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       ENTREVISTA COM VERA LÚCIA DE OLIVEIRA  | 
  
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       Vera
      Lúcia de Oliveira nasceu em Cândido Mota - SP, em 1958.  É
      formada em Letras pela Faculdade de Ciências e Letras da UNESP (1981) e
      em Línguas e Literaturas Estrangeiras Modernas pela Università degli Studi di Perugia (1991).  Em 1983 recebeu bolsa de estudo do Ministério do Exterior
      para especializar-se na Itália, onde atualmente reside. Concluiu o
      Doutoramento em Literatura Brasileira na Università
      degli Studi di Palermo.  É
      autora de numerosos trabalhos sobre poetas contemporâneos publicados em
      revistas brasileiras, portuguesas e italianas, como Letteratura d‘America (Roma), Revista
      Internacional de Língua Portuguesa
      (Lisboa), Colóquio-Letras
      (Lisboa), D.O. Leitura (São
      Paulo), Nicolau (Curitiba), Revista de Letras da UNESP (São Paulo), Poesia Sempre (Rio de Janeiro), Insieme (São Paulo), Boca
      Bilingue (Lisboa), Annali della
      Facoltà di Lettere e Filosofia (Perugia), Tratti (Faenza- Itália), Andes
      (Roma), Cuadernos de Traduccion e
      Interpretacion (Barcelona), Palaver
      (Lecce), Ricerca Research
      Recherche (Lecce), Palavra (Lisboa),
      etc.  Foi
      premiada em diversos concursos de poesia e contos e participou de
      antologias no Brasil e no exterior, como Veia
      Poética (São Paulo, 1981), Água
      I (São Paulo, 1981), Cinque
      Terre (La Spezia - Itália, 1988), David
      1958-88 (Marina di Carrara - Itália, 1989), Collages
      (Roma, 1989),  Antologia del Premio Nazionale Sandro Penna (Perugia - Itália,
      1991), Antologia da Nova Poesia
      Brasileira, org, por Olga Savary (Rio de Janeiro, 1992), Bambini
      (Perugia, 1993), L’odore dei
      limoni (Perugia, 1994), e outras. Tem poemas publicados no Brasil,
      Argentina, Itália, Espanha e Portugal. Atualmente
      ensina “Língua e Literatura Portuguesa” e “História da Cultura
      Brasileira” na Università degli
      Studi di Lecce. Acaba de ministrar um curso de Pós-graduação sobre
      a poesia modernista, na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP - Campus
      de Assis.  Livros
      publicados A porta range no fim do corredor, Scortecci, São Paulo, 1983. Geografie
      d’Ombra, Fonèma, Veneza, 1989.       Pedaços/Pezzi,
      Etruria, Cortona, 1992. Tempo de
      doer/Tempo di soffrire, Pellicani Editore, Roma, 1998.  Poesia,
      mito e storia nel Modernismo brasiliano, Guerra Edizioni, Perugia,
      2000.    ENTREVISTA   Uma entrevista em 1997. 1.Em entrevista a 
      Raul Henriques Maimone você disse: “Penso que a poesia é uma
      atividade muito lenta, que requer decantação, reflexão. É uma viagem
      vertiginosa em vertical.” Fale-nos dessa verticalidade? Quais as marcas
      que a poesia deixa? Deixa cicatrizes ou feridas ou cicatriza as feridas?    A poesia é uma viagem em
      vertical porque o poeta trabalha com o que está em profundidade, com o
      que fica por muito tempo sendo burilado pelo sangue, pelas águas agitadas
      ou calmas da alma. Poesia não é fotografia da realidade. Poesia nasce da
      reflexão, do vivido e sofrido, do que se freqüenta com todos os
      sentidos, ou do que nos investe, nos arrasta como avalanche levando para
      dentro seus detritos. Tudo isso entra na poesia, mas entra decantado,
      digerido, assimilado. Neste sentido, acho que a poesia cicatriza as
      feridas. Eu tenho um livro novo, que será publicado este ano na Itália,
      que se chama “La guarigione”, um título que é difícil traduzir em
      português, mas que significa mais ou menos isso:  cura, cicatrização das feridas, da memória. Para mim, um
      das funções da poesia é essa, tanto para o autor quanto para o leitor.      2.O que a Itália e toda a
      sua tradição poética tem que fez você residir na Itália? Por que
