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A funcionalidade do relato de expugnatione scalabis
na construção da imagem de Afonso Henriques

 
Maria dos Anjos B. M. Guincho
Universidade Católica Portuguesa (Lisboa)

 
Plutôt qu'un reflet déformé de la réalité,
la littérature constitue un "révélateur idéologique"(...).
Elle nous offre son reflet magnifié dans le sens qu'elle
même souhaitait et que le public adoptait avec enthousiasme.
Jean Flori

A historiografia medieval desenvolve narrativas caracterizadas por uma ambigenia (de verdade e de verosimilhança) que a instituem nas fronteiras entre texto histórico e texto literário. Assim, para uma leitura significativa da construção escrita de acontecimentos marcantes, deve ter-se em conta a inculcação no monumental de factores de ordem imagística, mítica e, até, simbólica, pois "o discurso histórico é acima de tudo (...) a manifestação, através da narrativa, de um sistema de representações ideológicas de um grupo social, de uma comunidade, de uma nação"1. O programa contido nestas frases expõe, pois, a complexa interacção entre o fingimento da História e a historicidade da Literatura2, interacção, cujo diálogo, em alguns casos, caracteriza objectivamente figuras, espaços, eventos e "mentalidades". É sob esta perspectiva que me proponho formular algumas considerações acerca da funcionalidade do relato De Expugnatione Scalabis3 - no seu duplo enquadramento historiográfico e literário -, para a constituição da imagem do primeiro rei de Portugal, como herói guerreiro, no contexto da guerra medieval peninsular.

1. O texto latino De Expugnatione Scalabis4 apresenta-se em complexo rizoma, do qual ressalta a preocupação evidente de fixar na memória uma imagem positiva e heróica de D. Afonso Henriques, tentativa reforçada pelo facto de o rei se assumir como personagem, protagonista e autor, ainda que este último estatuto, se atendermos às questões de autoria em termos medievais, possa ser objecto de acesa polémica5. A inserção de um falar na primeira pessoa na discursividade remete imediatamente para o fingere da história, aproximando-a dos modelos de escrita ficcional e faz emergir uma função ideológica que, veiculada pelas necessidades, gostos e anseios de uma população específica (as elites coimbrãs), num determinado contexto socio-cultural (o da fundação do reino), deixa transparecer um rigoroso programa de apoio à figura de Afonso Henriques. Neste âmbito, através da estrutura retórica da narrativa, o relato fornece uma visão cultural dos primeiros tempos da nacionalidade, apresentando, sem dúvida, o retrato de um lídimo herói - herói pela palavra e herói na guerra -, cuja imagem foi enaltecida e preservada para exemplo das gerações futuras6. O texto que pretendo analisar, pertence, pois, a um universo macrotextual coetâneo e posterior à vida do herói fundador que, exprimindo veementemente a consciência das origens da nação e iniciando a historiografia portuguesa, tem como principal suporte a narração de acontecimentos ligados à nobreza e ao clero. Estes eventos reguladores da reconquista cristã e da delimitação de fronteiras dos reinos peninsulares constituem, justamente, terreno propício para retratar os seus agentes. Com efeito, o acontecimento a que o texto se refere situa-se no reinado de Afonso Henriques, a 15 de Março de 11477, em pleno processo de formação do reino de Portugal. Assumindo-se como chefe militar e político8, Afonso Henriques deixa Guimarães e transfere-se para Coimbra - que detinha um concelho cujo autonomia já vinha de longe e na qual, segundo José Mattoso "estava também situado o mosteiro de Santa Cruz que, pela sua ligação com o monarca, exprimia um vínculo com o poder divino, de que o seu era emanação terrestre"9 - , tendo esta mudança sido decisiva para a formação de Portugal como estado independente. O facto de aí permanecer facilita ao rei a invasão dos territórios islâmicos entre o Mondego e o Tejo, espaço de onde provinham constantes algaras por parte dos Almorávidas. Efectivamente, o alargamento territorial, levado a cabo na luta contra o inimigo externo, processou-se em várias frentes, sobretudo no combate contra os mouros, traduzido ideologicamente numa luta da fé cristã contra o Islão, onde o rei deveria demonstrar o seu valor no intuito de fortalecer a sua imagem perante a res publica Christiana. Assim, contando com o apoio dos cavaleiros vilãos de Coimbra, aos quais se juntam alguns nobres provenientes do Norte - os que não sendo primogénitos faziam a guerra como meio de angariar títulos e terras -, Afonso Henriques, planeando avançar para sul, investe para além da linha do Mondego rodeado, deste modo, por um corpo coeso de homens de primeira e segunda nobreza, que lhe devotam uma fidelidade incondicional. É precisamente neste contexto da história factual que se insere a tomada portuguesa de Santarém, que o De Expugnatione Scalabis bem reflecte.

