Bairro
do Ilhéu
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Centro de
Câmara de Lobos, com ilhéu despovoado (finais do século XIX)
(Foto: Museu Photographia
Vicentes) |
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Centro de
Câmara de Lobos (1º quartel do século XX)
(Foto: Museu Photographia
Vicentes) |
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Pormenor do
Ilhéu, no espaço onde mais tarde, em 1945, seria construído o
bairro dos pescadores
(Foto: Museu Photographia
Vicentes) |
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Aspecto do
Bairro do Ilhéu ou dos pescadores (1946)
(Foto: Museu Photographia
Vicentes) |
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Centro de
Câmara de Lobos, vendo-se o bairro do Ilhéu construído no ano
anterior (1946)
(Foto: Museu Photographia
Vicentes) |
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Centro de
Câmara de Lobos e bairro do Ilhéu (foto anterior a 1967)
(Foto: Museu Photographia
Vicentes) |
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Centro de
Câmara de Lobos e bairro do Ilhéu (1970) |
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Centro de
Câmara de Lobos e bairro do Ilhéu (Junho de 2004) |
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Demolição
do Bairro do Ilhéu (23 de Junho de 2004) |
Denominação dada ao
bairro construído pela Câmara Municipal de Câmara de Lobos, no sítio
do Ilhéu, na cidade de Câmara de Lobos, inaugurado no dia 2 de
Dezembro de 1945 e demolido no dia 22 de Junho de 2004.
O
ilhéu era a zona onde, por excelência vivia a classe piscatória
e onde, a pobreza, a fome, a mendicidade, o alcoolismo, a falta de
higiene das habitações, a promiscuidade, a imundice das suas
ruelas atingiam níveis sub-humanos, sendo tal situação
frequentemente denunciada, sem que obtivesse da parte dos responsáveis
políticos qualquer solução, que não o incentivo ou o culto da
caridade, quer através de peditórios, quer através da distribuição
de sopas aos pobres, quer ainda através da realização de festas
ou quermesses destinadas a angariar fundos, e que atingiam o seu
auge por ocasiões de calamidades e que não eram mais do que gotas
de água que aqui e ali faziam esquecer a fome e a miséria de uma
família, por um ou dois dias, uma vez consumida ou esgotada a
esmola.
Eduardo
Antonino Pestana, advogado, escritor e professor, natural de Câmara
de Lobos num artigo publicado no Diário de Notícias de 23 e 28 de
Março de 1920, escreve
a dado passo, a propósito da sua terra: Todos
sabem que essa freguesia está em condições especialíssimas de merecer
a atenção dos que se preocupam com as coisas sociais e têm uma
sensibilidade elementarmente acessível ao condoimento das desgraças
humanas. Estou convicto de que poucos lugares haverá no mundo inteiro
onde a miséria moral se alia tão intimamente à nudez e à fome.
Restrinjo-me
particularmente ao bairro conhecido por Ilhéu. A sua população é
maior que a de qualquer das muitas freguesias desta ilha. Ali grassa
a prostituição aterradoramente: é sabido que há muitas mães
que vendem a honra das suas filhas - crianças ainda - por uma
garrafa de aguardente.
A
promiscuidade chega ao ponto culminante de, num mesmo quarto, sem a
mais ligeira separação, dormirem dois e três casais.
São
antros infectos onde nunca entrou nem ar, nem água, nem luz, nem a
religião, nem a inteligência compadecida de quem queira
bem-fazer. Afora dos seus moradores só entram lá dentro, nas
madrugadas frias, os viciosos da vida que vão ocupar o lugar dos
miseráveis pescadores que, a essa hora de infortúnio máximo, vão
jogar a sua vida ao acaso das marés, no encalço dum ganho precário
que eles mesmos diluem no líquido venenoso que os embebeda,
durante dois ou três dias seguidos.
[...]
