” (ainda não publicado); “Carece de ter coragem” (apresentação do livro de Jacob. P.
      Goldberg. Judaísmos. 1997); “Uma
      Rosa para Rushdie”. Revista
      Livro Aberto. 1997; “Encontro
      com Boris Schnaiderman” (Revista
      Magma,  1996); “João
      Alexandre Barbosa, leitor" (Revista
      Magma,  1995)   A
      convite do Consulado Francês, prepara palestra sobre a escritora e
      dramaturga francesa, Heléne Cixous, a ser apresentada na Bienal do Livro
      de SP, este ano. Está escrevendo um ensaio sobre a dificuldade da crítica
      em dialogar com seus contemporâneos, para uma nova revista de literatura,
      a ser lançada em breve.  Sobre
      seu trabalho escreveram: Helène
      Cixous: “Li
      o artigo de Marília Librandi (Todas
      as odisséias de Clarice Lispector). Diga a ela 
      que fiquei muito tocada pela força e sensibilidade de sua
      argumentação e de sua leitura, pela inteligência equilibrada de sua
      posição e pelo amor que emana de seu pensamento. Ela está totalmente
      dentro da tradição filosófica à qual eu quero trazer uma leitura que
      se transforma em escritura. E ainda mais, ela é combativa e
      competente”.   João
      Adolfo Hansen: (sobre As Espantosas
      Palavras – uma leitura de Grande Sertão:Veredas) “Seu
      trabalho evidencia uma questão de pressuposto que assombra as críticas
      de Rosa e que é, justamente, a questão da sua poética”. (...) “Eu
      diria que a estrutura do seu texto é a do discurso, no sentido literal do
      termo “dissertação”: um discorrer que passa por temas, procedimentos
      técnicos, teorias e leituras de Grande Sertão:Veredas, deixando-os para trás. O leitor lê como se
      avançasse por um corredor onde há várias janelas abertas para várias
      cenas, esperando que algo feche, no final, a longa função aberta pelo
      seu “nonada” no início. No entanto, quando chega ao final, o narrador
      é deceptivo e, acho que com humor, e senso de construção, faz o texto
      começar de novo, “nonada”, lembrando a circularidade do GS:V e talvez
      propondo que o que tinha a dizer foi dito, durante a leitura, nas janelas
      abertas, como a travessia de Riobaldo”.     Por
      que “Refletir sobre a vida e a obra de Salman Rushdie é refletir sobre
      o próprio ser da literatura”? Por que escolheu Salman Rushdie como
      “personagem” de seus estudos? -
      Gosto de polêmicas, e freqüentemente tomo partido em causas que agridem
      a liberdade de pensamento e a literatura. Rushdie foi um desses casos –
      de paixão, em primeiro lugar, porque me encantei com a sua escrita; 
      de identificação – por ele defender a literatura frente aos
      outros discursos – e de solidariedade– por ele ter sido atacado tão
      violentamente em sua liberdade de ser humano e escritor. Quando escrevi o
      texto em 1997, Rushdie me parecia um caso exemplar para refletir sobre a diferença e a necessidade da
      literatura frente aos discursos da religião e da política. 
      Essa diferença diz respeito principalmente ao fato de que a
      literatura, e no caso específico de Rushdie, o romance, põe em confronto
      diversas linguagens, e mais do que apresentar certezas faz-nos perguntas,
      problematizando o status quo
      social e lingüístico. Hoje já não falaria mais em “ser da
      literatura”, pelo idealismo que isso comporta, mas em ação, prática,
      intervenção que a boa literatura produz. Interessava-me 
      também uma certa utopia em Rushdie que, 
      em  “O Último
      Suspiro do Mouro”, dizia ter criado “um hino de amor aos nossos eus
      mestiços”, através de um enredo miscigenado,
      como o herói e narrador, ao mesmo tempo, cristão, judeu e muçulmano, e
      cujo sonho era sair nu, liberto “das cadeias inescapáveis da cor, da raça,
      do clã.” 
