LONGE DAQUI, AQUI MESMO |
Sérgio de
Castro Pinto*
Longe daqui, aqui mesmo
(A poética de Mario Quintana),
originalmente tese de doutorado defendida no Departamento de Letras da
Universidade Federal da Paraíba, foi aprovada, recentemente, para ser
publicada pela Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, da cidade
de São Leopoldo, Rio Grande do Sul.
Um dos pareceristas da UNISINOS, a Professora Léa Masina, dos
quadros do Instituto de Letras da Universidade Federal do RGS, com
doutorado em Literatura Comparada, em poucas, pouquíssimas palavras,
incursionou ao cerne do ensaio, pois, desde o início, mais do que uma
tese e o que esta às vezes possui de ranço acadêmico e de falsa erudição,
eu o quis um ensaio mesmo, sem tirar nem pôr, mas um ensaio palatável,
sem afetações, desses que não turvam as águas para parecer profundo.
Pois bem, coube à Professora Léa Masina desvelar todas as minhas
intenções quando escrevi Longe
daqui, aqui mesmo, desde as explícitas, as manifestas, até as que,
para virem à tona, precisam do concurso de um leitor que acate, como foi
o caso da professora gaúcha, o texto poético, metafórico, desde que ele
não se configure como uma mera excrescência ou digressão a respeito do
tema objeto da tese de doutoramento. Tese que, para existir como tal, não
precisa pôr à mostra, ostensivamente, os pressupostos teóricos dos
quais se vale para proceder à exegese da obra.
Aliás, quanto a esse aspecto, sempre tive uma ojeriza natural em
empregar exageradamente os termos na maioria das vezes absconsos da lingüística,
da semiótica e da teoria literária, que mais parecem extraídos de uma
vetusta farmacopéia. Isso na medida em que guardam uma certa semelhança
com nomes de drogas cujos efeitos colaterais podem muito bem ser nocivos
à saúde da literatura e à dos próprios estudantes de letras, desde que
ministradas em doses cavalares. Estão aí alguns vocábulos (ou rótulos
de remédios?) que não me deixam mentir, a exemplo de motivema, lexia, intradiegético,
anisocronia e muitos outros.
Ainda com relação ao parecer da Professora Léa Masina, lá para
as tantas ela escreve: “(...) o texto documenta alguns momentos de rara
empatia entre o crítico e seu objeto, contrariando as velhas noções
acadêmicas de que um texto rigoroso e sério deve ser, forçosamente,
fruto do distanciamento crítico e recheado de farta erudição”.
Na verdade, não procurei estabelecer nenhum distanciamento crítico
com Quintana e muito menos com o Modernismo, com a Geração de 45 e com a
Poesia Concreta, tanto que jamais me furtei no sentido de emitir juízos
de valor a respeito de cada um desses movimentos e sequer a propósito de
alguns poetas sobre os quais me ocupo ao longo do ensaio. No entanto,
mesmo que esses juízos de valor tenham sido manifestos ao sabor de minhas
idiossincrasias, Deus me livre e guarde de cultivar um discurso neutro,
omisso, tão ao gosto de uma crítica afeita à política da boa vizinhança.
Justamente por isso, além de poder soar pretensioso pela tentativa
de rebater conceitos já sedimentados sobre a obra de Quintana, Longe
daqui, aqui mesmo tem tudo para contrariar aqueles que, mesmo sem
instrumento procuratório, advogam em defesa de movimentos poéticos cujas
etapas já foram cumpridas, por mais que pretendam reinar absolutos no
contexto da poesia brasileira de hoje.
Quanto aos conceitos disseminados sobre a obra de Quintana, nenhum
mais equivocado do que o de Alfredo Bosi, segundo o qual o poeta gaúcho
teria encontrado fórmulas felizes de humor sem sair do clima
neo-simbolista que condicionara a sua formação. No caso - conforme
escrevi em Longe daqui, aqui mesmo
-, o simples emprego do vocábulo fórmulas
parece manietar Quintana à ditadura das fôrmas em contraposição à
maleabilidade das formas. Ou, em última análise, insinuar que ele teria
descoberto uma fórmula capaz de produzir poemas em série, todos eles
monocórdicos porque contaminados por uma espécie de compulsão tautológica.