De quando em quando há um ou outro que se lembra de morrer e legar
aos pobres desta miserável freguesia umas centenas de escudos ou
mesmo alguns milhares. Subtraindo o que a poeira da estrada some e
nunca mais ninguém vê, aquela gente vai receber o seu quinhão;
uns mais, outros menos, no meio de uma algazarra e uma briga
degradantes que só encontram símile nessa cena tão poética e bem
mais simpática de quando [...]
jogamos uma mão cheia de grão às pombas do nosso pombal.
O
dinheiro distribui-se. E a miséria cavou mais um degrau: as
vendas despejaram mais um stock de aguardente; mas a honra, a fome e
a nudez continuam de todo desprotegidas!
Outros
mais prevenidos, especificam os seus legados em coisas úteis: em
comer e em roupamentos.
O
quinhão é recebido com a mesma sofreguidão: mas a honra, a fome e
a nudez continuam a ser desprotegidas pela mesma ausência de bem e
de socorro. Os comestíveis foram devorados desordenadamente e
as roupas foram trocadas, a um câmbio de usura pelo mesmo veneno
liquido que vem desvirilizando as gerações desta ilha, pagando
um tributo assustador aos asilos e aos manicómios [...].
Eduardo
Antonino Pestana escreveu este artigo numa ocasião particularmente
difícil para a população camaralobense, uma vez que na sequência
de um temporal mais um naufrágio de pescadores havia ocorrido e,
como de costume se iniciara uma campanha de angariação de donativos
para as suas vítimas. Contudo, mesmo correndo o risco de ser mal
entendido, não deixou, numa análise profunda da situação, de
exprimir a sua opinião relativamente à forma como, de uma vez por
todas, deveria ser resolvido o problema da miséria em Câmara de
Lobos.
A
propósito da subscrição que se estava a fazer e que, ao que
parece estava a encontrar grande eco junto da população
citadina, Eduardo Antonino Pestana neste seu artigo escreve: É
visível que as vítimas do temporal se concentram naquela desgraçada
povoação marítima, hoje enlutada pelo desaparecimento de algumas
dezenas dos seus mais destemidos marinheiros.
Porque
não se aproveitará a felicidade, o êxito da subscrição para
fazer-se em sua memória, como perpetuação do nome querido dos
mortos, uma obra de caridade, grande e perdurável: um asilo-escola
ou uma escola-oficina [...].
Só
uma campanha de saneamento moral e cívico pode iniciar com êxito a
transformação do estado de selvagismo e barbari em que se
encontra e vive parte da população camaralobense. [...]. Nas condições presentes, essa campanha de saneamento teria a mais
inteligente concretização na criação de uma escola-oficina ou
de uma escola asilo, destinadas: a primeira a tornar capazes para
a vida e úteis para a sociedade uma multidão masculina que
cresce e se desenvolve no meio hipervicioso em que nasceu; a
segunda, a vales às crianças vítimas das numerosos camadas do
alcoolismo da sua numerosa ascendência, que são uma percentagem
de 70% no total da população infantil [...].
A
célula seminal duma regeneração social é a salvação da infância:
é a árdua obra da educação das inteligências, dos corações e
dos braços [...].
A
escola só, onde a par das 25 letras do alfabeto, se ensinasse a
obedecer e a trabalhar, a reconhecer todos os princípios da
hierarquia social e a contrair hábitos de sacrifício e de esforço,
só essa escola poderá ser a primeira base de uma reedificação
social.
Tudo
o mais é edificar sobre a areia, é construir sem ter encontrado os
alicerces.
Antonino
Pestana, consciente de que a suas ideias não iriam ser partilhadas
por quem estava dirigindo a aplicação da subscrição, ainda lança
para o ar, sem sucesso, a hipótese dos donativos dados poderem
ser utilizados na construção de um pequeno bairro embrionário,
onde os familiares das vítimas tivessem um cubículo certo onde
podes sem passar os restantes dias da sua desconsolação e
amargura, apesar de considerar que comparado com a necessidade da
educação, a construção desse bairro fosse secundária.
