| Entrevista com Nelson de Oliveira | 
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 Tenho 33 anos e sou natural de Guaíra (SP), cidade
      localizada muito mais próximo de Belo Horizonte do que de São Paulo,
      fato que de certa forma explica, pelo menos pra mim, certas características
      de comportamento tipicamente mineiras. Minha grande paixão, desde cedo, foi o cartum e a
      história em quadrinhos, paixão que me levou a estudar desenho e pintura.
      A literatura foi, na minha vida, um fato novo e tardio. Tanto que só em
      89, ao receber uma bolsa da Secretaria de Estado da Cultura, passei a
      levar a sério o desejo de pôr no papel o primeiro livro de contos,
      intitulado Fábulas. Em 90 organizei com outros contistas o grupo Infâmia
      Literária, cuja finalidade era promover entre os integrantes a troca de
      experiências e informações. No ano seguinte o grupo publicou uma
      revista contendo os primeiros resultados dessa proposta. Em 95, com o Fábulas,
      venci o Premio Casa de las Americas, promovido pela instituição cubana,
      e em 96, com Os Saltitantes Seres da
      Lua, também de contos, o concurso promovido pela Fundação Cultural
      da Bahia. Isso fez com que a idéia de me dedicar com afinco e de maneira
      disciplinada à literatura firmasse pé. De lá pra cá tenho tido contos estampados aqui e
      ali, em publicações como as revistas Cult e Livro Aberto (SP), Medusa
      (PR), o jornal Correio Braziliense (DF) e o Suplemento Literário de Minas
      Gerais. Também tenho colaborado regularmente, com resenhas de livros, no
      caderno Prosa & Verso, d’O Globo, e na revista Bravo!.  Livros
      publicados  Subsolo
      infinito Companhia
      das Letras, 2000, romance  Treze Ciência
      do Acidente, 1999, contos  Naquela
      época tínhamos um gato Companhia
      das Letras, 1998, contos  Quem
      é quem nesse vaivém? FTD,
      1998, novela infantil  Os
      saltitantes seres da lua Relume-Dumará,
      1997, contos  Fábulas Tradução
      para o espanhol: Julia Calzadilla Núñez Casa
      de las Americas, 1995, contos    1
      - Como foi ganhar um prêmio literário, o da Fundação Cultural da
      Bahia, logo no livro de estréia? Na
      verdade, o primeiro prêmio que ganhei foi o Casa de las Americas, em
      1995. Dois anos antes eu havia acabado de organizar um livro de contos
      intitulado Fábulas, e foi
      justamente este volume que venceu o concurso. Sem sombra de dúvida, todo
      prêmio representa, no mínimo, novo impulso financeiro na carreira de um
      jovem autor. Além da possibilidade de o debutante ver publicado o
      famigerado livro. Foi o que aconteceu comigo. Minha estréia literária se
      deu em espanhol, não em português. Como parte do prêmio, as Fábulas
      tiveram uma edição de dez mil exemplares bancada pela instituição
      cubana. Na época eu tinha 28 anos, uma vontade louca de ser publicado e
      dezenas de recusas de editoras de todo o país. Só por isso já dá pra
      perceber o que significou o bavejo da sorte. O segundo prêmio, da Fundação
      Cultural da Bahia, em 1996, trouxe mais gás ao meu balão. Hoje, com o início
      da trilha já aberto, consigo passar facilmente sem novos prêmios. Mas
      tenho certeza de que, se não tivesse sido esses dois, eu não teria abraçado
      pra valer a literatura. Não sou do tipo que não se incomoda com o
      desprezo alheio. Sou, até mesmo, do tipo revoltado. Sempre que vejo gente
      talentosa comendo o pão que o diabo amassou sinto vontade de mandar tudo
      às favas. Escritor sofre muito no Brasil. Se bem que aqui, apesar do
      analfabetismo, há mais escritores do que brasileiros — e mais poetas do
      que escritores!   2
      - Treze tem uma capa que
      acrescenta ainda mais mística ao número em questão. A capa perdeu ou
      ganhou eleitores? Tenho
      certeza de que a capa do Treze
      contribuiu pra que um grande número de pessoas se dispusesse a não
      comprar o livro. Ela é agressiva — repulsiva, até. Uma amiga me
      confessou que teve de arrancar fora a capa, antes de começar a ler os
      contos. Vários resenhistas, depois de elogiar os contos, também
      desaprovaram o trabalho dos designers Joca e Patrícia Terron. Um deles
      chegou a sugerir até mesmo que se cobrisse a capa com uma folha de papel
      ofício, se o leitor quisesse ler o livro no metrô. “Pra não assustar
      as criancinhas”, explicou. Tais reações me divertem bastante. Eu
      particularmente gosto muito do projeto da capa. Aliás, os treze contos da
      coletânea estão muito à vontade com o projeto gráfico do livro todo.