2. Formalmente, o universo textual da lição que sigo10, aparece-nos em três níveis: a intervenção filológica do editor - fixação do texto a partir do manuscrito de Alcobaça, contextualização da fortuna do mesmo, intitulação ("Como o rei Afonso, filho do Conde Henrique, tomou a cidade de Santarém") e subdivisão em partes ("Fala o rei" e "Discurso do rei aos soldados") -, a introdução por um autor anónimo, certamente eclesiástico11, dirigida a um interlocutor plural a quem convida à audição da gesta, e a narração propriamente dita, assumida desde o seu início por um eu que, inferidamente, pode ser tomado por "Afonso Henriques".

Para uma leitura mais circunstanciada do texto acentuaria a diversidade entre o nível do discurso e o nível da história . Note-se que logo no "prólogo" é esbatido o carácter pontual da conquista para universalizar o facto como uma manifestação da presença de Deus na história. Entrelaçando vocábulos de guerra e de doutrina cristã com citações bíblicas, o autor anónimo evidencia uma concepção providencialista da História, segundo a qual tudo o que acontece é fruto dos desígnios de Deus. A ideia que sobressai é a de que o rei é agente de Deus na sua função de condutor do povo, pois tanto a tomada de "a mais munida cidade de toda a Espanha " como o trabalho da escrita não foram méritos seus, mas sim de Deus: "… e reconhece que não pões por escrito este magno prodígio devido aos teus méritos, mas através dos méritos de Cristo, rei verdadeiro". Ao exortar o rei a que ponha por escrito a história do acontecimento com princípio, meio e fim, o autor do prólogo não só revela uma preparação retórica e uma intencionalidade edificante, como delega a responsabilidade autoral a Afonso Henriques, patenteando-se assim, logo aí, a dissimulatio do sujeito enunciador, estratégia de ligação ao texto que segue, mas que não desambiguiza a questão da autoria. O prólogo concentra, portanto, um projecto ideológico, que vai ser alargado e consubstanciado no plano pragmático do texto.

Com efeito, a visão do mundo onde o homem se deve conformar aos desígnios divinos é logo explicitada no início da narrativa, quando o próprio rei, como enunciador do discurso, refere, hiperbolicamente, que a tomada de Santarém foi um milagre insuperável, maior que a queda dos muros de Jericó12, exemplo bíblico que remete para o tópico literário da vitória, como por encanto, sobre uma série de dificuldades:

Juro perante Deus do céu, a cujos olhos tudo é claro e evidente, que tenho por muito menores milagres o terem outrora caído os muros de Jericó, e a paragem do Sol, a pedido de Josué, sobre o Gabaão do que este que agora obrou comigo a piedade e a misericórdia divinas, e louvo o nome de Cristo, cujos juízos são impenetráveis e as obras maravilhosas, por si e pela sua santidade. Nos últimos tempos, Ele não repete os milagres antigos, mas ultrapassa-os.

