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Na verdade, um seu ascendente, João Afonso, que se
fixara na Madeira cerca de 1466, casado com Inês
Lopes, fora apenas um mero mercador e grosso produtor
de açúcar que fez fortuna na Ilha, e jamais um dos
«companheiros nobres» de João Gonçalves Zarco, na
empresa do povoamento insular, como o genealogista
(Henrique Henriques de Noronha) pomposamente pretendeu
fazer crer.
Sobre semelhantes dissimulações,
vejamos alguns trechos de uma carta, particularmente
demolidora, que o vigário da Fajã da Ovelha, Manuel
Sulpício Pimentel da Area, natural do Funchal,
escreveu em 1765 ao seu irmão, o Dr. António Xavier
Pimentel, amigo de António João Correia Brandão
Henriques, bisneto de Henrique Henriques de Noronha,
acerca das eleições, supostamente fraudulentas, da
mesa da Misericórdia do Funchal, para a qual havia
sido eleito, entre outros, o referido António João.
Pimentel adverte o irmão de que, em
criança, mantivera «algumas conversas» com
Pedro de Carvalho Valdavesso e o seu filho, ambos
Juízes dos Órfãos, e principalmente com um velho
clérigo «que era a Tourre do Tombo das geraçoens da
Ilha», factor que lhe permitiu colher diversas
informações genealógicas. Conservava na sua posse
«papeis de grande credito coroburando com provas
autenticas e dignas de toda a fé» os dados que
havia investigado, «pela
corozidade que sabeis tenho de indagar antiguidades»
[1].
Por essa razão, e referindo-se a
António João Correia, que manifestamente detestava,
interrogava o clérigo: «não sabe este vil que he
decendente de Ines Lopes natural de Lisboa mulher vil
e nutada, e que por esta e outra, cujo nome não
refiro, (...) forão sempre notados os seus
antepassados (...) e chigou a tal extremo a
publiçidade desta nota, de que ainda não estão livres
(...) porque erão tidos e avidos por christoens
novos»? E, incisivo, tornou a questionar:
«Não sabe que por parte dos Henriques e
Noronhas he decendente de huma negra»?
Na sua
missiva, o clérigo não poupa o genealogista: «Não
sabe que seu malvado vizavôu Henriques Henriques, para
ofuscar as nottas que padeçia no sangue e na
qualidade, destruio e aniquilou com agua forte dois
livros, hum de Cazados, outro de Baptizados da
freguezia da Sé, depois do que fingio justeficaçoens
e brazoens perfumando-os com fumo de tabaco, para lhe
dar cor de antiguidade, as introduzio nos Cartorios
desta cidade, para ao depois tirar por certidão,
emnobrecendo desta sorte e falçamente aos seus
avoengos; e o que mais he, ocultado os estrumentos que
(...) lhe fiarão os que erão asnos, para
infamar todas as mais familias e para elle so poder
lustrar»?
[2].
Perante
tamanha acusação, apenas podemos assegurar de que,
efectivamente, um dos livros de casamentos da Sé
encontrava-se em tão mau estado que foi necessário
copiá-lo em 1731, não obstante muitos termos se
acharem já então ilegíveis, tendo o mesmo ocorrido com
um dos livros de baptismos
[3].
Por outro
lado, importa referir, na circunstância, que foram
arrancados dois fólios do precioso tombo primeiro do
registo da Câmara do Funchal, redigido em caligrafia
gótica, nos quais se encontravam justamente exaradas
— estranha coincidência — a carta de vizinhança de
João Afonso, mercador, e uma outra de confirmação,
ambas outorgadas por D. Beatriz, mãe do Duque de
Viseu
[4].
Curiosamente, existe uma cópia dos dois diplomas no
Arquivo da Família Torre Bela, trasladada,
imagine-se, pelo próprio punho de Henrique Henriques
de Noronha. Um dos documentos, menciona um agravo
efectuado por João Afonso, mercador, em Janeiro de
1477, no qual afirmava «que havia dez annos pouco
mais ou menos que elle vivia na dita Ilha», cuja
declaração faz excluir a hipótese de ter sido um dos
«com pinheiros nobres» de Zarco, nem tão-pouco
servidor da casa do Infante
[5].
Sobre a matéria em apreço, acresce
ainda dizer que desapareceu — outra coincidência — um
fólio do antigo tombo da Misericórdia do Funchal,
precisamente onde começava o testamento de João
Afonso, mercador[6].