      Projeto expressionista, finamente jocoso. Mas infelizmente esse gênero de
      humor costuma passar despercebido pra maioria dos leitores. Por mais que
      os vícios beletristas tenham desaparecido dos textos, 95% das capas e dos
      projetos que estão hoje nas livrarias ainda são tão beletristas quanto
      um soneto parnasiano. Penso que o Treze,
      visto do ângulo puramente visual, é um cartum que debocha dessa situação.   2.1
      - No conto Doce dilema azul de
      bolinhas amarelas o personagem principal prendeu a todos e a si mesmo
      numa cela. Até que ponto esse texto dialoga com o conto O alienista, de Machado de Assis? Eu
      não tinha em mente O alienista,
      quando escrevi Doce dilema azul.
      Ambos são textos muito diferentes. Mas, ao se meter com a prosa de ficção,
      quem é que pode de fato negar a influência do Machado? Se não me
      engano, li O alienista há dez,
      quinze anos. Talvez tenha ficado enfurnado em mim algo desse breve
      contato. Não sei. Penso que Doce
      dilema, por ser muito curto, tem mais a ver com as crônicas do Millôr
      e os “contados, astuciados, sucedidos e acontecidos do povinho do
      Brasil”, do José Cândido de Carvalho. Além d’O
      coronel e o lobisomem, esse fino humorista publicou duas antologias de
      sátiras: Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicão e Um
      ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos. Os dois livros estão cheios
      de narrativas de meia página, uma página no máximo, protagonizadas por
      loucos de pedra. São anedotas impagáveis! E Lulu Bergantim é, de longe,
      o maluco mais simpático que já pintou na crônica brasileira.   2.2
      - É só o personagem do conto Merdra
      que detesta teatro? Qual a sua relação com a música, o cinema, o
      teatro, as outras mídias? Existem
      pessoas que simplesmente não têm como sobreviver sem uma dose regular de
      narrativas. Eu faço parte desse grupo. Quando criança, devorava histórias
      em quadrinhos e seriados de tevê. Adolescente, ainda no interior de São
      Paulo, somei aos quadrinhos e à tevê a música popular, o cinema e a
      literatura de entretenimento. Mais amadurecido, somei aos gêneros já
      mencionados a boa literatura, a música erudita, as artes plásticas e o
      teatro. Não importa qual seja o meio, a mensagem é sempre uma narrativa.
      Meu pai, por exemplo, faz parte do espantoso grupo de pessoas que não têm
      de se injetar diariamente nenhuma dose de narrativa. Ele não lê
      romances, não assiste à filmes e não sente a menor atração por nenhum
      gênero musical. Tudo o que lhe interessa é tocar os negócios e a vida
      da forma o mais pacata possível, em São Joaquim da Barra — cidade onde
      morei até os dezoito. Isso me espanta muito. Admiro-o.   2.3
      - Leu muito Augusto dos Anjos? Quais os escritores que fizeram a sua cabeça? Li
      Augusto dos Anjos e os poetas mais esquisitos que você possa imaginar —
      de Aretino a Glauco Mattoso. Isso, muito antes de chegar à conclusão de
      que meu caminho era o da literatura. Houve um tempo em que vivi como um
      nababo. Foi logo que me mudei pra São Paulo. Não tinha emprego. Só
      estudava. Quem pagava as contas eram meus pais. Nessa época paradisíaca,
      que infelizmente já vai longe, ministrei a mim mesmo um rápido curso de
      humanidades. Tentei ser mais seletivo ao comprar CDs, ao escolher um dos
      filmes em cartaz nos cinemas. Lia vorazmente os brasileiros, os malditos e
      os benditos, sem distinção de raça, sexo ou credo. Li todos os clássicos
      parrudos que encontrei traduzidos: A
      divina comédia, O decamerão, Dom Quixote,
      Fausto, Crime e castigo, O vermelho e
      o negro, As flores do mal, Ulisses,
      e também os não tão parrudos (apesar do preconceito que eu alimentava
      contra livro magro): Satiricon, Um lance de dados, Às avessas,
      O processo, O aleph, O estrangeiro, Pé
      na estrada, Almoço nu e assim por diante. O que me movia era o desejo de
      recuperar o tempo perdido — gasto apenas com Mafalda e Jornada nas estrelas.
