CURVA DO "S"

Pisei no pedal, o carro derrapou por uns metros e parou. Saltei.

– Tá louco?- gritou Pato Rouco pela janela.

– Preciso de ar - respirei fundo - preciso relaxar - limpei a lama da sola das botas no pará-choque - droga de lama grudenta! - acendi um cigarro.

– Aqui, no meio da estrada?

– Acende os faróis...- tossi - vem , vai te fazer bem.

Desceu, deixou a porta aberta, a luz sombria vindo do interior do carro derramou nostalgia.

Parou à minha frente.

– O que tá te mordendo?

Solidão num acampamento mexe com a alma, companheirismo solução indesejada, mas...

– Você já se perguntou o que tá fazendo aqui? - resmunguei.

– Exercecendo a profissão. Me mandaram praqui, cá estou.

– Coisa de milico, tu não é mais. Quando garoto te fizeram a pergunta o que queria ser quando crescer?

A pergunta não fazia sentido para ele.

– Pra que isso agora?

– Me fizeram...muitas vezes...não sabia responder...hoje eu responderia que queria ser eu, apenas eu...

Joguei fora o cigarro, acendi outro.

– Tô te estranhando - falou Pato Rouco - tá safado por causa deles? deixa Ele resolver.

– Ele quem?

– Ora, Ele!

– Deus? Não entra em puteiro!

– Ele está em to...

– ...acredita nele? eu não...crianças morrem de fome, AIDS ...as vezes fico em dúvida...ter presidente negro na África do Sul...talvez.

Luzes amareladas dos faróis na lama...tédio de discurso previsível apaga tudo...a ordenação da rotina é maliciosa, onde está ruptura? como deter, desviar, dividir o nãosentido?

– Você é muito complicado - falou Pato - a vida é simples...nascer, estudar, ter profissão, namorar, casar...

– Casar... aposto que tu casou com uma garota da sua cidadezinha, coleguinha do ginásio...coitada, não teve opção...agora ele deve pensar... por que, por que, e o meu futuro? pobre moça!

– Droga, tu tá agredindo...

– ...tá bem! esquece!

Iniciei um discurso previsível, tedioso, litânico, nunca pude mudar uma palavra em minha mente... estou encarcerado, me enfiaram num caixote, faço u que odeio, meu destino era outro, ser rico em vez de estar aqui no cu do mundo deveria estar em Paris, Londres, num cinco estrelas, fui criado para isso...

– ...chega, cara, tu já contou tua vida antes...ninguém tem nada a ver com isso...parece que seu passado, é sagrado...pra mim é medo...

Teria razão? encostei - me no carro e respirei durante um longo momento tudo que o mundo me oferecia de solitário naquele minuto...alguns passos, abri a braguilha...ouvi os grilos, era como se todas as vozes ouvidas em toda minha vida me chamassem, formigamento de seres arrebentavam em minha mente como as bolhas da minha urina no torrão de argila, pingos sobre minha bota abriram caminha na poeira, fendas minúsculas em minha vida...acendi outro cigarro, febril voltei perto de Pato.

– Amanhã faz sol - falei, levantei a gola da japona, estremeci.

Ao longe um farol, entrei no carro, manobrei o Fusca, o deixei encostado no barranco, o caminhão passou gemendo, saltei. – Vergalhão para a obra - falou Pato.

Não respondi...obra, repetição diária, o prêmio da minha perseverança o que era? olhei o céu , estrelas, lágrimas nos meus olhos? fixei a mais brilhante...oh ponto secreto, longínquo, atraia toda a solidão da minha vida...só consegui suspirar.

Entramos no carro, manobrei , tomei o caminho da volta.

– Vão dar trabalho - falei.

– Curva do "S", puteiro de candango, terra de ninguém... por que os levou?

– E adiantaria recusar? Esses merdas vem do Rio pra comer puta rampeira aqui...

–...diretores da empresa...cheios da grana...não dá pra sacar...

–...não passam de burgueses, um mal do qual ninguém escapa, nocivos até para eles mesmos... o lúdico, o riso, a poesia para eles inexiste... são uma farsa, uma caricatura...

–...não complica - interrompeu Pato - só querem dar uma bimbada fora de casa, nunca deu?

– Sim, mas eu tenho a minha razão...fugir, me opor a valores estabelecidos, caminhar à margem deles...o acampamento é um gulag, me sentir livre só nos braços de uma mulher...qualquer uma...eles não, vão pra lá por motivos banais, só pra dizer... não sou mais criança, tenho poder, tenho dinheiro, faço o que quero com quem eu quero...não falam para as putas...falam para nos...

– ... você é muito complicado...um snobe, um caga regra.

As palavras dele me enervaram...ele tem razão, quero viver numa realidade inexistente, numa eternidade fugidia, estou cheio de revolta, procuro compaixão...

– Tá com o teu berro?- perguntei.

– Sempre - bateu com a mão no bolso direito.

– Me dá ele!

Estacionei num lamaçal em frente a um casebre de madeira, som de sanfona, entramos...luzes iluminavam sombras relutantes, fantasmas em luta por alegria, o ambiente um personagem vampiresco degradante como a doença, pares no centro do salão um arrastar de correntes, a espera da morte? a negação da vida? contudo percebi matizes de felicidade, um rosto aqui, acolá puro como uma brisa, risadas frescas... a sanfona parou seu mugido, sinal de encrenca...

– Tu pega um, eu o outro. O teu tá lá, bebão - falei.

– Cara, o teu tá num empurra empurra com...

– Já vi. Deixa comigo.

Caminhei entre as mesas, os de pé não se afastaram, empurrei na medida certa, mulher encostou a bunda, parei, desistiu, continuei, segurei o engravatado pelo colarinho do paletó, comecei a arrastá - lo.

– Aqui não tem doutor - falou um sujeito alto e magro - tá se engraçando pra minha muié...vai ter que...

–...tua mulher tá na tua casa, aqui mulher é de todos...afasta! vá pra casa!

Puxei a minha presa, a sanfona recomeçou, respirei aliviado, saí

– Doutor, doutor! - escutei.

Retirei a arma do bolso, esperei.

– A conta, doutor.

Guardei a arma.

– Mando pagar amanhã.

Pato no carro com o braço entorno do pescoço de seu companheiro, aguardava.

– Só com gravata - falou.

– Aperta! - respondi.

Ouvi um gemido.

– Porra - falou minha presa - eu tava...

Esbofeteei ele.

– Cara, vamos nos ferrar - falou Pato.

– Amanhã é outro dia !

Me senti muito cansado.