Efectivamente
Antonino Pestana tinha razão e veremos que mais tarde, em 1965 e em
1990, dois programas, de filosofia semelhante serão implementados e
que mais não propõem do que uma reeducação da sua população,
dos seus hábitos, como forma de combater a pobreza.
Antes
de Antonino Pestana, em 1913, o Diário da Madeira faz uma intensa
denuncia da situação em que vivia a população do ilhéu e faz
mesmo propostas concretas. Na sua edição do dia 25 de Abril desse
ano, na sua missão de olhar de perto as tristes condições da vila
e particularmente das classes desfavorecidas, que se aglomeravam
em ruas imundas e infectas, em habitações carecidas de ar e água,
desconhecidas dos mais rudimentares elementos de higiene,
exterioriza publicamente a voz de muita gente anónima e defende a
construção de um bairro para pescadores. Em associação com a
construção deste bairro, também defende a construção de um
hospital para pobres, a fim de que não morressem de fome e ao
abandono.
Naturalmente
que esta situação também preocupava a Câmara Municipal. Contudo,
os seus responsáveis eram impotentes para realizar qualquer obra,
dada a escassez de meios, impondo-se por isso intervenções
exteriores a ela. Disso mesmo dá conta, em 1913, Luís Soares de
Sousa Júnior, na altura presidente da Câmara quando confrontado
com a ideia da construção de um bairro para pescadores. Apesar de
tal ideia preocupar a Câmara, propondo mesmo a construção do
bairro não no Ilhéu mas na Trincheira, o facto é que a Câmara não
dispunha de dinheiro. Aliás na Trincheira, a Câmara liderada por
Luís Soares de Sousa Júnior, gostaria de ver também construída
a praça do peixe, o matadouro e um cais para serviço dos moradores
do bairro, cais esse
que na altura, segundo o Diário
da Madeira de 30 de Abril de 1913 era tido como de grande
necessidade propondo-se a sua construção no braço de rocha que
formava a baía de Câmara de Lobos.
Numa
entrevista publicada no Diário
da Madeira de 7 de Setembro de 1930, José de Barros Júnior,
ainda que defenda o saneamento do bairro piscatório, ou seja do
Ilhéu, através da construção de um novo bairro no sítio do
Pastel, sobranceiro à Ribeira dos Socorridos, volta também a
referir os deficientes recursos da autarquia.
Em
1937, contudo, a construção de um bairro para pescadores no Ilhéu,
ganhou forma através de uma deliberação camarária feita nesse
sentido [1].
Era
o culminar de vários esforços implementados pelos responsáveis
autárquicos locais e que se arrastavam havia décadas.
Para o efeito, o Governo, por influência do Governador Civil
do Distrito, do presidente da Junta Geral e do Capitão do Porto do
Funchal, havia concedido uma verba de 300 contos destinada à aquisição
de uma parcela de terreno e à sua construção [2].
Para
além da aquisição deste terreno, a Câmara Municipal de Câmara
de Lobos haveria ainda de pedir ao Ministério das Finanças, a cedência
gratuita de um outro terreno anexo, onde antes tinha estado
instalado o prédio militar nº 39, mais conhecido por forte de São
Sebastião.
Em
Novembro de 1937, na sequência de um pedido formulado pela Câmara
Municipal de Câmara de Lobos, o Ministério das Obras Públicas e
Comunicações elabora e envia-lhe um esboço do bairro a construir
no Ilhéu [3].
Posteriormente,
contudo, o processo de construção do bairro terá sofrido um revés,
uma vez que, três anos depois, em Março de 1940, ainda encontramos
a Câmara Municipal de Câmara de Lobos a pedir ao Ministério das
Finanças a cedência gratuita do antigo forte de São Sebastião,
contíguo ao terreno já adquirido para a construção do bairro
piscatório [4]
e, a 5 de Abril o mesmo ano, a solicitar a intervenção do
Governador Civil junto do Ministério das Obras Públicas e
Comunicações para que a construção do bairro piscatório ainda
tivesse o seu início no decurso desse ano [5].
