![]() Não há quem não se espante, quando mostro o retrato desta sala, que o dia inteiro está mirando, e à meia-noite em ponto fala. Cada um tem sua raridade: selo, flor, dente de elefante. Uns têm até felicidade! Eu tenho o retrato falante. Minha vida foi sempre cheia de visitas inesperadas, a quem eu me conservo alheia, mas com as horas desperdiçadas. Chegam, descrevem aventuras, sonhos, mágoas, absurdas cenas. Coisas de hoje, antigas, futuras... (A maioria mente, apenas.) E eu, fatigada e distraída, digo sim, digo não - diversas respostas de gente perdida no labirinto das conversas. Ouço, esqueço, livro-me - trato de recompor o meu deserto. Mas, à meia-noite, o retrato tem um discurso pronto e certo. Vejo então por que estranho mundo andei, ferida e indiferente, pois tudo fica no sem-fundo dos seus olhos de eternamente. Repete palavras esquivas sublinha, pergunta, responde, e apresenta, claras e vivas, as intenções que o mundo esconde. Na outra noite me disse: "A morte leva a gente. Mas os retratos são de natureza mais forte, além de serem mais exatos. Quem tiver tentado destruí-los, por mais que os reduza a pedaços, encontra os seus olhos tranqüilos mesmo rotos, sobre os seus passos. Depois que estejas morta, um dia, tu, que és só desprezo e ternura, saberás que ainda te vigia meu olhar, nesta sala escura. Em cada meia-noite em ponto, direi o que viste e o que ouviste. Que eu - mais que tu - conheço e aponto quem e o que te deixou tão triste." Cecília Meireles |
Envie por e-mail esta página |