![]() A metafonia portuguesa: origens e influências
Viviane Cunha
UFMG O fenômeno da metafonia portuguesa vem sendo observado de maneira assistemática, por nossos gramáticos e ortógrafos desde o século XVI, a saber: Fernão d'Oliveyra na sua Gramática da língua portuguesa (1536),1 Duarte Nunes de Leão em Ortografia e origem da língua portuguesa (publicada em 1606),2 J. M. Madureira Feijó (Ortografia, 1739),3 e Frei Luis do Monte Carmelo (Compêndio de ortografia, 1767).4 No século passado, Gonçalves Viana,5 numa vasta obra sobre a fonética e a fonologia portuguesas, também a ela se refere. Na década de 20, começam os estudos sistemáticos com Augusto d'Almeida Cavacas, numa dissertação universitária dedicada exclusivamente ao fenômeno, intitulada A língua portuguesa e sua metafonia, publicada em 1920. Em seguida surge o artigo de Lindolfo Gomes, "Metafonia – plural de nomes", datado de 1925. Posteriormente, E. B. Williams na gramática histórica From Latin to Portuguese, de 1928, trata do assunto, na parte dedicada ao vocalismo. Nos anos subseqüentes, a questão da metafonia foi retomada por vários autores, em artigos de periódicos, dicionários lingüísticos, capítulos de livros e teses, dentre os quais se destacam os de C. M. Vasconcelos ("A metafonia na língua portuguesa", 1930); J. M. Piel ("Considerações sobre a metafonia portuguesa", 1942); J. M. Sequeira (in: Aspectos do português arcaico, 1943); José Inês Louro ("A metafonia de E tônico em português", 1961); Cândido Jucá Filho ("O fator psicológico na mutação vocálica portuguesa", 1961); Serafim da Silva Neto (in: História da língua portuguesa, 1957),6 Edwaldo Machado Cafezeiro, na sua tese de doutorado, intitulada A metafonia portuguesa: aspectos sincrônicos e diacrônicos (1981), para citarmos apenas os estudos de maior monta; e finalmente a minha dissertação de Mestrado, a qual se intitula Um traço do vocalismo português: a metafonia (1991). Apesar dessa significativa bibliografia sobre a metafonia, nenhum autor tratou da origem de seu aparecimento na língua portuguesa, o que levou-me a estudar o assunto, na dissertação acima referida. O termo metafonia significa, etimologicamente, "mudança de som", mas em português é usado, particularmente, para se referir à mudança do timbre das vogais médias anteriores /e /, /e/ e posteriores / /, /o/, em posição de tonicidade, configurando-se uma abertura ou um fechamento dessas vogais, por influência das vogais altas /i/ e /u/ átonas finais. Nas línguas românicas o termo metafonia é usado como equivalente do alemão Umlaut. Segundo Blaylock (1965), quem primeiramente usou o termo métaphonie, como correspondente do alemão, foi Victor Henry, na sua obra Précis de grammaire comparée de l'anglais et de l'allemand rapportés à leur origine commune et rapprochés des langues classiques (1893). A escola espanhola e a francesa (apud Martinet)7 usam mais freqüentemente o termo inflexión para se referir ao fenômeno, embora os dois termos inflexão e metafonia sejam distintos; o primeiro é de ordem genérica e pertence ao campo da Lingüística Geral, enquanto metafonia é específico da Fonética e da Fonologia. A metafonia, como um traço específico do sistema vocálico, atingiu principalmente o idioma lusitano, no âmbito das línguas românicas nacionais, mas é fato que ela existe também em dialetos espanhóis e italianos. É um processo de ordem fonológica, com repercussão na morfologia portuguesa nominal, pronominal e verbal, servindo para distinguir o número e o gênero nos nomes e pronomes, os tempos e as pessoas dos verbos, e ainda, categorias gramaticais. Criou-se nos primórdios da língua, e, ao que parece, ainda é produtiva no português moderno (cf. Cunha, 1991). Colocada pois a questão da nomenclatura e esclarecida a sua posição na língua portuguesa, resta-nos analisar a sua origem. Gonçalves Viana (in: "Essai de phonétique et de phonologie de la langue portugaise d'après le dialecte actuel de Lisbonne") trata, em algumas passagens, da metafonia, a qual ele chama de "refração" e faz referência à origem da mesma. Segundo ele, a refração não foi observada no dialeto de Bragança, cidade situada ao norte de Portugal. Isto, no seu entender, leva à suposição de que deve ter havido dois dialetos bem distintos do antigo português: um ao norte, onde o fenômeno não teria se manifestado e outro ao sul, onde o fenômeno teria ocorrido, e, deve ter sido anterior à dominação árabe, tendo sua origem no latim popular desta parte da Península Ibérica. A metafonia (ou refração vocálica, na terminologia de Viana) teria pouco a pouco se difundido pelo norte, e a ausência dela, em algumas áreas do norte, seria exatamente a prova da existência de uma distinção dialetal, entre o norte e o sul, antes da invasão árabe, conforme afirmação do autor. Isto me leva a crer que a metafonia deve ter surgido numa época mais antiga do romanço. E que época seria esta? Exatamente a da dominação germânica sobre a Península Ibérica, que vai, como se