O INDIO
A manhã despontou, o sol subiu célere um salto acima do horizonte, a terra cobriu - se de ouro e calor , vente leve ergueu - se , ar com gosto de poeira veio refrescar as mãos no volante do homem suado e cansado, a estrada solitária seguia no alem ...
...ao meio dia o vento cessou , o dia explodiu como melancia madura , suco morno e sufocante escorreu pelas costas dele, deu -se conta do tédio, do cansaço , a terra quente esmagada pelo sol exalou sopro abafado, impregnou ele com o odor do seu próprio suor misturado com o cheiro dos gases do escape da caminhonete, deu - se conta de repente do cansaço, de que estava a caminho do nada , fugindo do tudo, lembranças lentas subiram dentro dele , uma pedra pela garganta , respiração acelerada , sorriso crispado, vomito , despejou o fétido pela janela , acendeu um cigarro, engasgou - se com a fumaça, o fôlego enfraqueceu , aspirou golfada de ar , peito roncou , barriga da perna tesa , mãos insensíveis , olhos abertos como para a morte...nada , nenhum amor, um deserto infinito de solidão, sua ultima cartada?...
...parou na porta do boteco , entrou...
–... café, água...
...sombras indicavam presenças, imobilizados o olharam, o homem de trás do balcão colocou copo com café fumegante e garrafa de água à sua frente, o viajante cuspiu saliva seca no chão de terra.
– Vem donde?
– Mombaça! E aqui?
– Carira – respondeu uma sombra. – Vai pra donde?
– Poço Verde! – falou o homem sentado numa mesinha.
O recém chegado olhou:
– Como sabe?
O viajante virou - se , ondas de sangue subirem - lhe nas temporãs.
– Sei quem é – continuou o homem da mesinha – É um deles, chupa - sangue.
Diante do olhar sombrio do outro ele viu o ambiente de repente com cores brilhantes , o cenário deprimente clareado.
– Não liga pra ele, moço – falou um dos presentes. – Diz isso pra todos os de fora...
–...o caboclo me deu guarida – a voz monocordia devolveu o mal estar ao viajante .– O cachorro dele era louco, tinha que ser morto...
– ...não quis atirar pra não gastar chumbo – falou uma das sombras .– Ai...
– ...amarrou dinamite no pescoço do bicho – continuou outra – . Esticou o pavio...
– ...o bicho quase desfalecido , como podia saber? acendi o pavio , o danado se reanimou e correu de volta pra casa , que nem vento... o casebre explodiu, morreu o bicho, a mulher, o caboclo endoidou , correu aos berros, a alma penada dele vagueia por ai...
O viajante estremeceu.
– ...o índio –, falou o homem de trás do balcão – Diz que chama ele, diz que é a alma do bicho, da mulher, do caboclo, tudo junto, lá da beira do precipício, manda ele se jogar de lá, mas aqui é tudo liso que nem mesa de bilhar.
Em algum lugar uma porta bateu, o eco lúgubre aumentou mais o silencio.
– Fantástico demais, coisa de ...
– ... chupa - sangue ?
– Vampiro!
– Sim – falou o da mesa –. Conheço a historia dele...
– ...e quem não conhece? ele...
–...o recém - nascido e ela pela catinga, o peito dela murcho e seco, pegou a peixeira e se cortou , bem ali na veia, a criança sugou o sangue, foram encontrados , ela morta, ele vivo...agora tá crescido e anda por aqui... o moço é ele?
O viajante encostou - se no balcão , respirou tudo que o mundo lhe oferecia de estranho e solitário naquele momento, a solidão na pobreza desse local , terrível miséria...
– Não pode ficar aqui – escutou.
– Eu a amava – falou o viajante com esforço – Marta...
...a conhecera há alguns meses, atraído pela sua beleza e elegância , rosto de menina num corpo alto e cheio, lábios pintados a faziam parecer com uma deusa desenhada , mas com um ar longínquo e impassível , ele vislumbrara o futuro através dela , toda a força do seu desejo se fixara nela , sentira isso como um milagre, tornara - se amante dela no mesmo dia... com os braços ao longo do corpo, uma das pernas semidobrada, deus solitário atirado em um mundo estranho, ele a desejava...não gosto que me olhem quando estou dormindo...querida, que mania sua!...não me chame de querida... de costas para ele, conhecia esse hábito dela, agora isso o irritava, colado à ela , apalpava o ventre , os seios, ouviu ao longe choro de criança, miados, os postes da rua iluminando o quarto, de quando em quando carro passando, cheiro de feijão cozinhando vindo da rua, baforadas pesadas...desde ontem você está estranha...sacudiu os ombros dela, ela ainda imóvel, a escuridão de repente espessa...aquele sujeito de ontem, foi teu amante?...sim e não, não de todo ...ele não disse mais nada, lembrou - se dos gestos, das palavras, dos sorrisos, cerrou os dentes...quantos amantes?...não aborrece, uns dez...conheço eles?...alguns...vontade louca de acender um cigarro, acariciar a bunda dela, não ousou, esfregou a testa no ombro dela...escute, minha amada, promete me dizer o nome deles, dos outros que não conheço também , se os encontrarmos vai mostrá - los...ela atirou-se pra frente...essa não!... um carro buzinou , uma vez, duas vezes , a luz do relógio digital piscava , sentiu frio ...se eu não souber cada cara que encontrar vou me perguntar , vou imaginar... nomes , o último era alguém que conhecia , conquistador inveterado, a sordidez do amor fácil, induzido , ela e aquele filho da puta, sentiu um nó na garganta, algo no estômago o corroía, a penetrou com violência...é assim que ele fazia?...ah!...cale a boca!... mãos poderosas apertaram a garganta alva e alongada...
– Quer um quarto? – falou uma das sombras.
Sentado na cama turca, o viajante desabotoou a camisa, afrouxou o cinto, olhou - se no caco de espelho à frente, rosto de traços abatidos, escurecido, barba de três dias , cabelos despenteados e grudentos , poeira e suor, duas rugas profundas entre as sobrancelhas , olhou em volta, tabique sujo e repugnante, geografia de imundície , universo de miséria , inspecionou os lençóis amarronzados , viu um fio lustroso de sujeira caindo do teto , detritos de mosca colados nele , uma lâmpada pendia ali.
O viajante deitou - se , adormeceu .
Despertou suando, amarrotado, acendeu um cigarro , cabeça oca , olhou às calças sem vinco , na boca mistura do amargor do sono e do cigarro, coçou - se debaixo da camisa, suavidade terrível diante de tamanha solidão e abandono, longe de tudo, diante dele surgiu a imagem secreta e vergonhosa da liberdade nascida da morte, da fuga, à sua volta lama, minutos monótonos...
Bateram na porta com violência.
– Vem! Ele nos espera !