Levada da
Vellha
Segundo a
tradição, a Levada da Velha foi construída para captação de água no
Curral das Freiras e seu transporte até ao Estreito, Quinta Grande e
Campanário, permanece ainda hoje envolvida num grande mistério, onde o
real se confunde com o lendário. Efectivamente se não subsistem
dúvidas sobre a existência de segmentos do traçado dessa levada cavada
nos rochedos do Curral, já todo o processo que envolveu a sua
construção é pouco claro e difícil de explicar, situação que muito
provavelmente fez eclodir a imaginação popular, atribuindo a sua
construção a uma velha rica.
Quem se
deslocar de automóvel à freguesia do Curral das Freiras e, a partir do
lugar da Estrela começar a olhar com alguma atenção para os rochedos
que constituem o limite oeste do Curral das Freiras e que o separam da
freguesia do Estreito e do Jardim da Serra, verificará que em
determinadas zonas existem vestígios de um e às vezes de dois traços
horizontais e paralelos cavados na rocha. Melhor apreciados desde a
Eira do Serrado ou a partir do troço de estrada entre os dois túneis
de acesso ao Curral das Freiras, estes sulcos correspondem a uma
antiga levada, denominada de Levada da Velha, por ter sido, segundo a
tradição, mandada construir por uma velha rica para irrigar as suas
propriedades nas freguesias da Quinta Grande e do Campanário.
Ainda que, a este propósito, a
informação escrita seja muito escassa, encontramos quer em 1933
,
,
quer em 1952
,
no Jornal da Madeira, dois textos aparentemente do mesmo autor, que
não só descrevem com algum pormenor aquilo que a tradição oral fez
chegar até aos nossos dias, como adiantam algumas explicações
relativamente ao construtor e época em que foi construída e, que
apesar de especulativas, não deixam de parecerem convincentes.
A levada da
velha
Segundo o
Jornal da Madeira de 27 de Julho de 1952, os
mais antigos aquedutos, hoje abandonados por várias circunstâncias,
passaram a ser denominados genericamente por levadas velhas, ou no
singular, levada velha. Esta denominação facilmente se converteu em
Levada da Velha.
A mais
antiga e mais célebre refere-se a um aqueduto que conduziria água de
rega desde os flancos do Pico Ruivo e Torres em direcção à Boca dos
Namorados, atravessando despenhadeiros e rochas alcantiladas, num
percurso de mais de 20 quilómetros.
Nenhum
documento escrito demonstra a existência deste aqueduto, mas é certo
que existiram dois, em vez de um, no sítio já indicado, como se prova
à evidência, pelos vestígios de duas linhas paralelas, obliteradas
onde o terreno era movediço, mas cortadas a picareta em rochas vivas
ou moles, como se pode verificar encontram-se pedaços de caixa de
levada, cavada na rocha, que os séculos ainda não destruíram.
Aqueles
aquedutos foram construídos em remontíssima época, provavelmente no
último quartel do século XV e um deles deveria ser destinado à
irrigação de terrenos do Estreito, Quinta Grande e Campanário. Ainda
existem nessas paróquias alguns vestígios e tradições da obra
formidável, de incalculáveis vantagens agrícolas e económicas.
Quem a
mandou construir?
O destino das águas, referenciado
na tradição oral como sendo Quinta Grande e Campanário, associado à
falta de informação, a propósito da data da sua construção,
permite-nos não só admitir que ela tenha acontecido em tempos muito
remotos, como ainda admitir que a sua construção possa ser atribuída a
Rui Teixeira. Para além de possuir propriedades no Campanário, onde
residia, Rui Teixeira era também proprietário do Curral, terrenos que
haviam sido doados, a 22 ou 28 de Agosto de 1474
a
sua mulher Branca Ferreira, por João Ferreira, que por sua vez os
havia recebido, por sesmaria, do primeiro capitão donatário, João
Gonçalves Zarco.
