Forno
da cal

Seguindo
pelo Caminho da Trincheira, por cima das antigas salinas, podemos
observar a interessante construção, um pouco arruinada, do antigo
Forno da Cal desta vila.
A
produção de cal foi sempre olhada com certa atenção pelas autoridades
dada a sua absoluta necessidade para afazeres vários, principalmente
ligados à construção civil e dentro deste campo a sua manutenção.
Temos notícia de várias edificações deste género, sendo as desta
dimensão, obras por certo dos fins do séc. XVII, princípios do XVIII,
e sendo o forno de Câmara de Lobos o único que chegou até nós como
edifício completo.
A título
de exemplo, erguia se o forno da cal do Funchal junto à pequena
bateria de Santa Catarina, sensivelmente onde se encontram hoje as
escadas de acesso ao parque do mesmo nome. Existe reproduzido em
várias plantas e desenhos militares do séc. XIX, assim como em
aguarelas e gravuras inglesas desta época.
O
conjunto articula se em dois edifícios anexos, havendo o forno e
chaminé, propriamente dito, no alto qual se colocava a cal a cozer,
por uma porta ainda existente e dando para o caminho da Trincheira, e
um outro edifício mais abaixo, de um só piso, ao nível das salinas e
por onde se alimentava o forno com lenha vinda de barco de foz da
Ribeira dos Socorridos. Igualmente vinha de barco a cal virgem, que
desembarcava nestas salinas, proveniente do Porto Santo.
Propriedade da Câmara Municipal, encontra se hoje ocupado com uma
também antiga indústria artesanal de secagem de «peixe gata». Este
esqualo (Scymnus lichia) dos mares profundos da Madeira, pescado entre
300 e 1.800 metros de profundidade, tinha até à pouco tempo um certo
interesse comercial, pelo azeite que se extrai do seu fígado e pela
utilização da sua pele como lixa. Hoje o último mestre desta
indústria é o Sr. Pereira, ainda
activo, mas que dificilmente poderá ter continuidade
[1].
O
Forno da Cal situa-se na Trincheira, na freguesia de Câmara de Lobos
[2]. Terá sido construído por volta de 1874
por Roque Teixeira de Agrela e alvo de obras de restauro e adaptação
em 1914. Por volta do ano de 1960 foi desactivado dadas as constantes
reclamações da população vizinha em virtude do odor e fumo resultante
da sua laboração. Por morte de Roque Teixeira de Agrela a propriedade
passou, de acordo com sua indicação testamentária de 28 de Setembro de
1877 para Januário Roque, que pelo mesmo testamento passa por morte
deste último para Rita Correia Teixeira Agrela que, em 1914 ainda
detém a sua propriedade. Em 1937 contudo este forno já era pertença de
Manuel Joaquim Trindade, havendo dúvidas se ele
terá ou não sido vendido em 1944 à empresa Industrial da Madeira
[3]. Em 1947 é adquirido por José Maria Branco, que o
vende em 1980 à Câmara Municipal de Câmara de Lobos, juntamente com as
antigas salinas a ele anexas, conforme escritura
lavrada em 14 de Abril desse ano pelo chefe de secretaria na qualidade
de notário privativo daquela edilidade, pelo valor de quinhentos mil
escudos.
Em 1983 encontrava-se o forno na situação de
cedido à então Direcção Regional de Turismo que, na altura estudava
o seu aproveitamento para apoio a uma zona de lazer a instalar nas
antigas salinas
[4].
Abandonado
o projecto pelo sector público, a iniciativa privada mostrou desejo de
explorar turisticamente o lugar e para o efeito apresentou em Novembro
de 1990 à Câmara Municipal de Câmara de Lobos um programa base da
autoria do arquitecto Paulo Rosalino, de uma infra-estrutura hoteleira
denominada de Churchill Village. Esta unidade hoteleira, em forma de
vila, seria constituída por cinco blocos de 2 a 3 pisos superiores,
com uma capacidade para 120 a 130 quartos. Na sua plataforma atlântica
estava prevista a instalação de um solário, piscina mar, acesso ao
mar, áreas e espaços de convívio e lazer para hóspedes.
Mais
recentemente, o aproveitamento turístico, não só do forno da Cal, como
das Salinas viria a ser integrado num projecto da frente-mar em curso,
em Câmara de Lobos.