Em coerência com um discurso eminentemente expositivo, o narrador, adoptando neste exordium uma postura omnisciente, faz uma invocação aos seus destinatários na qual afirma a veracidade do que conta e, subsequentemente, passa à descrição da cidade compondo uma ecphrasis de dupla funcionalidade: topograficamente situada num alto junto ao Tejo, outrora13 lugar de comércio e de passagem de navios, a cidade é um paraíso deleitoso comparável à Apúlia e "É sem dúvida um paraíso de Deus, isto é um lugar de delícias, como outrora no Egipto para quem vinha de Segor ". No entanto, o carácter bélico que lhe é atribuído, " … cidade extremamente defendida por grande número de soldados e parecendo inexpugnável por estar apetrechada de toda a espécie de material de guerra … ", induz-nos também na hesitação cidade-paraíso e cidade temida, argumentos que lhe reforçam a excelência e a condição guerreira. Se por um lado, a intertextualidade bíblica e o aproveitamento de dados históricos preexistentes sobre a cidade se adequam ao contexto específico em que esta é inserida e se ligam, pertinentemente, às sequências funcionais posteriores, por outro, o seu enaltecimento é uma estratégia que tem por fim valorizar o feito do rei, que se assume como um chefe militar, decidido e voluntarioso, e que reflecte sobre o modo como empreender as suas campanhas. Aliás, perante uma cidade tão forte e o medo dos seus correligionários, só a manha e a surpresa poderiam ter sido escolhidas como tácticas de guerra. Assim, a prudência e o sigilo inerentes a um guerreiro experiente, implicam o aparecimento no plano da história da personagem Mem Ramires que, por falar árabe e ser "homem prudente e de espírito penetrante ", desempenha a missão secreta de se informar, durante o período de tréguas, sobre a situação do inimigo. Neste passo, são evidentes os anacronismos no tempo da história e as intromissões no tempo do discurso, pois o narrador afirma antecipadamente o bom êxito da empresa, atenuando assim a "tensão cinética" provocada no leitor pela sequência progressiva das acções. Subjacentemente, as unidades narrativas correlatas aos dias que antecedem a batalha correspondem a uma plausível descrição espacial concretizada por nomeações toponómicas (de Coimbra a Santarém) e a uma acelerada evolução temporal dos acontecimentos, de 2ª a 6ª feira, processo favorável a uma mudança de registo discursivo. Aludindo ao esquema social da cavalaria, "…do mais pequeno ao maior…", o narrador autodiegético suspende a narração a fim de integrar o discurso que então teria dirigido aos seus companheiros, apresentando-o em discurso directo. Assim, após a dissertação sobre a cidade, que será aproveitada posteriormente para um regresso ao plano da história, o narrador introduz uma pausa no discurso, através de uma adversativa, para confirmar a data da expugnação e para, em seguida, fornecer uma série de dados verificáveis sobre si próprio, o que contribui para a verosimilhança da atribuição do sujeito ao rei. A construção do discurso directo atrás referido - utilizado pelo narrador com o objectivo de destacar a sua protogonização - permite, pois, dividir o discurso em retrospectivo e em discurso encaixado, o do apelo aos companheiros, ambos percorridos por uma isotopia heroicizante que faz do rei um herói completo. Ainda neste sentido e mais do que um documento histórico denotativo da cultura bélica medieval, o texto é vincadamente uma peça retórica construída como uma mise en abîme de um "eu" que se projecta ao longo do tecido textual que compõe o relato. Conjecturando sobre as intenções do autor, é fácil detectar, sobretudo nesta parte do apelo, que elas visariam envolver as informações de carácter histórico num discurso persuasivo, capaz de agir sobre os seus leitores, fornecendo-lhes conselhos profícuos, e, simultaneamente, fazer prova do ethos do orador que prevê o que veremos acontecer. O autor demonstra, pois, ter grande habilidade ao apresentar uma verosimilhança disposta em três planos: o literário, o histórico e o psicológico unem-se num texto de aparência historiográfica mas de fundo claramente ético e, portanto, epidíctico:

Tende confiança em mim, soldados do meu exército, porque me parece tão fácil e tão vantajoso o que me proponho empreender convosco que, em virtude da alegria que me vai no espírito, sinto a demora do dia seguinte e tornam-se-me maiores os dias, que eu queria passassem depressa. Mas quando vejo que vós ainda desejais isso mais do que eu, e atento na vantagem de tal fazer, exulto de alegria, como se já estivesse dentro da cidade.