Relativamente
a este pedido de intervenção, é provável que não tivesse tido
qualquer seguimento ou efeito, uma vez que, na sua sessão do dia 11
de Abril de 1940, a Câmara Municipal de Câmara de Lobos é
confrontada com um ofício proveniente do Ministério das Obras Públicas,
a se inteirar se esta podia ou não contar, dentro do ano de 1940,
altura em que estavam a decorrer as Comemorações Centenárias, com
a comparticipação do Estado para as obras do bairro piscatório do
Ilhéu, a fim de que se pudessem iniciar às formalidades para a
concessão do empréstimo necessário [6].
Em
relação ao pedido de cedência gratuita do prédio militar nº 39,
este viria, em Maio de 1940, a merecer parecer favorável [7].
Contudo, a formalização desta transferência só viria a acontecer
no ano seguinte, mais precisamente no dia 12 de Abril de 1941 [8],
tendo a Fazenda Pública arbitrado a importância de 3 mil escudos
como compensação por esta cedência
[9],
[10].
Apesar
de quase ter arrancado em 1940, a construção do bairro do Ilhéu
sofre novo revés, para ganhar novo impulso, três anos mais tarde,
em 1943. Com efeito, em finais de Maio, princípios de Junho deste
ano, o governo haveria de deferir um pedido de empréstimo de 1000
contos solicitado pela Câmara, para obras de vulto, nomeadamente
para a construção de um bairro piscatório; para o lançamento de
uma rede de esgotos na vila; para
a construção da praça, do matadouro e do mercado e ainda para o
alargamento e prolongamento das estrada dos Quintais [11].
Na
posse deste empréstimo, a Câmara Municipal haveria de no dia
16 de Junho de 1943, colocar em concurso a arrematação das obras
de construção do bairro piscatório do Ilhéu, com uma base de
licitação de 412.903$00.
Em
meados de Outubro desse ano, a imprensa noticiava que a construção
do bairro do Ilhéu já se havia iniciado [12].
Ainda
que inicialmente a data da inauguração do bairro tivesse sido
programada para o dia 28 de Maio de 1945 [13],
esta só teria lugar a 2 de Dezembro de 1945. Com efeito, na sessão
de 21 de Novembro de 1945, tendo a Câmara tomado conhecimento de
que se encontravam concluídas as obras do bairro piscatório do Ilhéu
deliberou que a sua inauguração se realizasse no dia 2 de Dezembro
seguinte e que fossem para o acto convidadas as autoridades civis,
militares e eclesiásticas do Distrito, bem como os munícipes em
evidência no concelho e o povo em geral.
Na
mesma sessão camarária deliberou fixar as rendas das casas de tipo
B em trinta escudos mensais e as de tipo A em quarenta escudos, bem
como efectuar a sua distribuição pelas pessoas.
Durante
a cerimónia da sua inauguração, o então Governador Civil faria
referência a outros importantes obras previstas para breve,
nomeadamente o abastecimento de água à vila; a construção de
esgotos e no prazo de 4 meses, a abertura das fundações, no sítio
do Pastel, para o novo
bairro, a inaugurar no ano seguinte.
Na
altura da construção do bairro do Ilhéu a Casa dos Pescadores terá
tentado instalar uma escola [14],
pretensão que, entretanto, na altura, não se viria a concretizar.
Ao longo de quase
sessenta anos serviu este bairro serviria para alojar uma população
que se multiplicaria quase que exponencialmente, com a consequente
criação de graves problemas sociais, onde, não raramente, pais, irmãos e
netos partilhavam o mesmo quarto.
No dia 22 de Junho de 2004, com o
início da sua demolição, é dada a sentença de morte a este
bairro. No espaço deixado livre surgirá um jardim e de uma
infra-estrutura cultural. Os seus ocupantes, agora reduzidos para 60
famílias, em consequência de anteriores transferências para outros
complexos habitacionais, seriam realojados no complexo habitacional
Nova Cidade, situado no lugar da Fonte da Rocha e inaugurado no dia 1
de Maio de 2004.
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