      escreve em português?   A Itália tem uma grande tradição poética, a própria língua italiana nasceu da poesia. Praticamente primeiro nasceram Dante e Petrarca, que plasmaram a língua, que inventaram uma língua de poesia. Depois, em função da força, da beleza, do prestígio desta poesia é que o florentino acabou se impondo sobre as outras línguas da península, tornando-se língua oficial. É nesse sentido que eu digo que primeiro nasceu a poesia, depois todas as outras formas de comunicação nessa língua. Acho que um intelectual hoje não pode ignorar os grandes nomes da poesia e da literatura italiana. Como ignorar um Ungaretti, um Montale, um Pasolini, um Quasimodo? Ou mesmo um Sergio Corazzini, que tanto influenciou Manuel Bandeira? Ou um Giorgio Caproni, um dos maiores poetas italianos deste século? Isso sem citar os poetas do passado, que são tantos. A Itália sempre me atraiu. Comecei a estudar o italiano na Universidade, como segunda língua. Então, descobri Ungaretti e abandonei o inglês pelo italiano. Foi uma paixão. Depois obtive uma bolsa do Ministério do Exterior italiano e pude freqüentar um curso de especialização na Itália. Aí começa a minha vida neste país, pois foi aqui, em Perugia, que conheci o meu marido, que é italiano. Passei a viver aqui, nesta incrível cidade etrusca, romana, medieval, enfim moderna, e continuei estudando, freqüentei outro curso universitário e o doutoramento. Hoje ensino língua e literatura portuguesa e brasileira na Universidade de Lecce. Você me pergunta porque
      escrevo em português. Porque é a minha língua, porque eu aprendi a
      pensar e a sentir em português. E nunca mais vou perder isso, graças a
      Deus. Gosto de ter aprendido a nomear o mundo em português, que é uma língua
      onde tem tanto espaço para um relacionamento afetivo com as coisas, com a
      realidade, com as pessoas, muito mais do que o italiano. Até os verbos nós
      usamos no diminutivo, veja se é possível. O italiano é mais austero, áulico.
      Mas o italiano tem essa aura poética e também gosto que o italiano seja
      a outra língua da minha interioridade. As duas convivem, tem coisas que só
      posso dizer em português, outras que só posso dizer em italiano. Há
      palavras, expressões, sentimentos absolutamente intraduzíveis de uma língua
      para a outra. Eu hoje escrevo em português e em italiano, com prevalência
      do português para a poesia. Esse relacionamento entre as duas língua é,
      no entanto, muito complicado. Quer um exemplo? Escrevi no ano passado um
      livro inteiramente em italiano. Veio assim, de repente. Eu não sou desses
      poetas que escrevem sempre, ao contrário, escrevo pouco, passo meses sem
      escrever um poema. De repente, começo um livro e não paro enquanto o
      livro não está terminado. É o meu método de trabalho, se é que isso
      é um método. Então, brotaram um versinhos em italiano, em redondilha
      maior, que é um dos metros característicos da língua portuguesa, mas
      que não fazem parte da tradição italiana, onde o hendecassílabo é o
      verso por excelência de todos os grandes poetas do passado e até do
      presente. Pois comecei com estes versinhos e acabei tão envolvida, tomada
      por tudo o que ia saindo de dentro, pulando para o papel, um poema depois
      de outro, numa frenesi que durou uma semana. Parecia que o livro inteiro já
      estava escrito, e em italiano. Mas o interessante é que a forma escolhida
      tinha mais a ver com o português, como também o tema do livro, em que
      retomo uma experiência vivida, sentida no Brasil, ou seja um período em
      que fiz psicanálise, onde reelaborei o relacionamento com minha mãe. Eu
      dediquei este livro a ela, mas o escrevi em italiano, uma língua que ela
      não conhece. É como se, inconscientemente, eu não quisesse que ela
      lesse esses  poemas. Mas esse
      é só um exemplo da complexidade do relacionamento entre as duas línguas.
       Em maio, revolvi mandar este
      livro, que estava na gaveta, para um concurso nacional aqui na Itália, o
      “Prêmio de Poesia de Senigallia”, e acabei ficando com o primeiro prêmio.