É deste modo que, através da acentuação da função perlocutória da linguagem14, o enunciador, encorajando os guerreiros e intensificando neles a ira contra o inimigo, revela o plano da conquista:

Eis, porém, o que primeiro devemos fazer: escolham-se de entre vós cento e vinte, que construam dez escadas, uma para cada doze homens. E quando cada um tiver subido pela sua, não será um mas dez sobre os muros da cidade. Assim a escalada será fácil e se multiplicará o número dos que sobem à muralha. Chegados lá acima, hasteai o meu estandarte antes de mais nada, para que possa ser visto de longe por nós, que ficamos junto do grosso das tropas e pelos que acaso saiam para o arrancar. Seguidamente destruí as portas da cidade, para que ao mesmo tempo, com o ímpeto dos que entram, se semeie a perturbação entre os que não estão armados e os que estavam a dormir. Dizei-me, por amor de Deus, se desta maneira haverá dificuldade em matar aqueles que estão sem armas e os que ainda estão meio a dormir? Mas observai isto com a máxima atenção: não perdoeis nem a idade, nem o sexo: morra a criança ao peito da mãe e o velho, por idoso que seja; morra a donzela e a velha já decrépita. Tornai mais fortes vossas mãos; visto que o Senhor está connosco, cada um de vós poderá matar um cento deles.

Em termos verosímeis, esta passagem evidencia uma batalha corpo a corpo e um furtive entrare, ao mesmo tempo que a violência radical no combate contra os mouros, transmitida nas últimas palavras, conduz, sem dúvida, à ideologia que dá origem à noção de Reconquista cristã ou à de guerra santa. A desproporção numérica entre inimigos, habitual neste contexto e também aqui visível, acentua o tópico de elogio aos cristãos. É também neste espaço textual em discurso directo, eivado de espírito de cruzada, que a dissimulatio é flagrante, pois o importante será que os meios consolidem a confiança, a fiducia, nas atitudes a tomar. Eficácia e argumentos ardilosos, apesar de tudo desmentidos por uma intrusão do narrador no tempo da história, são, pois, elementos tácticos proeminentes na conduta ofensiva do rei, como personagem e como narrador: ajudado pela nobreza e confiante no clero e no povo (a tripartição clássica da sociedade feudal), afirma perante o seu público que os monges de Santa Cruz rezam fervorosamente pelo bom êxito da empresa e que as sentinelas inimigas seriam elementos adjuvantes do processo. Na peroratio deste discurso, o orator, resumindo de forma breve o conjunto de argumentos utilizados, evidencia "um valioso elemento primitivo, a camaradagem entre Afonso Henriques e os seus homens"15 e, ainda nesta perspectiva, justifica o seu apoio político-moral de incitação à guerra no fundamento de consolidação do território para as gerações futuras, o que reforça o seu papel de fundador do reino. Neste plano, as mensagens trocadas entre o rei e os seus guerreiros são fundamentais porque, se no plano da acção concitam o despoletar bélico, no plano ideológico, que lhe subjaz, deixam de novo transparecer, pelo esforço dissuasor, um resultado encomiástico relativamente ao herói. Curiosamente, é também a partir destas sequências relativas ao início do combate que se acentua o carácter religioso da narrativa. Sendo assim, são vários os elementos textuais que concorrem para justificar o carácter extraordinário do feliz acontecimento: para além de mirabilia como sinais de Deus - o prodígio natural da estrela como símbolo canónico de renascimento para os cristãos e o prodígio da serpente, símbolo do infiel16 e de conclusão de um ciclo para os mouros -, o narrador reitera a sua concepção providencialista da história, na ocorrência claramente explicitada: "É bom notar aqui quão evidente se torna o Senhor nas suas obras. Para que não parecesse que alguma coisa se fazia a nosso arbítrio, o Senhor, por sua própria virtude, modificou os nossos planos, mas para melhor".