      Naquela época livro bom, pra mim, não podia ter menos páginas do que Guerra
      e paz e A montanha mágica.
      Afinal, sem suor não podia haver arte. Romancista que quisesse ser
      reconhecido como tal tinha de ficar cinco, dez anos metido na feitura de
      um texto. O resto era brincadeira de criança. Mas essa fase já vai
      longe. Perdi a paciência. Hoje faço coro com o Valéry: “Nos livros,
      como nos pratos, só gosto do que é magro”.   3
      - Você é muito mais um escritor satírico do que um idólatra do demo.
      Escrever um livro sobre o pacto com o capeta, mais de cem anos depois do Fausto,
      ainda é algo que chama a atenção? Os puritanos já se manifestaram
      contra? O
      pacto faustiano parece ser um dos temas prediletos dos alemães. Sobre
      ele, além do Goethe, escreveram Klaus Mann (Mephisto)
      e Thomas Mann (Doutor Fausto). A
      origem desse mito que, aos poucos, foi sendo multiplicado infinitamente em
      narrativas populares, perdeu-se nas brumas do passado. A moral da história
      é simples: todo ser humano é limitado e, por mais que insista, não lhe
      é permitido ir além das próprias fronteiras. A única forma de conhecer
      o inefável seria — se isso fosse possível — com a ajuda de mãos
      transcendentais. Mas se Deus está morto e se tudo é permitido, só nos
      sobra Belzebu como condutor. Subsolo
      infinito é, na verdade, pura tiração de sarro de tudo isso.
      Misturei Grande sertão: veredas
      com Viagem ao centro da Terra
      apenas pra mostrar que já não há mais territórios desconhecidos. Tudo
      já foi palmilhado pela arte nesses séculos todos. Só nos cabe agora
      refazer os mesmos caminhos, recontar as mesmas histórias. Se os puritanos
      já se manifestaram a respeito? Eles nem sequer sabem da existência do
      livro, que só vendeu 500 exemplares nos três primeiros meses, quando
      ainda era novidade.   3.1
      - O subsolo é igual para todos? Não.
      Cada maluco tem seu próprio subsolo. E quando tentamos impingir aos
      outros nossos subterrâneos particulares, sai de baixo. Muita desavença
      costuma nascer daí.   4
      - Borges dizia que se há uma vassoura no texto e não tem função, não
      deveria estar no texto. Concorda? Em
      parte. Não existem — ou pelo menos não deveria existir — regras para
      o fazer poético. Dalton Trevisan parece professar a mesma fé, quando
      diz: “Para o bom escritor um personagem não espirra em vão. Na página
      seguinte tosse com pneumonia. Se pendura na parede uma espingarda, por força
      há que disparar.” A literatura realista se beneficia muito dessa
      diretriz retirada, com certeza, da matemática e da física. Mas
      felizmente, apesar da forte resistência por parte dos conservadores, o
      Realismo deixou de ser a principal escola literária há mais de um século.