      O livro está agora no prelo, pois este concurso prevê a publicação da
      obra vencedora.    Sobre a poesia atual: 3.Caminhando na pergunta
      alheia, a poesia estaria caminhando para a mudez?   Não acho. Os poetas têm
      tanto a dizer. Caminhamos é para a surdez completa da sociedade, que não
      dá mais nenhum valor para a poesia, que não quer pensar, que tem medo de
      olhar para dentro das coisas e de si mesma. Mas eu não acho que os poetas
      vão parar de escrever por isso. Tantos poetas foram totalmente ignorados,
      outros ridicularizados. Ontem estava lendo uns poemas de Cesário Verde,
      esse grande poeta português que morreu desconhecido e praticamente inédito.
      Ele publicou vários textos nos jornais da época, mais ninguém deu
      importância, ao contrário, ele foi contestado pelos críticos de então,
      que não compreenderam a novidade da sua belíssima poesia. Ele vivia tão
      frustrado, coitado, que dizia que não iria mais escrever, que abandonaria
      para sempre a literatura. Mas nunca a abandonou e escreveu até o fim. Graças
      a isso nós hoje podemos nos enriquecer com o que ele deixou, aquelas
      palavras onde a vida escorre em jorros, onde mais de cem anos depois nós
      ainda nos podemos reconhecer, como se ele tivesse escrito para nós, também
      para os homens e mulheres de hoje e de sempre.   4.A poesia hoje se divide em
      quem faz os poemas com mais e quem faz os poemas com menos palavras?   Não, se divide em quem faz
      os poemas com palavras vazias e quem o faz com palavras densas, pesadas de
      vida, com palavras que arrastam pele, carne, sangue das coisas para dentro
      do poema. Entre poesia leve e poesia pesada. Se existisse uma balança
      abstrata que pesasse a poesia, descobriríamos um poema verdadeiro. Quanto
      pesam os breves poemas de José Paulo Paes ou do Leminski? Algumas
      toneladas. Porque eles puseram tanta vida ali dentro que cada palavra
      palpita, respira, escorrega da página para a alma da gente, raspando por
      onde passa.    5.“Estou de novo vivendo
      uma grande inquietação, uma busca de contato com o que existe de intenso
      e verdadeiro, concomitante ao impulso sempre mais forte de refletir sobre
      a história, destrinçar seus fios, de virar do avesso sistemas, leis,
      ideologias que marcam de violência nossa existência.” A necessidade de
      novos paradigmas poéticos morreu com a pós-modernidade? Gerald Thomas
      diz que estamos vivendo uma nova renascença. Concorda? Precisamos de
      vanguarda?   Não sei se precisamos de
      vanguarda e espero que estejamos vivendo uma nova renascença, no sentido
      de uma revitalização da poesia, da compreensão da sua importância, do
      seu valor cognoscitivo na história. Como dizia Pound, os poetas são as
      antenas da sociedade, porque captam transformações, tendências,
      denunciam perigos, alertam. Quanto mais a sociedade marginaliza a poesia,
      mais precisa dela. Marginaliza porque não quer pôr em discussão a sua
      organização injusta, as suas leis rígidas e mecânicas, onde só a
      economia, o mercado contam e decidem os parâmetros e as possibilidades de
      vida de milhões de pessoas. Você já viu algum economista que é poeta?
      Eu até gostaria de conhecer um.   6.Há uma crise de crítica
      no Brasil. Os críticos só chovem no molhado. Só há trabalhos e teses
      universitárias sobre Guimarães Rosa, Cabral, Machado, Drummond. O que
      devemos falar sobre as gerações mais atuais?   Concordo que não existe crítica
      no Brasil, ou não existe sobre as últimas gerações. Você publica um
      livro, e ninguém comenta, dificilmente sai uma resenha, e se sai, não é
      em jornal de grande difusão, mas em jornais ou revistas marginais em relação
      ao sistema. Ninguém arrisca. Como os jovens podem aprender desta forma?
      Também não adianta mandar os livros para os jornais, para os críticos,
      pois a maior parte parece não tomar conhecimento. Olha, escrever uma tese
      sobre um autor ainda não estudado é um grande risco, os próprios alunos
      recusam este tipo de trabalho. Sei por experiência própria, com os meus
      alunos. Mas eu digo: é um desafio, vocês vão abrir caminho, vão propor
      algo de novo. Parece que as pessoas tem medo do que é novo... Eu fico pensando no que teria
      sido de Drummond sem os conselhos, o apoio de Mário de Andrade, que já
      era um poeta e um crítico famoso, naquela época. Hoje essa generosidade,
      essa camaradagem não existe mais, é cada um por si. Um poeta
      extremamente generoso era o José Paulo Paes, do qual sinto imensa falta.