A 14 de
Dezembro de 1944, numa altura em que Forno da Cal já era
propriedade da Empresa Industrial Madeirense do empresário José
Maria Branco, o Eco do Funchal publica uma visita efectuada ao seu
interior, em plena laboração, ou seja no decurso da cosedura de
calcários transportados do Ilhéu da Cal no Porto Santo
Quem entra naquela oficina de produção de cal,
situada no Espírito Santo e Calçada, tão antiga que
ninguém nos pode dar informações dela, tem
a impressão de que sua existência remonta a mais de
séculos, pelo estilo da sua
construção.
É ali, que o Sr. José Maria Branco Júnior, o activo
industrial que está a impulsionar várias actividades ligadas à
construção civil
da Madeira, mantém em ritmo normal uma
produção utilíssima à economia da Ilha, entregando a
operação do fabrico
a dois operários competentes.
E observamos na nossa demorada visita que a cal se
produzia pela calcinação do carbonato calcário à temperatura do
rubro cereja, para que as pedras evaporem a água de pedreira,
seguindo-se a decomposição daquelas, pela evaporação do anidrido
carbónico.
Os dois caleiros, que atenciosamente, se dignam
explicar ao redactor do «Eco» o processo de fabrico da cal,
levam-nos a um amontoado de pedra escolhida, vinda do Porto Santo e
começam por parti-la em fragmentos de tamanho regular de maneira a
ser fácil a sua decomposição e não forçar o forno a uma temperatura
mais elevada no acto da cosedura.
A britagem fizeram-na eles, na nossa presença, com a
rapidez que sabem imprimir ao seu trabalho, os bons servidores
daquela Empresa.
Já se achava preparado o forno, espaçoso, que se
eleva em forma de funil, com paredes espessas de secção circular.
Que interessante foi o segundo trabalho de enchimento
do forno. Os operários, limpo convenientemente o grande forno,
dispuseram
o calcário em
camadas alternadas, separadas por lenhas onde o fogo se activa
depois com boas chamas. A grelha, constituída por uma série de
agulhas de ferro, sustenta todo o peso das pedras e • quando a
operação se deu por concluída, extinto o fogo, deixaram arrefecer e
desenfornaram toda a carga, pouco a pouco, pela abertura inferior.
No pavimento superior deste forno, a goela de
irradiação vomita o fumo que vai saindo pelo orifício da chaminé
do grande cone invertido, que forma a cúpula do edifício.
A operação da descarga da câmara de cosedura está
dependente do arrefecimento.
Para uma dependência sequente vão todos os calcários
já cozidos, e sobre eles lançaram os caeiros água suficiente para
transformar em pó o produto, que depois de cirandado, ficou isento
de fragmentos inúteis, de resíduos terrosos, de cinzas, ou de
pedaços recosidos ou encruados.
Ora é com esta cal pura, decomposição dos calcários,
que o Sr. José Maria Branco Júnior fornece a grande industria de
construção civil,—fornecimento acompanhado
dos variadíssimos produtos utilizados nas obras de
edificações e que são manufacturados na sua grande fabrica na Rua
Bela de São Tiago onde o movimento fabril atinge já hoje proporções
que seriam muito para admirar se não conhecêssemos as faculdades de
trabalho daquele proprietário, e de todos quantos estão ali ao
serviço da importante fabrica produtora de materiais de construção.
É motivo para felicitarmos o Sr. Branco Júnior, por
chamar a si mais esta modalidade activa, adquirindo o Forno da Cal
de Câmara de Lobos, na inteligência de que, em suas mãos, com a
exploração desse fabrico, melhor se desenvolve uma industria tão
antiga que se perde na noite dos tempos, procurando simultaneamente
conservar uma relíquia dos nossos antepassados, bem digna de se
manter de pé, ao menos como recordação duma actividade que, no
índice raro das industrias nacionais, figura como coisa natural, e
que deu origem há dezenas de anos a uma multiplicidade de diplomas
oficiais para a regularizar e disciplinar, principalmente a que se
refere à exploração de pedreiras, que tanto valoriza a pobre Ilha do
Porto Santo.
[1]
Centro Regional de Cultura. Visitas guiadas - Vila de Câmara
de Lobos, 1983.
[2]
Girão - Revista de Temas Culturais do concelho de Câmara de
Lobos, vol.1; nº6 de 1991, pag. 251-255 e 281.
[3] De acordo com o
Eco do Funchal de 14 de Dezembro de 1944 a empresa industrial da
Madeira havia-o adquirido.
[4]
De acordo com o Diário de Notícias, na sua edição de 3 de
Março de 1983, e de 19 de Julho de 1983.
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