Consequentemente, acentua-se uma assimetria entre o tempo do discurso e o tempo da história, predominando o primeiro sobre o segundo, de que é exemplo a condensação de acções relativas à batalha: as sentinelas são adormecidas pelo Senhor para que Mem Ramires possa subir ao telhado da casa do oleiro, situada fora da alcáçova, e elevar uma escada até às muralhas17. Não o conseguindo fazer, afligiu-se pelo enorme ruído que poderia alertar as sentinelas. Rapidamente ordenou a Moqueime que lhe subisse aos ombros e atasse a escada ao baluarte. Quando já estavam três cristãos e o estandarte sobre as muralhas, as sentinelas acordam e, tendo constatado que de cristãos se tratava, clamam por socorro, registo transcrito em língua árabe com o fim de atribuir maior vivacidade e verosimilhança à narração. Também os gritos de guerra dos cristãos nos são transmitidos, nomeadamente as palavras do rei, processo emblemático da justa querella: "Também eu, em voz alta, clamei: S. Tiago e Bem-aventurada Virgem Maria, socorrei-nos! Aqui está o rei Afonso! Matai-os! Nem um sequer se escape ao fio da vossa espada!".

Receando o massacre dos companheiros, que seria aos olhos de Deus "…a nossa maior desonra…", os cristãos atacam em várias frentes. E a mudança operada por Deus para facilitar o combate cumpre-se, pois das dez escadas só duas foram utilizadas por apenas vinte e cinco homens que, com um martelo de ferro lançado do exterior, abrem as portas da cidade, permitindo aos outros uma entrada mais segura. No final deste quadro de guerra, impregnado de movimento e de efeitos de realidade, o rei, conduzindo a história, louva a Deus pelas suas obras e reza fervorosamente, de joelhos, no meio da porta da cidade, como um novo Josué, confirmando a vitória dos seus18.

3. É, efectivamente, num breve explicit, que o narrador, reassumindo-se no tempo do discurso, encerra o relato reiterando a sua união com o Senhor da História, portanto agente da tomada - " Por já se me ter apagado da memória, não referirei aqui o que eu rezei, de joelhos, no meio da porta, e Deus sabe com que recolhimento de alma." - , ciclicidade que o projecta como herói medieval modelar, na medida da coincidência das suas acções guerreiras com os desígnios divinos. Esta configuração ideológica, eticamente justificada e avalizada pela história já contada, é, no entanto, cerceada por uma derrogação da autoglorificação e, nela, da autoria: "os ataques que então fiz, digam-nos os que comigo estiveram presentes, pois a mim não pertence". A exactidão factual que o relato parecia querer fixar e, através desse esforço, assegurar a memória, ainda que colectiva (repare-se, sobretudo nas passagens finais, na utilização dos verbos na 1ª pessoa do plural), do herói, redunda, afinal, numa desresponsabilização, agora justificada pela perda da memória e pelo recurso ao topos da humildade. No entanto, a ironia deste apagamento, que mais não é do que uma projecção sublime, transformou Afonso Henriques, para a continuidade da memória nacional19, em prisioneiro das suas próprias palavras, pressentimento que o leitor tem quando conclui a leitura do "prólogo", glosa analogicamente composta e onde se sublinha a "real" autoria e o didactismo do texto, à semelhança do texto escriturístico. Delineado pela visão clerical da Idade Média e obedecendo às suas próprias regras culturais de representação, o texto apresenta, pois, uma elaboração narrativa que é simultaneamente signo literário e objecto historiográfico. Ou seja: mais do que um reflexo distorcido da realidade, a "historiografia" constitui um "revelador ideológico", oferecendo-nos magnificentes reflexos da realidade, no sentido por ela desejado e pelo público adoptado com entusiasmo.