      Mas ele não era só poeta, era antes de tudo um homem, uma pessoa de
      grande humanidade.    7.Qual a imagem literária o
      Brasil tem na Itália, com perdão da cacofonia?    Literariamente o Brasil é
      muito pouco conhecido aqui. Só se estuda a nossa literatura nos cursos de
      línguas estrangeiras e, mesmo assim, no âmbito das literaturas lusófonas,
      onde a literatura portuguesa tem a prioridade, também porque estamos na
      Europa e Portugal é um país europeu. Os leitores mais curiosos
      conhecem Jorge Amado e Paulo Coelho. Raros os que conhecem Guimarães
      Rosa, que entretanto tem quase toda a obra traduzida para o italiano, aliás
      em tradução excelente. Entre os poetas, alguns conhecem Vinícius de
      Moraes (mais pelas músicas que pela poesia), alguns conhecem Drummond.  O Brasil é mais conhecido
      pelos seus aspectos considerados exóticos (carnaval, futebol, samba,
      praias, belas mulatas). A maior parte das pessoas fica nisso, nesta imagem
      estereotipada. Eu, aliás, provoco muito os meus alunos do curso de História
      da Cultura Brasileira. Desmonto com eles esses lugares comuns, aos
      pouquinhos, através do estudo da nossa cultura, da nossa história, da
      nossa literatura, vou demolindo essa construção ideológica e eles vão
      descobrindo o Brasil como realmente é, com todos os defeitos e
      qualidades. E eles se entusiasmam, querem ir à fundo, perguntam,
      pesquisam. É gratificante seguir este processo.      Sobre poemas: 8.“Sou poeta da cidade
      magra/da cidade que não/caminha.” Sócrates caminhava. No filme Paris
      Texas o protagonista anda e anda. O que é o andar? A intelectualidade
      cria andando? Uma cidade que não caminha é uma cidade que não progride?   Não é preciso andar para
      progredir. A poesia, por exemplo, não é progresso. Tem tanta coisa que não
      é progresso e nem por isso é negativo, muito pelo contrário. A
      verticalidade é progresso? No entanto, é o processo fundamental do
      pensamento, da criação artística e literária. Esse “caminhar” do
      poema que você cita é um andar de outra forma, aliás, é uma falta de
      andar para o essencial, para onde está a raiz das coisas, o cerne do
      tempo e da memória, o osso da consciência. Assim eu sentia a cidade em
      que cresci, sem essa profundidade. Por isso tinha uma raiva surda de tudo
      o que ficava à tona, que boiava na superfície anônima das ruas e praças,
      onde eu cavoucava sempre e por toda parte com meus sentido, meus olhos,
      minha consciência, em busca das convulsões subterrâneas, ou
      simplesmente do fluxo misterioso de vida que passava dentro das pessoas.   9.“Invento olhos e palavras
      / dentro de mim as coisas não sobrevivem.” A metalinguagem é o futuro
      da poesia? Qual terreno inóspito é sua profundidade?   Não acho que esse seja o
      futuro da poesia. Olhar para o próprio umbigo não pode ser o futuro de
      nada. Aliás, eu acho que a poesia hoje já superou isso, basta ver o
      movimento internacional da poesia, a volta ao lirismo, aos sentimentos,
      quase um “neo-romantismo”, que não renega nenhuma das conquistas do século
      XX, mas que as supera. Veja no Brasil, veja em Portugal, veja na Itália
      as novas tendências, se não são de superação da metalinguagem. E
      ainda bem. Não se suportava mais a aridez do poeta falando da poesia.
      Enunciar a própria poética, relevar de vez em quando ao leitor alguns
      dos segredos do próprio laboratório não é metalingagem, mas
      honestidade para com o leitor. Mas ficar o tempo todo naquilo, andando em
      volta das mesmas coisas, acho uma grande chatice e amolação.   10.Num poema você nos diz:
      “tenho tantos pedaços/que sou quase infinita.” Esta infinidade é
      positiva? É um dever devir?   Positiva não é, mas faz
      parte da nossa realidade. Quando escrevi esse poema citado por você,
      tinha nitidamente a consciência desta fragmentação. No meu caso, também
      ligada à minha biografia, ao meu lacerar-se entre duas culturas, duas línguas.