Só assim se
compreende a relação entre o Curral das Freiras e o Campanário e a
acessibilidade, por parte do proprietário do Campanário, às águas
nascidas no Curral das Freiras.
Ainda que a
tradição refira que a levada foi mandada construir por uma velha rica
e que o Padre Eduardo Clemente Nunes Pereira, nas Ilhas de Zarco chega
a referir como sendo de origem castelhana ou moura, o autor do texto
publicado no Jornal da Madeira, que vimos citando, rejeita
naturalmente esta hipótese. Ao se interrogar sobre quem havia mandado
construir a Levada da Velha, coloca também de fora a hipótese de ter
sido o Estado, uma vez que se o tivesse sido, seria de admitir a
existência de documentação escrita, o mesmo acontecendo com a hipótese
de se ter tratado de um empreendimento de natureza popular. Era pouco
viável que o povo fosse capaz de se unir para um empreendimento tão
dispendioso, difícil e demorado na execução.
Sendo assim, só
havia uma hipótese que adianta tanto no texto de 1933 como no de 1952:
O Curral das Freiras pertenceu, até ao último
quartel do século XV a Rui Teixeira, casado com D. Branca Ferreira,
residente no Campanário.
Nesse
tempo, os donatários, além de riqueza em propriedades e dinheiro,
tinham ao seu serviço centenas de escravos que obedeciam cegamente aos
seus senhores.
Rui
Teixeira, homem de vistas largas, corajoso e empreendedor, concebeu o
arrojado pensamento, seguido de execução, de valorizar os seus
domínios no actual concelho de Câmara de Lobos pela irrigação,
conduzindo até lá, em aqueduto as águas que nasciam nas fraldas do
Pico Ruivo e montes anexos.
Porquê duas
levadas?
Encontrado o
construtor, o articulista do Jornal da Madeira interroga-se sobre os
motivos da existência de dois aquedutos, desde as rochas da Boca dos
Namorados até à região das nascentes.
E a explicação dada também não
deixa de ser convincente. Apesar de possuir meios humanos e
financeiros faltariam a Rui Teixeira meios técnicos, ou seja um Amaro
da Costa
,
que como todos sabem foi o autor do projecto da levada do Norte. Ora,
esta falha viria a condicionar alguns erros de cálculo na sua
construção.
Rui Teixeira
terá começado por construir uma levada a partir das rochas da Boca dos
Namorados, mas quando chegou à zona das nascentes, esta saíria acima
delas, facto que impedia a captação das suas águas. Contudo, não
desanimou e deu início a outra levada, partindo desta vez, das
nascentes e trazendo a água a servir de nível.
Explicada
satisfatoriamente a existência de dois aquedutos paralelos que ainda
hoje se reconhecem facilmente, nalgumas zonas, faltava agora explicar
o abandono a que ficou votada e que, ao que parece, nunca terá chegado
a transportar água.
Da mesma forma
que se procurou na relação entre as propriedades do Campanário e
Curral das Freiras, uma justificação para o início do empreendimento,
também se aponta o fim dessa relação para o seu abandono. Com efeito,
por escritura de 11 de Setembro de 1480, Rui Teixeira vendeu os
terrenos que possuía no Curral das Freiras ao 2º Capitão Donatário do
Funchal, João Gonçalves da Câmara que, possuindo outros interesses não
terá dado continuidade ao projecto inicial.
A maldição
cai sobre a velha
Ainda que não
havendo certezas relativamente ao facto da água ter chegado, ou não, a
sair do Curral das Freiras, a tradição diz que chegou mesmo à
freguesia do Estreito e até ao Campanário, mas que a velha muito rica,
a quem a lenda atribui a autoria do empreendimento, depois de ver
chegar a água, em vez de agradecer a Deus a graça alcançada pôs-se a
lamentar o dinheiro gasto nos seguintes termos:
Levada, minha
levada.
