O último iconoclasta  

                                                    Por Nelson de OLiveira

 

Minha tribo é composta pelos meus fantasmas — muitos dos quais nem conheço ainda. (Tribo, pág. 15)

 

Em meados de abril, depois de passear, tomando sorvete, pelas alamedas de um tradicional bairro paulistano, Campos de Carvalho, o último dos moicanos da santíssima trindade de nossa prosa — ao lado de Guimarães Rosa e Clarice Lispector — aos 83 anos decidiu que já era hora de morrer. Não se reconhecia mais em parte alguma, muito menos na fala excitada dos poucos admiradores que esporadicamente o procuravam. Enfarto, enquanto dormia. Quem há de recriminá-lo? Pior pra nós. Perdemos um mau-humorado, que, descrente da lógica, de Deus e da existência da Bulgária, escolheu justamente a Semana Santa pra bater as botas.

Moral da história: “Quatro pessoas no velório. Quatro! Nenhum amigo, ninguém da imprensa. Não tinha gente pra carregar o caixão, gente!” desabafa Mário Prata, cuja mãe era prima do falecido.

O final de tarde em que Campos me abriu a porta de seu apartamento, no bairro de Higienópolis, foi um dos mais comoventes de minha vida. Circunstâncias as mais inesperadas, aliadas a providenciais coincidências, levaram-me até lá. Hora e meia depois nos despedimos, ele, um pouco cansado — na silhueta curvada, o peso da idade e de quatro pontes de safena —, eu, exatamente como ficara ao ler pela primeira vez uma de suas novelas: transubstanciado.

Walter Campos de Carvalho, escritor mineiro radicado em São Paulo, é figura tão curiosa quanto as personagens que criou. Autor de pelo menos quatro pequenas obras-primas da literatura brasileira — A lua vem da Ásia (1956), Vaca de nariz sutil (1961), A chuva imóvel (1963) e O púcaro búlgaro (1964) —, há mais de trinta anos decidiu abandonar a literatura, talvez por enfado, talvez por se sentir desiludido com nosso insípido mundo editorial. Segundo suas próprias palavras, uma altercação com o editor Ênio Silveira teria sido a gota d’água que o levara a optar pelo auto-exílio.

Quando da publicação de suas novelas reunidas pela editora José Olympio, Campos proibiu a inclusão de seu primeiro romance, Tribo (1954), por achá-lo menos contundente que os demais. Touché! Era justamente pra isso — pedir-lhe um exemplar do livro — que eu me propusera a visitá-lo. Ele, todavia, foi logo me dizendo que não havia mais nenhum. De pronto, sua esposa Lygia se ofereceu pra me entregar, na manhã seguinte, uma cópia xerográfica do romance.

Após ler a cópia, não pude deixar de concordar com o autor. De fato, Tribo não é tão iconoclasta como A lua, nem tão autodestrutivo como O púcaro. No entanto, cheio de verve e deboche, impossível negar que se trata de obra de grande valor, muito acima da média da maior parte das produzidas por estreantes (incluo-me nessa observação). Nela já estão presentes os elementos característicos de tudo o que Campos viria a criar depois: a demolição, através do nonsense, de todos os valores burgueses; a redução do amor à sua forma fisiológica: o sexo, e, conseqüentemente, a redução da vida à morte.

O que mais me cativa em sua obra, e tal já aparece em Tribo, é o fluxo alucinante de eventos que nela se encadeiam. Tudo está em perpétuo movimento, as imagens mais absurdas vão se alternando e esse frenesi, a meu ver, por si só é o suficiente pra espantar de suas páginas qualquer sombra de realismo. O início de um capítulo é sempre a antítese de seu término. Como num espetáculo circense, o número de seres grotescos — palhaços, arlequins, saltimbancos — é enorme. E não é difícil de, em tais rostos, reconhecermos a nós mesmos, pois nossos medos e desejos estão todos lá, ampliados ao máximo. Como resultado, a sobreposição de dois tipos de riso: o riso amargo, que só os moribundos à beira da morte conseguem produzir, e o riso de si mesmo, dos que vivem perpetuamente em pânico.

Contemporâneo de Rosa (por cuja dicção nunca se interessou) e Clarice (que amava), observador atento, porém resguardado de todo o contato infeccioso com os manifestos estéticos que pulularam nos anos 50 e 60, Campos de Carvalho, lançando mão do que de melhor podiam lhe oferecer os surrealistas, radicalizou, através principalmente do uso do humor, a prosa de sua época.

Como não podia deixar de ser, a experimentação formal é a base de sua literatura. Jamais programados ou alicerçados em dogmas vanguardistas, seus achados, mais do que intuitivos, são, sobretudo, instintivos, vêm das vísceras. Tribo, por exemplo, pode ser lido de duas maneiras: ora como romance, ora como coletânea de contos. À primeira, prefiro a segunda opção, pois cada capítulo, mesmo estando estruturalmente vinculado aos demais como em qualquer romance, apresenta certa autonomia e pode ser fruído isoladamente, em qualquer ordem, sem nenhuma perda.