Sobre Quintana talvez fosse mais pertinente afirmar-se: saiu da
atmosfera que condicionara a sua formação por descobrir formas felizes
de humor. Se é que as descobriu, pois nele, antes de ser procurado, antes
de ser uma estratégia intelectual, como o foi em Manuel Bandeira, o humor
é intrínseco, congênito, mas nem por isso menos eficaz no sentido de
evitar os excessos de um temperamento muito mais subordinado ao sentimento
do que à razão. Daí o seu humor visceralmente orgânico contrapor-se ao
ritual hierático da corrente simbolista, não obstante a sua formação
livresca o tivesse induzido a assimilar alguns postulados do repertório
poético desse movimento. Nenhum, contudo, que o despersonalizasse a ponto
de recalcar os ditames do “eu profundo”.
Por outro lado, o mote de que Quintana sempre se mostrou alheio às
questões sociais, de tantas vezes repetido, terminou adquirindo foros de
uma verdade irrefutável. Tanto que, até mesmo Wilson Martins, no geral
avesso ao julgamento da obra literária a partir do compromisso do
escritor com a realidade objetiva, chegou a estabelecer um paralelo entre
os livros Sentimento do mundo e A
rua dos cataventos, respectivamente de Drummond e de Quintana, nos
seguintes termos: “Marcava-se, mesmo, pelo sentimento,
mais que pelo sentimento do mundo,
a estréia literária de Mario Quintana”.
Nem precisa dizer que, com tais palavras, o crítico paranaense
parecia sugerir que o sentimento de Quintana abrigava apenas uma rua, ao
passo que o de Drummond comportava a vastidão do mundo. O que não é bem
assim, pois num dos textos de Caderno
H, quando faz a vez de porta-voz dos súditos do rei da Babilônia,
Quintana finda por demolir o porte catedralesco, litúrgico e régio do
nome Nabucodonosor para, só então, enxergá-lo e expô-lo nu, despido
das muitas letras perfiladas e contritas que lembravam um cortejo
religioso. Com esse processo, que para alguns estudiosos poderia suscitar
o emprego da teoria da carnavalização, de Bakhtin, ele termina por
destronar o nome Nabucodonosor para abreviá-lo e reduzi-lo a um simples e
nada majestático apelido: Bubu.
Eis o texto de Quintana: “O nome Nabucodonosor é belo como um
cotejo religioso. O triste é que os seus súditos, para abreviar,
chamavam-no simplesmente de Bubu”.
Por isso tudo, nunca é demais lembrar que, na obra de Quintana, o
social não está designado pelo poema: é o poema, segundo a observação
da Professora Tania Franco Carvalhal, num excelente ensaio sobre a poesia
do fronteiriço de Alegrete. Fronteiriço, aliás, não só pela condição
geográfica do seu nascimento, mas, principalmente, por extrapolar os
estreitos limites da realidade para conceber um mundo de magias e de
sortilégios, pois já não disse o próprio Quintana que “Quadros são
janelas abertas para o outro mundo deste mundo?” E se “Quadros são
janelas abertas para o outro mundo deste mundo”, nada mais natural de
que os seus poemas também o sejam, na medida em que procuram
consubstanciar sensações incorpóreas, movediças, inefáveis -
resgatadas daqui mesmo, do cotidiano, e devolvidas a este -, através do
poder transfigurador da linguagem poética.
* Poeta, professor universitário, jornalista e autor do ensaio Longe
daqui, aqui mesmo (A Poética de Mario Quintana), a ser lançado
brevemente pela Editora da UNISINOS (Rio Grande do Sul).
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