De resto, nos traslados da referida cédula
testamentária, incorporados no Arquivo da Família
Torre Bela, a palavra «mercador» foi, num caso,
ostensivamente rasgada, e noutro, substituída
toscamente por «Correia». Significativo, sem dúvida.
Agradecemos penhoradamente ao Sr. David Ferreira
de Gouveia, investigador da História da Madeira,
radicado há muitos anos no Brasil, a gentileza de
nos ter facultado uma fotocópia deste curioso
documento do seu arquivo particular.
Ibidem. Quando o padre Manuel Sulpício Pimentel da
Area faleceu, em 17 de Fevereiro de 1778, residia
com o irmão numa casa na Rua dos Moinhos — ou
seja, o troço superior da Rua das Mercês — que lhe
havia sido doada pelos pais como património
eclesiástico. O clérigo refere na carta que
mantivera «algumas conversas», em criança,
com os Valdavesso, «por razão de vizinhança»,
e de facto aquela família possuía a «Quinta
de Sintra», na qual foi edificada a capela de
Nossa Senhora da Saúde, situada logo acima da
mencionada artéria. (Vide o testamento do clérigo
no ARM, CF, Registo de Testamentos, T. 6, n.º
1256, fls. 262v.º-265v.º).
São os fólios x e xj. De acordo com o índice
elaborado pelo copista Frei Diogo de Medina, no
primeiro fólio estava exarada a «carta de
vezinhança de Joham Afonso» e no outro fólio
um diploma «em que se confirma a sobredita
carta de vezinhança». (ARM, CF, RG, T. 1, n.º
1395, fl. n.n.).
Obviamente, não interessava ao «zelador da boa
fama da nobreza instalada» mencionar
semelhantes diplomas, que deitariam por terra o
embuste por ele próprio engendrado. No primeiro
documento, outorgado em Évora, em 3 de Julho de
1477, a Infanta D. Beatriz, considerando o agravo
apresentado pelo mercador, em 31 de Janeiro do
mesmo ano, ordenava ao Capitão do Funchal que lhe
concedesse «sua carta de vizinhança na forma
que se da aos outros vizinhos da terra». João
Afonso alegou que João Gonçalves da Câmara
tinha-lhe derrogado os privilégios da vizinhança,
não obstante viver na Ilha há cerca de dez anos
«na qual elle fora prinçipal e hum dos primejros
que na dita Ilha edificarão e fizerão emgenhos de
moerem canas de asucar e isso mesmo serras de
agua» na Ponta do Sol. Acrescentava que «pos
muitas canas» e tinha no «logo de Comara
ele Lobos muitas terras de pam e latadas e
canaveais e cazas de morada suas proprias asim em
Camara de Lobos como no Funchal e escravos e outra
muita fazenda». Invoca ainda que o capitão
havia-lhe dito «que sem embargo de todo levasse
sua molher pera a dita Ilha e que tanto que a
levasse que vos o haverieis por vezinho e gozaria
do privilegio e liberdades da terra»,
circunstância que não se verificou. O segundo
diploma feito em Lisboa, em 21 de Fevereiro de
1478, é de novo dirigido ao Capitão do Funchal que
não havia cumprido a determinação anterior. João
Afonso, fizera outro agravo, alegando agora que
«havia doze annos que continuadamente vivia em
essa Ilha», e que quando apresentou a carta
antecedente, o capitão afirmou-lhe que estava
«de caminho pera Portugal e que me falarieis em
ello, emtão compririeis o que eu mandase». D.
Beatriz ordenou que executasse de imediato a sua
resolução, «asentando daqui em diante no rol
dos vizinhos sem lhe mais pordes em ello nenhuma
duvida nem embargo». Quando transcrevemos
estes documentos em 1990, achavam-se na Cx. 1 do
Arquivo da Família Torre Bela, o qual actualmente
se encontra em fase de adequada catalogação.
Apesar de termos utilizado diversa documentação
deste fundo num pequeno artigo que escrevemos, no
mesmo ano, intitulado Breves apontamentos
acerca do Morgado da Torre em Câmara de Lobos,
(Girão, n.º 5, 1990, 2.º Semestre, págs.
211-216), por ironia do destino, só localizámos
os dois diplomas logo após a publicação do
trabalho.
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