O primeiro capítulo, “Ego. Alter ego”, começa com palavras já antológicas: “Meus irmãos são Nietzsche, Stendhal, Lautréamont, Cesar Borgia e Gilles de Rais. (O Marquês de Sade era meu tio por afinidade, mas minha nobreza não provém dele nem de qualquer nobreza externa). (…) Sou muito mais nobre do que o rei da Inglaterra ou do que o Xá da Pérsia. A nobreza deles é tão ridícula quanto a divindade do imperador do Japão, filho do Sol e possivelmente pai da Lua. (…) A nobreza do sangue não existe, caso contrário não existiria a sífilis e a sangria seria crime de lesa-majestade.” Emblemáticas, palavras semelhantes poderiam ter sido ditas pelo próprio Zaratustra.

Mas quem são os habitantes dessa tribo? Ora, quem mais se não outro Walter, alter ego do autor, desapegado da vida mas convivendo pacificamente com todo o tipo de hipocrisia, de cuja janela se entrevê a praça central, ponto de encontro quase que obrigatório de todos os fantasmas do livro. Eis alguns deles: Bertúcio, o centroavante mais famoso do mundo, além de herói nacional, acostumado a salvas de palmas e homenagens, que, três décadas antes de Romário, cai no esquecimento quando uma fratura no pé esquerdo impossibilita-o de continuar a ser o ídolo das multidões; Sua Santidade o Papa, que por telefone oferece a Walter a Alta Comenda da Ordem de São Basílio; o padrinho arcebispo, capaz de vender a alma ao diabo se, pra ser nomeado cardeal, tal se fizer necessário; Duranti, o foragido, “que, num acesso de ódio ou de loucura (nunca ficou bem provado) assassinou de uma só vez toda a família, composta da mulher, três filhos, um cunhado, duas cunhadas e três sobrinhos, que viviam à sua custa, tendo-os depois enterrado no fundo do quintal”; Teódulo, o cômico; Alcibíades, o gago; Gastão, o poeta; Tia Carolina, a fundadora e a primeira presidenta do Clube das Onze Mil Virgens; o prefeito e o presidente da República.

Porém, como tudo em Campos de Carvalho tem a consistência de um reflexo no espelho, os tipos acima arrolados não são o que aparentam ser. Estão, como faziam os gregos em homenagem a Dioniso, mascarados. Embaixo da máscara: a verdadeira face de uma corja de bufões.

Campos adorava dançar em cima da hipocrisia humana. Adorava, também, tripudiar de sua própria hipocrisia. Dois capítulos divertidíssimos, “O paxá” e “O discípulo”, dão-nos a medida exata de sua sátira. No primeiro, Walter tenta insistentemente conseguir emprego de um “gordíssimo poeta místico, em seu escritório de negócios não menos gordos”, que, entre as últimas cotações da bolsa e os telegramas de Nova York e Londres, tem a lhe oferecer apenas citações eruditas e indicações literárias infames. No segundo, quase a mesma situação: “O poeta novérrimo Gastão, de quinze anos de idade, em crítica acerba aos poetas novíssimos (de vinte anos) e aos poetas novos (de vinte e cinco) chama-me, a mim que tenho cinco mil, de poeta matusalênico e de borocochô dos deuses — expressão, esta última, certamente clássica em 1990 — apontando-me, de passagem, os rumos certos da verdadeira Poesia, num gesto de generosidade que muito me comoveu.” Esses dois capítulos são verdadeiros achados humorísticos, dignos do ex-integrante d’O Pasquim que Campos de Carvalho foi.

Hoje em dia tribo, além do significado tradicional, é como se auto-denominam dezenas de grupos de adolescentes, desde os que curtem se reunir em cemitérios, até os que não saem das danceterias chiques dos bairros mais abastados. O importante pra esses jovens é falar a mesma língua, seja ela qual for. Prova incontestável de que, quase meio século depois da publicação de seu primeiro romance, Campos continua atual, mostrando-nos que cinqüenta mil anos de civilização não nos tiraram das cavernas. Ou seja, em pleno século da teoria da relatividade e da física quântica, continuamos embaralhando valores. Caso contrário, por que não reconhecer, consoante o que o autor nos diz na página 170, que “o poeta, mesmo o laureado, é tão responsável por sua poesia como o cego de nascença o é por sua cegueira ou o louco por sua vidência absurda e inaceitável. E já que se admite, sem contestação, que os primeiros podem locupletar-se à custa de sua natureza, a ponto de se fazerem admirados ou até mesmo imortais, não vemos como nem porque se possa negar aos segundos o mesmíssimo direito, nem tampouco aos seus descendentes mais próximos ou mais remotos.”

Resta-nos aguardar que, mesmo contra a vontade expressa do autor, em breve, a exemplo das quatro novelas reunidas pela José Olympio, Tribo também esteja de volta às prateleiras. Repetir, com este livro, o que Max Brod fez com os do Kafka — que poderia estar mais de acordo com o perfil do próprio Campos do que isso?

Nelson de Oliveira é escritor, autor de Treze (Ciência do Acidente) e Subsolo infinito (Companhia das Letras)

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