      Mas o nosso tempo é assim, a nossa realidade é extremamente fragmentada
      e fragmentária. Está ficando cada vez mais difícil reunir os pedacinhos
      do que somos, dos tantos que somos, um em casa, outro na rua, outro no
      trabalho, outro diante do espelho e assim por diante. E temos tantos
      desejos e sonhos desencontrados, tantos impulsos que nos conduzem a metas
      opostas. Neste meu poema, eu olho para tudo isso com ironia, que é, às
      vezes, o único modo de superar circunstâncias ou situações que nos
      parecem dramáticas sem cair no trágico.    11.Kafka e a maioria dos
      escritores tinha uma relação conflituosa com a figura paterna. “os
      filhos dos filhos/estão decidindo se viverás ou não/para concebê-los.”
      Freud explica?   Não tem uma teoria válida
      para todos, cada um tem um tipo de relacionamento com o pai, que pode ser
      maravilhoso ou traumático. E se foi traumático, marca para sempre, não
      tem Freud que explique, não tem terapia que cure. Parece que cura, ma um
      dia, de repente, vai lá, acontece alguma coisa, e a memória retira de
      novo alguma ferida escondida, ou você sente que dói alguma cicatriz.
      Tudo depende da ferida. E da cicatriz. Tem escritor que fica a vida
      inteira elaborando, montando e desmontando aquela dor longínqua que o
      impede de ser feliz. Mas tem outros que nem tocam este aspecto e é claro
      que não podemos generalizar.   12.Sobre Miro você nos diz
      que “e o olho absorto de Deus/se distrai da nova gênese.” O poeta é
      hoje um indivíduo capaz de teorizar sobre uma gama enorme de assuntos?
      Recentemente Décio Pignatari disse que Drummond não era um gênio e nem
      um grande intelectual. O que é necessário para ser poeta?    Não sei, até hoje ainda
      estou querendo saber. Fico perscrutando dentro de mim para colher o
      momento da poesia, e nunca é quando espero. Para Cabral a poesia é
      construção, junção de um tijolinho sobre o outro, ordenadamente,
      matematicamente quase. Acho que Bandeira era mais honesto, quando dizia
      que não sabia de onde vinha a poesia, mas que ele a aceitava,
      humildemente, de onde quer que fosse que essa jorrasse. Eu também penso
      assim. Basta que jorre de vez em quando, que nos dê essa sensação
      maravilhosa de ter posto, por um breve instante, as mãos nesse fio
      misterioso e subterrâneo que escorre, como a eletricidade, e que é a
      vida.      Sobre internet: 13.Qual uso faz da internet?   Uso o correio eletrônico,
      tenho muito amigos, em várias partes do mundo que conheço só através
      da internet. E com alguns troco correspondência diária. Acho isso
      maravilhoso.   14.Como os meios de comunicação,
      falo da televisão, influenciam a população italiana?    Influenciam muito, como no
      Brasil, aliás. Lê-se muito pouco na Itália, infelizmente. É um dos países
      europeus em que se lê menos. Então, é natural que a televisão ocupe
      todo este espaço. E é uma televisão muito ruim, vulgar como a do
      Brasil. Salvam-se alguns bons programas culturais.    15.Fale sobre a sua página.    A página foi elaborada pelo meu marido, pois eu não teria
      competência para tanto. Ele, ao contrário, é informático, formado pela
      Universidade de Pisa, uma das melhores neste campo na Itália. A nossa página
      foi construída como um nosso cartão de visita. De fato, tem essa
      característica de unir informática e poesia, quando todo mundo pensa que
      estas duas realidades tenham de estar separadas. Mas na nossa página estão
      juntas, cada uma com seu espaço, sua importância e dimensão, uma sem
      sufocar a outra. Pelo menos é o que eu acho. Muitas pessoas me escreveram
      dizendo que acharam original esta união inusitada.   16.Qual a importância de ter
      um site literário?   Ainda não sei bem. Em
      teoria, muita gente interessante poderia visitá-lo, e isto ocorre tantas
      vezes, mas acontece também que passa por ali também gente chatíssima,
      que aproveita para ficar enviando mensagens publicitárias, gente que usa
      seu endereço só para isso. É o mundo da Internet. Tem de tudo, trigo e
      joio.     Internas: 17.Tem algum mote?   Não tenho mote, mas tento
      viver todos os minutos da minha vida da forma mais intensa possível,
      sempre presente com todos os sentidos, não fugindo nem da dor, por maior
      que seja, nem da alegria, por mais transitória que possa ser. E
      observando, assimilando antropofagicamente, come diria Oswald de Andrade.