 -
      Eu
      inverteria a pergunta: qual escritor não me interessaria para um estudo
      – porque,  se pudesse e
      tivesse a capacitação necessária, gostaria de falar do maior número de
      autores , escritores e poetas possíveis e impossíveis. Simplesmente não
      estudo autores com os quais não me identifico, com os quais não aprendo,
      com os quais não cresço – mas, pensando bem, mesmo esses merecem ser
      estudados, nem que seja para dizer porque não mereceriam ser estudados. Quando
      a vida particular de um escritor influencia/atrapalha/ajuda a veiculação
      de sua obra na mídia? -
      Saber
      da vida de um escritor sacia nossa curiosidade, nosso afã de fofocas,
      detalhes íntimos, e nos dá a ilusão de proximidade com o artista que
      admiramos, mas não acho que traga uma contribuição fundamental para a
      leitura de seus  textos. Porque ler é também uma invenção, como disse
      Borges. No ato da leitura criamos o escritor, inventamo-lo. Exemplo: eu
      passei anos dialogando quase diariamente com Guimarães Rosa através de
      seu personagem Riobaldo. Conversas longas, madrugada a dentro, 
      provavelmente muito mais intensas do que as que mantinha com a
      vizinha do apartamento de baixo. Depois de ter escrito meu estudo sobre o Grande
      Sertão:Veredas ouvi num programa televisivo 
      a voz de Guimarães Rosa. Eu ouvi o Rosa e levei um susto tão
      grande, pensando que se o tivesse conhecido pessoalmente todo o meu estudo
      teria sido outro. Isso invalidava o que de fato tinha escrito? Penso que não.
      Um escritor ultrapassa a si mesmo quando escreve – 
      ele é um e muitos outros - Fernando Pessoa que o diga. Acho que 
      a comunicação silenciosa da escrita e da leitura transporta
      nossos horizontes – os meus, e provavelmente os do escritor. Senão,
      para quê escrever ficção ou poesia, se não for para estabelecer essa
      comunicação que a mediocridade do dia-a-dia impede? Só para completar:
      hoje estudo textos de alguém que conheço pessoalmente e posso adiantar
      que essa convivência torna ainda mais nítido o fato de que o escritor não
      é a pessoa em si, mas a persona. 
   O
      que falta para que o meio acadêmico possa tornar os seus estudos mais visíveis
      para intelectuais e sociedade? Por que são sempre os mesmos escritores
      que merecem monografias? Não há aí uma certa preocupação com publicação? -
      Veja,
      acabei de entrevistar um professor que levou 22 anos para publicar sua
      monografia. Meu trabalho sobre o Rosa foi indicado para publicação e até
      hoje permanece na gaveta por um misto de pudor, preguiça e excesso de
      autocrítica, e os exemplos podem ser multiplicados. Então, não me
      parece que se estudam escritores pensando na publicação do trabalho. O
      que me parece, e aí sim vale a discussão, é uma certa mesmice na crítica
      que estuda os grandes ícones da literatura e fica dialogando entre si ,
      na esperança de que seu trabalho traga algo de novo. Acho que falta
      arriscar mais, e sobretudo um diálogo mais intenso com o presente. Por
      outro lado, teses publicadas tem pouquíssimos leitores, talvez porque
      exigem mesmo certa paciência e imersão que o discurso midiático, e o
      tempo veloz do jornalismo não comportam. 
      Então, para haver mais diálogo seria preciso uma mudança não
      apenas da universidade, mas da sociedade como um todo. Como sou cética ,
      acho que vamos continuar assim: a universidade alimentando o jornalismo e
      a mídia; o jornalismo criticando a universidade, que por sua vez critica
      o jornalismo, que por sua vez é criticado pelos artistas, numa ciranda de
      mundos que não se encontram e que talvez devam permanecer mesmo como
      estranhos. Acho que a dissidência, a divergência e a diferença fazem
      parte de uma pluralidade necessária. Como
      a internet pode auxiliar na formação de escritores? -
      A
      internet nos traz informação e não formação. Essa deve preceder, e
      vem de uma inquietude interior, uma ânsia pelo conhecimento, num diálogo
      constante com  o outro. Agora,
      a internet permite o contato com pessoas que jamais conheceríamos de
      outra fora (esse nosso diálogo é um exemplo disso). Permite também
      perceber o número enorme de pessoas que escrevem e amam a literatura. A
      internet pode ajudar na pesquisa, mas ela não ajuda a escrever melhor.
      Esse é um combate diário e permanente, uma labuta com a página em
      branco (na  tela, 
      no vídeo ou na vida ). Qual o segredo na formação de um
      escritor? Posso dizer que em grande parte leio, e continuo a ler, para
      descobrir. Como criar poesia? São perguntas que a internet não resolve.