Referências bibliográficas:20

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Barthes, R., "De L'Histoire au Réel", Le bruissement de la Langue - Essais critiques IV, Paris, Seuil, 1984, p. 163-195.

Coelho,A. B., Portugal na Espanha Árabe, Lisboa, Caminho, 1989, vol 2.

Flori, J., Chevaliers et Chevalerie au Moyen Age, Paris, Hachette Littératures, 1998.

Genette, G., Fiction et Diction, Paris, Seuil, 1991.

Herculano, A., História de Portugal - desde o começo da monarquia até o fim do reinado de Afonso III, (prefácio e notas críticas de J. Mattoso), Lisboa, Bertrand, 1980.

Lausberg, H., Elementos de Retórica Literária, (tradução, prefácio e aditamentos de R. M. Rosado Fernandes), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1967, 3ºed.

Le Goff, J., L'Imaginaire Médiéval, Paris, Gallimard, 1985.

Picoito, P., "Espaço e Poder na Épica Medieval Portuguesa", Colóquio Letras - mesmo o passado / é sempre incerto (Lisboa, 1996) 65-82.

Pina, L. M. C., "Da Personalidade Militar de D. Afonso Henriques", Alexandre Herculano à luz do nosso tempo, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1977, p. 289-315.

Vasconcelos e Sousa, B., "O sangue, a cruz e a coroa - a Memória do Salado em Portugal", Penélope 2, (Lisboa,1989) 28-48.


Notas

* Este trabalho é a versão revista de uma comunicação apresentada em francês ("Le premier roi du Portugal, prisonnier de ses propres mots. Essai d'analyse du récit De Expugnatione Scalabis."), no Colóquio Internacional "La Guerre dans la Culture Médiévale", organizado pelo Centre d'Études Médiévales da Universidade de Amiens -Jules Verne, Picardie.

1. Ana Isabel Buescu, "Um mito das origens da nacionalidade: o milagre de Ourique", A Memória da Nação (org. Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto), Lisboa, Liv. Sá da Costa, 1991, p. 49.

2. Note-se que as novas tendências da história medieval tiram partido das obras literárias, na medida em que se debruçam sobre a significação e amplitude das distorcidas imagens do real por elas emanadas.

3. Texto integrado no códice alcobacense 415, Biblioteca Nacional (Lisboa). Sigo a lição publicada por Alexandre Herculano, Portugaliæ Monumenta Historica Scriptores, Lisboa, Academia das Ciências, 1856, vol. I, p. 93-95.

4. Relativamente ao relato propriamente dito servi-me da tradução inserida in Fontes Medievais Portuguesas, Anais e Crónicas ( selecção, prefácio e notas de Alfredo Pimenta), Lisboa, Liv. Sá da Costa, vol. I, 1982, p. 93-106. A tradução do "prólogo" é da minha autoria.

5. Sobre este assunto, ver em particular J. Mattoso, História de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 75 e Crónica Geral de Espanha de 1344 (edição crítica do texto português por L. F. L. Cintra), Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, vol. I, 1951, p. 392-395. Segundo Mattoso, o relato da tomada da cidade deve ter sido escrito, "decerto, a partir de informações directas ou indirectas de algum cavaleiro que nela tomou parte …". Cintra supõe que o autor era um monge de Santa Cruz de Coimbra e não de Alcobaça, como afirmava A. Herculano no século XIX, porque nota " entre este texto e outro - literariamente o mais interessante dos que se sabem redigidos no Mosteiro de Coimbra - a Vita S. Theotonii - a existência de pontos de contacto muito claros", para além "de não ser fácil supor, em fins do séc. XII, um leigo em Portugal, escrevendo em latim com a pureza e fluência que o trecho revela".