      O cientista deu lugar ao ilusionista, que com a mão direita distrai a
      atenção do público enquanto com a esquerda faz desaparecer cartas,
      coelhos, o diabo a quatro. Gosto de textos em que há vassouras e
      espingardas cuja função é, certamente, não ter nenhuma função.   4.1
      - Gosta do “realismo mágico” como rótulo da sua literatura? De
      jeito nenhum. Não tenho nada a ver com o realismo mágico, e muito menos
      com a literatura fantástica. Também não sou cubista, nem concretista,
      nem tropicalista. Detesto que me enfiem em camisas-de-força de épocas em
      que eu nem era nascido.   5
      - Alguns de seus personagens ora são machos ora fêmeas. Você já foi
      traído pelo desejo? “Nada
      é mais complexo do que o outro sexo” (Millôr). Traído pelo desejo
      nunca fui — jamais cruzei o Rubicão —, mas creio que essa obsessão
      por hermafroditas e andróginos nasceu de algumas perquirições da
      adolescência. Todo ser humano, ao descobrir as maravilhas do sexo, já
      deve ter se perguntado: “Quem tem mais prazer na relação, o homem ou a
      mulher? Qual dos dois goza mais intensamente?” Ninguém pode negar que o
      orgasmo é uma das experiências mais perturbadoras colocadas ao nosso
      alcance: um presente da natureza — ou, se preferir, dos deuses. O homem
      goza mais facilmente, mas a mulher tem a capacidade de multiplicar o
      prazer, de fazer com que um orgasmo suceda a outro, conseguindo assim
      prolongar mais ainda o prazer. Isso é invejável. Essa capacidade
      impressionou até mesmo os gregos. A deusa Hera, irritada com os freqüentes
      adultérios de Zeus, chamou-o na chincha. O deus revidou: “Nós, homens,
      pulamos a cerca sim. Mas o prazer fugaz que encontramos nos braços de
      outras mulheres não se compara ao estupendo prazer que vocês, mulheres,
      encontram nos nossos braços.” Hera ficou furiosa: “Como pode saber?
      Você nunca foi mulher”. Não me lembro muito bem do mito, mas deve ter
      sido mais ou menos assim. A polêmica estava armada. Convocaram um mortal
      (se não me engano era mesmo um mortal), que havia provado das duas condições:
      fora homem e agora era mulher. Esse Orlando avant la lettre encerrou o
      caso: “Se dividirmos o prazer sexual em dez partes, ao homem caberá uma
      única parte e à mulher, nove”. A democracia não é uma invenção da
      natureza. José Maria, que também é Maria José, no Subsolo
      infinito, é a personagem pela qual eu realmente me apaixonei enquanto
      escrevia o romance. Elela goza como macho e fêmea.   6
      - Escrever é cair no abismo ou escalar o abismo? É
      escalar o abismo. A mais positiva das duas ações. Mesmo que no final da
      escalada, já sem forças, o escritor — Sísifo convertido na rocha dos
      seus pecados — acabe rolando ladeira abaixo.   7
      - Você deve ter uma imaginação com uma potência infinita. Cada vez, no
      seu texto, há mais coisas com o que se surpreender. Não me parece que
      tenha esquema literário com começo, meio e fim demarcados, e técnicas
      mirabolantes de como contar uma história. Como cria os seus livros, as
      suas personagens? “Romance” ainda é a denominação adequada aos
      textos que faz? Pelo
      menos metade do que já escrevi começou da mesma maneira: como resposta a
      outro texto. O conto Encanador,
      um dos primeiros que botei no papel, veio logo depois da leitura que fiz
      d’O arquipélago, do Diogo
      Mainardi. Em ambos há o dilúvio universal, bíblico. Subsolo
      infinito teve como ponto de partida a famosa passagem do Grande
      sertão: veredas, em que Riobaldo faz o pacto com o demônio,
      misturada com momentos do filme Coração satânico. Na verdade, eu quis reelaborar certas sutilezas
      presentes tanto no filme quanto no romance. Mas o pontapé inicial foi
      dado pela interrogação roseana, pela dúvida que persegue seu jagunço.
      O Senhor das Moscas existiria mesmo? Deu-se realmente o pacto? A descida
      aos infernos é, no meu caso, uma típica descida de romance de aventuras,
      a la Júlio Verne. Está mais pra Viagem
      ao centro da terra do que pra algo mais místico, metafísico.