      Aliás, cito um trecho de uma crônica do autor que estou estudando, Jacob
      Pinheiro Goldberg, que, ao comentar  o
      livro “Estrada do Futuro”, de Bill Gates, cita, entre outras, 
      uma frase que exalta a internet e os celulares: “Você
      poderá manter contato, com qualquer pessoa, em qualquer lugar".
      Ao que ele responde: “Que mentira
      onipotente. A única pessoa com quem se interage
      autenticamente detém o discreto charme
      da ausência e jamais ficará pendurada num celular, aguardando chamada.
      No viés, é uma sombra no espelho, um desejo oculto, palavras ambígüas
      e adivinhadas". Acho que é
      por aí. 
   -A
      literatura brasileira sempre viveu frente ao dilema de encontrar uma voz
      própria, criando a partir da importação de modelos estrangeiros. O índio
      no romantismo, nós sabemos, era calcado no modelo do cavaleiro medieval.
      O escritor brasileiro é, por exemplo, Euclides da Cunha indo até o sertão
      munido das teorias deterministas e positivistas e entrando em contato com
      um mundo que escapava e solapava essas mesmas teorias, e o resultado é Os
      Sertões , obra prima da sociologia e da literatura brasileira. É
      Machado de Assis, escritor cultíssimo, 
      desmascarando, numa sátira impiedosa, a elite nacional, seus
      conchavos, suas trapaças e a hipocrisia geral da ordem escravocrata. 
      É a literatura dos modernistas com sua antropofagia, que, segundo
      Augusto de Campos, seria a única filosofia autenticamente nacional.
      Agora, eu também diria que o escritor brasileiro existe e não existe. É
      e não é. Porque o escritor é ou deve ser, independente de sua
      nacionalidade. Quanto  mais
      estranho e estrangeiro dentro de seu próprio meio, mais capaz ele será
      de nos desvendar a nossos próprios olhos. Mesmo porque, 
      se o escritor é aquele que cria sua própria língua, então
      quanto menos “nacional” e mais singular ele for, melhor escritor será.
      Dou o dito.   Paulo
      Coelho ajuda nossa literatura a galgar novos espaços? -
      Repergunto:
      quem lê Paulo Coelho, lê Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Machado, 
      Graciliano, ou Drummond? Acho que não. O
      escritor tem que morrer para ser eterno? -
      Não
      é possível sermos  eternos
      enquanto vivos, não é mesmo? E, depois de mortos, como sabê-lo? A
      ideologia da imortalidade, dizia Sartre, corresponde a um desejo sepulcral
      porque privilegia a morte. Quando escrevemos preocupados com a eternidade,
      escrevemos para tempo nenhum, e Sartre defendia a literatura como comunicação
      entre seres vivos. No entanto, veja você, eu passei tantos anos
      dialogando com um escritor já falecido e com uma personagem que não
      existe. Como entender? Talvez não haja nada a entender, apenas a
      perguntar. Enquanto isso vamos escrevendo e lendo, de preferência bem
      vivos. 
 -
      Acompanho
      apenas de longe essa discussão porque não dou aulas, 
      e portanto não posso opinar  com
      conhecimento de causa. Agora, sou absolutamente a favor da universidade pública
      (que continua, sim, alimentando as particulares com seus mestres e
      doutores), assim como sou a favor do financiamento das bolsas de estudo.
      É na universidade pública que pode acontecer, por exemplo, o caso do
      curso de latim chegar a formar, após quatro anos, apenas uma ou duas
      pessoas, como eu sei que já aconteceu. Agora, isso numa faculdade
      particular seria obviamente eliminado como não rentável, e não
      existiriam mais cursos de latim, grego ou mesmo tupi-guarani. Se não
      fosse a universidade pública proporcionar essa formação, estaríamos
      muito mais pobres, paupérrimos mesmo.  Qual
      o papel do escritor na sociedade?    -
      Fundamental. Essencial. Necessário. 
      “Somente renovando a língua, podemos renovar o mundo”, dizia
      Guimarães Rosa. Partilho total e integralmente dessa proposta, ou melhor,
      dessa utopia, se bem que falar em utopia  hoje pareça tão ‘demodé’.   
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