6. No âmbito da historiografia cronística, são vários os textos que referem a tomada de Santarém aos mouros e que exaltam a personalidade de Afonso Henriques, ainda que apresentem diferenças substanciais em relação ao De Expugnatione Scalabis. Entre outros, ver: Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal (Crónica de 1419) (ed. crítica de Carlos da Silva Tarouca), Lisboa, Academia Portuguesa de História 1952, vol.I e II, p. 54-70; Crónica Geral de Espanha de 1344, ed. cit, 1980, p. 231-235 e a última parte da Chronica Gothorum: David, P., "Annales portucalenses veteres", Études Historiques sur la Galice et le Portugal du VIe.au XIIe siècle, Paris - Lisboa, 1947. Para um alargamento destes pontos, ver ainda: L. F. L. Cintra, "A lenda de Afonso I, Rei de Portugal (Origens e evolução)", ICALP Revista, 16 - 17, (Lisboa,1989) 64-78; A. J. Saraiva, O Crepúsculo da Idade Média em Portugal, Lisboa, Gradiva, 1990, p.151 e J. Mattoso, "As três faces de Afonso Henriques", Penélope 8, (Lisboa,1992), 25-42.

7. Data actualmente aceite e que foi amplamente esclarecida por J. V. Serrão, Ensaio Histórico - sobre o significado e valor da tomada de Santarém aos mouros em 1147, Santarém, Tipografia Silva, 1947

8. Para a história do título de rei, ver J. Mattoso, Fragmentos de uma Composição Medieval, Lisboa, Editorial Estampa, 1993, p. 214-229 e para uma panorâmica alargada deste período, ver J. Mattoso, História de Portugal, p. 49-91.

9. J. Mattoso, História de Portugal, p. 65.

10. Ver nota 2.

11. Para além das referências textuais "cantemos ao Senhor, irmãos caríssimos", sublinho a opinião de Cintra, exposta na nota 4.

12. Cf. Jos. 6:20, segs.

13. As origens da cidade são remotas: sobre as suas lendas e história são pertinentes as indicações bibliográficas fornecidas por V. Serrão, op. cit., p. 18-23.

14. Estes discursos correspondiam a um topos da retórica militar antes das batalhas. Sobre o teor destes discursos nas fontes narrativas, veja-se o completo estudo de J. G. Monteiro, A Guerra em Portugal-nos finais da Idade Média, Lisboa, Notícias Editorial, 1998, p. 277.

15. J. Mattoso, História de Portugal, p. 75

16. O símbolo do dragão que lança línguas de fogo apresentado em relação aos mouros aparece em outros textos medievais, por exemplo, a propósito do conde Fernã Gonçalvez nos preparativos da batalha de Almançor: Crónica Geral de Espanha de 1344, ed. cit, Vol. III, p. 53.

17. Um estudo detalhado da poliorcética portuguesa, nomeadamente nas situações de aproximação às muralhas, encontra-se em J. G. Monteiro, op. cit., p. 346-352.

18. Cf. Jos. 10 segs.

19. De forma implícita e revelando a mentalidade específica da comunidade donde emergiu, esta passagem remete para a escrita como repositório da memória. Neste âmbito, foram bastante esclarecedores os seguintes estudos de Aires Nascimento: Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra - Vida de D. Telo, Vida de D. Teotónio, Vida de Martinho de Soure (edição crítica de Aires A. Nascimento), Lisboa, Edições Colibri, 1998 e Navegação de S. Brandão nas fontes portuguesas medievais (edição crítica de Aires A. Nascimento), Lisboa, Edições Colibri, 1998.

20. Para além das já indicadas em notas de rodapé.