sabe, do século V ao VII D.C. É verdade que as várias tribos germânicas que lá estiveram, como a dos alanos, vândalos e suevos, não deixaram senão raros vestígios. Mas os visigodos, segundo Wartburg (1941), lá permaneceram por dois séculos e meio, e acabaram se fundindo com a população romanizada. A minha hipótese é de que a metafonia não remonta a uma fase tão antiga como a do latim, como diz Viana, mas à fase do romanço. As razões que me levam a formular tal hipótese são as seguintes: não se tem notícia de casos de metafonia no latim. A língua escrita disto nos dá um bom testemunho. A metafonia, porém, é um fenômeno de língua oral (só tardiamente registrado pela escrita, em alguns casos), portanto só o latim vulgar poderia nos dar esse testemunho. Todavia nas chamadas fontes diretas (ou documentadas) do latim vulgar, não há nenhuma ocorrência de casos de metafonia. Até mesmo o Appendix Probi, tão rico na documentação de fenômenos de natureza fonética, registra vários tipos de alternância vocálica, como o alçamento e a harmonização, ou ambos num mesmo verbete, das quais citarei apenas cinco exemplos a título de ilustração: (25) formica non furmica; (58) umbilicus non imbilicus; (64) senatus non sinatus; (86) cloaca non cluaca; (87) festuca non fistuca. O Appendix Probi não registra nenhum exemplo de fenômeno, que poderíamos chamar de metafonia. Ora, se não havia metafonia no latim, a metafonia portuguesa deve ter ocorrido numa época posterior. Se foi anterior à invasão árabe, conforme afirma Viana, só pode ter surgido na época da dominação germânica sobre a Península Ibérica. Reforça essa opinião o seguinte: os povos góticos ou godos se dividiam em duas tribos principais, os ostrogodos que estiveram na Península Itálica e os visigodos, que se estabeleceram no centro-oeste-sul da Gália, mais precisamente na Aquitânia, onde ficaram apenas 80 anos, e na Península Ibérica, onde ficaram mais tempo e se mesclaram com os povos autóctones, segundo Wartburg (1941). Pois bem, a curta permanência dos visigodos na Gália Meridional não foi suficiente para deixar influências na fonética; tanto que, nos dialetos provençais falados nas regiões que correspondem à antiga Aquitânia, não há ocorrência de metafonia. Já na Península Ibérica, o tempo de permanência foi bastante significativo: dois séculos e meio. Tentemos imaginar o que seriam dois séculos e meio, em termos de coexistência de duas línguas estruturalmente tão diferentes: latim e gótico. Deve ter havido uma fase "pidgin" inicial, onde o latim teria sido a língua base para os povos invasores e, posteriormente, uma fase bilingüe. A respeito do bilingüismo vejamos o que diz Silva Neto (1986, p.321): O bilingüismo, quer no caso do substrato, quer no caso do superestrato, é o traço de união, o ponto de contacto entre a língua que se abandona e a língua que se adota. Trata-se, portanto, de um fenômeno de capital importância, não só como fator de evolução lingüística, mas também como transmissor de traços de uma para outra língua. (grifo meu) Na fase bilingüe, os godos falavam o latim, emprestando a esse seus hábitos fonéticos. De acordo com Theodora Bynon (1983, p.27) o gótico, língua dos godos, hoje desaparecida, foi o primeiro dialeto germânico a ser documentado. Esse apresentava evidências de Umlaut, segundo a autora. A minha hipótese é de que, nessa fase bilingüe dos godos-romanos, eles tenham deixado uma influência na língua dos povos românicos com quem conviviam, muito mais significativa do que comumente os lingüistas admitem. Na fase de assimilação do latim pelos godos, estes deveriam usar a alternância vocálica, traço típico de sua língua materna. Numa terceira fase, em que ocorreu a vitória do latim sobre o idioma do povo politicamente vencedor, a língua local (o latim) já havia se transformado de tal maneira, que se pode falar numa outra fase lingüística, a qual não é mais latim. É a fase da mescla lingüística. Sintetizando o meu raciocínio, estou propondo que a época chamada de romanço se divida em três fases bem distintas: a fase "pidgin", a fase de assimilação do latim e a fase da mescla lingüística. Entenda-se como fase "pidgin" aquela em que os visigodos usavam apenas o que era essencial do vocabulário latino, sem fazer as flexões. Segundo Lehiste (1988), o "pidgin" se expande, para ser usado em grande variedade de situação de fala, quando o contato lingüístico é prolongado e institucionalizado, em razão de escravidão. ocupação de tropas, etc., como aconteceu na România, de um modo geral. Estou chamando de fase de assimilação do latim a fase bilingüe, em que os godos usavam ora a sua língua materna, ora a língua aprendida (o latim). Aqui poderia ocorrer muito freqüentemente o code-switching. Considero como fase da mescla lingüística, aquela em que não se distinguia mais o que era latim e o que era germânico: seria a fase do romanço propriamente dito. É nesta fase de mistura da língua autóctone com a língua invasora, com o triunfo da