      Eu, aliás, admiro muito este poeta, porque ele vivia com todas as antenas
      sempre prontas a captar o real, a vida, com tudo o que ela contém de belo
      e de trágico.    18.Qual o papel do escritor
      na sociedade?   O papel é ético, é o de
      escrever com a maior honestidade e humildade possíveis. E é também o da
      resistência, hoje, contra a desumanização, a despersonalização, a
      fragmentação da realidade. Sei que é uma grande responsabilidade, uma
      utopia, mas cada um faz o seu pouco, cuida do seu pedacinho de jardim, que
      para algo deve servir. Parece que não serve, mas serve. A arte existe
      para isso e sem ela perderíamos o sentido das coisas, a beleza e a
      intensidade dos momentos vividos, a riqueza de cada instante de amor ou
      mesmo de sofrimento, a consciência da nossa fragilidade, da nossa
      sensibilidade.   Poemas de Vera Lúcia de Oliveira   Do
      livro Geografie d’Ombra, Fonèma,
      Veneza, 1989.         Sou
      poeta da cidade magra da
      cidade que não  caminha sou
      dessa planicidade sou
      da violência das vidas poeta
      da cidade que afunda casas e
      pessoas sou
      da puta da cidade que só tem superfície   amanheço
      todo dia nua e estreita como
      uma rua de comércio Profano
      as coisas     Profano
      as coisas por amor crio
      rachaduras invento
      olhos e palavras dentro
      de mim as coisas não sobrevivem grudam
      desesperadas no muro e
      rudes no
      tempo rabiscam
      formas de
      lucidez                             
      Para Gladys   Não
      é no mar que deponho as redes não
      é âncora o
      maciço do mar o
      mar não projeta o gesso das urnas o
      mar rasga as cicatrizes   
      corrói as agulhas   Não
      conhece demora o mar   Não
      foi olhando o mar que aprendi a retalhar as palavras no
      silêncio pesado da casa cavoucando
      na cidade as
      doenças do charco sonhando
      cemitérios menores para sofrear a evasão das
      coisas               
      da seiva   Buracos
      que as goteiras afundavam e
      o chão acalentava como uma coisa que se deve inchar que
      deve por destino absorver o brejo   Por
      isso estou diante do mar como quem tem medo como
      quem engole com pressa os remendos as
      pedras os
      estiletes que o mar no seu movimento corrói     Estou
      estilhaçada silêncios
      saem da boca mansos estava
      desenhando  palavras perdi
      o jeito de amanhecer   tenho
      tantos pedaços  que
      sou quase infinita Do livro Pedaços/Pezzi,
      Etruria, Cortona, 1992.       O
      direito ao esquerdo     até
      prova contrária não
      amassem o corpo de pegadas não
      agucem a espera da morte não
      contaminem a propensão à luz não
      passem rolo compressor nas
      palavras da alma não
      decretem que não existe até
      prova contrária o
      direito ao esquerdo O
      filho     o
      filho do teu filho vai
      condecorar o peito de
      um assassino ou
      fuzilar o pai   o
      filho do teu irmão vai
      derrubar florestas decretar
      a lei marcial arrastar
      a mãe na prisão   os
      filhos dos filhos estão
      decidindo se viverás ou não para
      concebê-los Canção
      de exílio às avessas     cidade
      antiga  cansaço
      pulsa e corta o tempo presente   chão
      arado pelas guerras consumido
      pelas horas produz
      e expande erva daninha na fecundidade       
      mutilada   caminho
      outro país olho
      outros rostos sinto
      outras raivas   apodrecer
      em outro país é
      uma dor que não satisfaz nunca  Misticismo     sou
      medieval e escura por
      isso prefiro a tarde    meu
      misticismo não se sacia com as imagens de Giotto diante
      de todas as portas fico lucidando olhos às
      vezes desejo ser cega para penetrar melhor tudo   o
      que é frágil quebro
      dentro de mim o
      que é duro afago aperto
      contra o peito alcanço
      com a raiva que grudo nas horas  sorvendo