      Acredito muito no diálogo entre textos. Faltam boas paródias na ficção
      brasileira. Se “romance” ainda é a denominação adequada? Penso que
      sim. Procuro trabalhar dentro do ringue, respeitando os limites impostos
      pelas cordas. Não tenho nenhuma pretensão de criar uma nova modalidade
      de briga de palavra.   8
      - Só se escreve um bom romance depois dos quarenta anos de idade? Gosto
      dessas verdades absolutas. Nelson Rodrigues costumava dizer que devia ser
      proibido a alguém com menos de trinta anos publicar um livro de poesia. São
      tiradas espirituosas que tornam o dia-a-dia menos insosso. Mas não passam
      disso. A verdade é que só escreve bons romances, só compõe boas peças
      musicais, só realiza bons filmes quem domina a linguagem que está sendo
      empregada. Esse domínio só pode ser adquirido por intermédio da prática.
      Se fulano de tal já escrevia romances antes dos quarenta, as chances de
      que venha a escrever uma obra-prima depois do quadragésimo aniversário são
      muito boas.   9
      - Você escreve sob a égide inspiradora de alguma droga? Qual relação
      tem com as drogas? Não
      escrevo motivado por nenhuma droga. Está mais do que provado que as
      drogas não têm o poder de melhorar o desempenho artístico de ninguém.
      Se não me engano, a última vez que fiz uso de uma delas foi na
      faculdade, há dez, quinze anos — nem me lembro mais. Na época tinha
      esperanças de que assim eu finalmente conseguiria ver abertas as
      infinitas portas da minha percepção. Não deu em nada. Digo o mesmo do
      fervor religioso. Drogas e religião conseguem, no máximo, sinalizar
      paisagens imaginárias que, se existissem concretamente, já teriam sido
      assimiladas pelo cotidiano há muito tempo. Droga por droga, fico com a
      literatura. Escrever exige lucidez. Caso contrário, a escrita automática
      dos surrealistas em vez de ser mero apêndice da história da literatura já
      estaria presente em Homero.   10
      - Tem alguma epígrafe que o personifique? Não.
      Não sei. Talvez tenha. Preciso procurar nas gavetas, nos bolsos da
      jaqueta que foi pra lavanderia. Devo ter, sim. Dúzias delas. De gente
      batuta: H. L. Mencken e Woody Allen. Só preciso me acostumar a andar com
      elas na carteira. Não quero ser pego desprevenido mais uma vez. Por
      enquanto, fico com essa do Nelson Rodrigues: “Ninguém mais respeita a
      inteligência. Nem a inteligência se respeita a si mesma. Deus me livre
      de ser inteligente.”   11
      - Qual o papel do escritor na sociedade? Considera que ainda é necessário
      chocar, acordar, mexer, destruir preconceitos? Da
      mesma maneira que há o músico erudito e o músico popular, há o
      escritor erudito e o popular. Sem essa distinção fica muito difícil
      definir o papel do escritor na sociedade. Ao popular — Jô Soares, Paulo
      Coelho, Mário Prata — cabe entreter o leitor. Ao erudito — Haroldo de
      Campos, Sebastião Nunes, Glauco Mattoso — cabe manter viva a melhor
      tradição literária. É claro que existem ainda sub-categorias com um pé
      lá e outro cá. Numa delas eu colocaria o Millôr Fernandes, cronista de
      primeiríssima qualidade. Não importa… deixo as definições pra crítica.
      O fato é que cada qual — popular e erudito — tem um papel específico
      a cumprir, afinal toda sociedade precisa de circo e de arte na mesma
      proporção. Achincalhar Jôs e Coelhos alegando que não são nenhum
      Joyce é bobagem. Não se compara alhos com bugalhos. Sim, ainda é necessário
      chocar, acordar, mexer, destruir preconceitos. Mas confesso que, depois
      das varguardas do início do século passado, penso que não é mais possível
      criar explosões atômicas, de proporções nacionais. Pequenos traques
      ainda são possíveis, felizmente. Foi o que aconteceu com a capa e o
      projeto gráfico do Treze. Pra
      minha surpresa muita gente reagiu a eles, guardando as devidas proporções,
      como os primeiros ouvintes da Sagração
      da primavera. O que prova que os preconceitos, mais do que os virus, têm
      uma capacidade absurda de se reciclar. Cutucá-los com vara curta é ainda
      a melhor coisa que um artista pode fazer.  |