primeira, que teria ocorrido a herança da alternância vocálica. Outro fator que me levou a formular a hipótese acima, ou seja, a da influência de superestrato na questão da metafonia portuguesa, é o fato de os ostrogodos, a outra tribo dos godos, terem invadido a Península Itálica, conforme disse anteriormente. Em vários dialetos italianos, principalmente nos meridionais, foram constatadas evidências de traços metafônicos, segundo lingüistas que trataram do assunto. Dentre esses, há que se destacar Clifford S. Leonard Jr., com sua obra Umlaut in Romance (1978), onde apresenta uma visão panorâmica da metafonia na România. Poderia contrariar minha hipótese o fato de não se constatar a presença da metafonia em grandes zonas da Península Ibérica como a castelhana, a andaluza e a catalã, por exemplo. O fato é que nessas regiões, predominavam populações urbanas, não somente na época da romanização, como também na época das invasões germânicas e árabes. Por serem urbanas, eram também muito cosmopolitas. A superestrutura social germânica se estabelecera nessas regiões mais desenvolvidas culturalmente. A grande maioria popular, entretanto, deve ter se estabelecido nas regiões mais rurais. De acordo com Wartburg (1941), os povos germânicos estavam acostumados a viver no campo e dessa forma procuraram viver na Península Ibérica. Assim, não seria exagero afirmar que grande parte desses povos acostumados ao campo, teria se estabelecido ao sul de Portugal, região um pouco fora das de predominância urbana a que me referi, e, ao contrário, bastante periférica. Nessa região, onde provavelmente predominava a língua oral – já que a língua escrita andava junto com a escola e esta última era uma realidade longínqua – a língua dos povos latinos e já latinizados e a língua dos povos invasores passaram a viver num processo de simbiose, influenciando-se mutuamente, vencendo, posteriormente, a estrutura da primeira. A quase ausência de escolas e grandes centros culturais na região sul da Lusitânia faria desta um bom campo para que o dialeto ali falado desenvolvesse suas tendências naturais e recebesse influências de ordem fonológica, a que os lingüistas até hoje não deram a devida importância. Nas regiões onde havia um desenvolvimento cultural mais significativo, o dialeto gótico não passou à escrita. Os godos das cidades, ao contrário, escreviam em latim, a língua que haviam adotado, e todos os textos que eles deixaram, como o Código Visigótico, por exemplo, foram escritos em latim. Entretanto, as inscrições cristãs do período visigótico, onde podem ser encontradas evidências da língua oral, mostram fenômenos de assimilação, dissimilação, suarabácti e também de metafonia, segundo S. Silva Neto (1986). Um exemplo de metafonia que pode ser atribuído tanto ao /i/ como ao /u/ átonos finais, ou aos dois em conjunto, é o levantamento da vogal média anterior tônica que se transforma em i, conforme se pode verificar em Aurilius por Aurelius, citado por S. S. Neto (1986). Esse exemplo de traço de metafonia numa inscrição da época visigótica, se não é suficiente, pelo menos registra o fenômeno, numa época em que estou tentando demonstrar, ser a do surgimento da metafonia portuguesa. Parece difícil que, num espaço de 250 anos, o latim falado ao sul de Portugal, tenha convivido com a língua dos povos germânicos, que aí se estabeleceram preferentemente (cf. Wartburg, 1941), sem receber dela nenhuma influência fonética. Na minha opinião, a origem da metafonia portuguesa pode ser atribuída à influência do superestrato visigótico, muito provavelmente na região sul. É claro que aí estaria apenas o germe da questão, o ponto de origem da mudança. Ela precisaria ainda de mais alguns séculos, para se transformar em mudança propriamente dita e se incorporar estruturalmente, fazendo da alternância vocálica, algo característico do dialeto românico, falado ao sul de Portugal, que depois se espalharia pelo norte, chegando a atingir alguns dialetos espanhóis, como o asturiano e o leonês. Bibliografia BLAYLOCK, Curtis, "Hispanic Metaphony", Romance Philology, XVIII (3): 253-271, 1965. BUESCU, L. C., A gramática de Fernão d'Oliveyra, edição crítica, Leonor C. Buescu, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983. BYNON, Theodora, Historical Linguistics, Cambridge, C.U.P., 1983. CAFEZEIRO, Edwaldo M., A metafonia portuguesa: aspectos sincrônicos e diacrônicos, Tese de Doutorado, UFRJ, 1981. CAVACAS, Augusto d'Almeida, A língua portuguesa e sua metafonia, (Ed. fac-similada de 1920), Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 1992. CUNHA, Viviane, Um traço do vocalismo português: a metafonia, Dissertação de Mestrado, UFMG, 1991. 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Apud, Louro, 1961. 5. Cf. "Essai de phonètique et de phonologie de la langue portugaise", publ. em Romania (1893) e reeditada nos anos 40, no Boletim de Filologia. 6. Consultei a ed. de 1986. 7. Martinet, 1974, p.284. 8. Cf. Diaz y Diaz, 1981, p.46-53. |