Levada que aqui
me tens.
Gastei uma pipa
de patacas.
E um quarto de
vinténs.
A partir desse
momento, como castigo, a levada começou a rebentar ora numa parte, ora
noutra, não sendo mais possível pôr a água a correr.
Uma outra
versão da lenda da levada da velha refere que a velha terá também
morrido, por castigo de Deus, por não ter agradecido a Nosso Senhor,
com humildade e acção de graças, o auxílio dispensado à obra, que
parecia impossível de realizar-se, e que os seus herdeiros
aterrorizados por aquele divino castigo, ou desinteressados do alto
valor da obra, abandonaram-na até perderem o direito às referidas
águas, que passaram para a Levada do Castelejo ou de Santo Amaro,
construída muito tempo depois.
A propósito da levada da velha, o
Heraldo da Madeira, em 1909
dá
outro desfecho à velha, ao referir que a velha teria falecido de
desgosto ao ver que depois de ter gasto tanto dinheiro, o
empreendimento não havia resultado, em virtude do defeito de
desnivelamento verificado na sua construção.
Azar de uns
sorte de outros
No dizer, do autor do artigo
publicado em 1933 no Jornal da Madeira, a propósito da levada da
velha, se estas levadas tivessem funcionado, não haveria quase que
cultura nem no Curral das Freiras, nem em São Martinho, nem em Câmara
de Lobos porque as levadas dos Piornais, do Castelejo e da Torre
não
teriam metade da água.
Reforçando
ainda mais o seu pensamento refere que se a levada da velha, como o
povo lhe chama não tivesse sido abandonada, a balança da fortuna
ter-se-ia inclinado completamente para as freguesias do Estreito,
Quinta Grande, Campanário e Ribeira Brava e o Curral das Freiras, São
Martinho e São Pedro beneficiadas pelas águas do Castelejo e Piornais
seriam hoje [1933] terrenos árduos como a maior parte do Caniço
e São Gonçalo.
A levada e a
veia poética popular
Construída pela
tal velha rica, por Rui Teixeira ou por outra entidade, um facto
incontestável é que, passados tantos e tantos anos, lá está a marca da
levada, levada essa que continuará, muito provavelmente, sem que se
saiba a sua verdadeira história e, por isso mesmo, a ser tema de lenda
e alvo de inspiração para a veia poética popular, como demonstram os
versos recolhidos pelo Grupo Folclórico do Curral das Freiras e que
servem até de tema do seu repertório:
Era uma senhora
rica
E já de maior
idade
Tinha uma
grande fazenda
Não tinha água
para rega.
Estava sempre a
pensar
Aquilo que ia
fazer
Vou arranjar a
levada
Para ter muito
comer.
Os homens eu já
tenho
Vamos todos
trabalhar
Quando a água
chegar
A fazenda vou
regar.
Levada minha
levada
Levada que aqui
me tens
Gastei uma pipa
de patacas
E um quarto de
vinténs.
Com a água da
fazenda
Já estava a
regar
Não dei as
graças a Deus
Começou a
rebentar.
A levada
rebentou
Ficou o vizinho
gloriado
Que tinha gasto
o dinheiro
E não me tinha
lucrado.
Bibliografia:
História da
Madeira, uma página inédita.
O Jornal, Funchal, 11 de Agosto de 1933.
História da
Madeira, uma página inédita.
O Jornal, Funchal, 6 de Setembro de 1933.
Jornal da
Madeira, 27 de Julho de 1952, pag. 10-11.
PEREIRA,
Eduardo CN. Ilhas de Zarco, 4ª ed. Vol.1, pag. 682, Funchal,
1989.
FREITAS, A.
Vieira. Era Uma Vez... Na Madeira. 2ª Ed. Pag. 17-21. Funchal,
1984.
Campanário,
in Heraldo da
Madeira, 16 de Maio de 1909.
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