      as indagações que asfixiam     meu
      dedo viola coisas desta
      cidade com úlcera o
      calor das tábuas o
      sol estende parreiras verdes no
      olho das janelas altas    a
      alma violentada é uma perfuratriz disseca
      coisas na tarde nua inventa
      a morbidez de rachar nos muros as
      palavras    o
      sol ilumina a vida em silêncio a
      casa lúcida dentro
      de mim as coisas perfuradas        
      olham a noite        
      (do avesso)        
      e se afogam        
      apertadas  Do
      livro Tempo de doer/Tempo di soffrire, Pellicani Editore, Roma, 1998.     Canções     canções    
      perfumes  
      gemidos que
      o vento incrusta nas
      ruas em
      dias triviais     rondam enrouquecidos  
      loucos     chamam
      nossa alma O
      vento na árvore é Deus     o
      vento na árvore é Deus que
      sopra onde rasga Deus
      escolhe a rocha onde
      pousar seu rastro de árvore e
      a unha-fome de tirar da
      pedra veia
      de pedra que se fia em
      planta provisória     Deus
      escolhe para
      cada raiz a roca para
      cada galho seu precipício para
      cada fome sua forma de filtrar o
      máximo   
      da consunção Vezes     vezes
      da ave que
      sonha a árvore por
      transportar nas raízes não a inconsciência vezes
      que voa a árvore sonho
      de ave por
      desconhecer que a asa nela
      não começa     ave
      asa! os
      que vão partir saúdam a imobilidade os
      que não vão partir pregustam o medo O
      olho     quem
      está oculto para
      o olho? o
      que mais caminha fustiga o
      que mais espera e
      urde emboscada é
      o olho corda
      da nossa alma prego
      da nossa porta     tudo
      já entra rasgado     o
      olho cobiça fendas sabe
      o barulhinho que
      faz a luz quando derrete
      a pupila A
      história     o
      corpo de um torturado escava
      através dos séculos sua
      intensidade de dor e morte     mas
      Deus, para quem não existe a história como
      atura o horror  desse
      instante onde
      só o que muda é a boca que
      grita?     está
      chovendo     
      chovendo     nasceu
      o mundo esta
      manhã doloroso
      em seu  inverno o
      mundo depois da criação do castigo do
      abandono de Deus e
      sua ira de morte  em
      nosso ventre     somos
      como Eva depois do
      fruto diante
      de Deus esperando
      a hora de poder gemer Cortes     a
      árvore genealógica destes cortes testemunha
      que o amor sem
      um mínimo de
      aniquilamento não
      existe Rodas     minha
      infância era cheia de trens também
      minha adolescência se
      encheu de rodas     de
      manhã acordo aprendo: vida
      está é     paralisia
      é o nome mais doloroso que tem a morte Quando
      eu morrer     quando
      eu morrer trucidem
      a dor libertem
      o corpo da
      dor     que
      a alma não carregue fragilidades     
      (vozes doídas ao vento       
      propensão a cortes)     que
      não evoque sombras seja
      nada ou não     possa
      olhar a tarde  adoecer
       sem
      cobrir o rosto    
      sem susto    
      terror  Andorinhas     estou
      de bem com o mundo até um
      tanque de guerra se cansa da
      guerra até um pássaro pára para repousar     e
      depois o céu hoje é de um azul
      que faz mal aos olhos agudo
      que a gente fica ali barriga
      pro ar admirando
      as andorinhas   
      que volteiam matutando
      no que pensam lá no alto no
      que sabem se
      sabem que estou de bem com o mundo que
      volteiam lá em cima também para mim Gênese
      de Miró     para
      Miró o
      mundo voltou a ser menino com
      suas linhas e formas primordiais menino-pássaro menino-lua e
      o olho absorto de Deus se
      distrai da nova gênese     no
      húmus da tela o
      sopro dos
      primeiros traços separa
      as cores do
      caos   
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