"PERDIDO"
– Interessante o jazz...poucos entendem...escuta o piano. . . um tema melódico, depois o improviso, nota após nota... tem que acompanhar, escutar com atenção, seguir, desvendar se não você se perde. . . acaba ouvindo apenas ruído, assim
é a vida, né? desvendar. . . apenas isso...tão tocando Perdido, a melhor gravação de Duke... ke. Apropriado, né?
O mutismo de Justino não o desencorajou.
– Você não tem cara de quem curte jazz - continuou - Certo, certíssimo, os fãs do jazz não tem cara. Olhe ao seu redor. Prostitutas, drogados, empresários, ali tem um china, do lado oposto um perneta, damas da sociedade, cabeludos, barbudos, caras bem barbeados, menininhas, college boys, se me entende o quê quero dizer. . . e muitos bêbados, ou quase. . . eu .. um funcionário público aposentado, Mansur
às suas ordens. E você?
Justino parecia entediado, rosto sem animosidade.
– Vamos acabar a noite no meu apartamento. . . não precisa ter medo. . .. gosto de mulher. . . sou colecionador de disco, tenho as gravações antigas da Decca, o concerto de São Francisco, ao vivo.
Justino acabou sua bebida.
– Permita - me .
O homem pagou a despesa.
Saíram do Merídien ao som de How high the moon.
II
Justino sentou-se numa poltrona semi decrépita.
Mansur movimentou garrafas e copos num bar antiquado.
– Dranbury. Adequado para o que vamos ouvir.
O 78 rotações começou pelo chiado, o pistão seguiu límpido.
- Bechet! O rei! Não é soberbo?
Justino sorriu, levantou-se, apanhou um disco da pilha e o espatifou no chão.
Mansur gritou, outro disco seguiu o destino do primeiro.
– Pára! Tá louco?
Ajoelhou-se , catou os pedaços.
Justino segurou um terceiro disco, Mansur olhou assustado.
– Por favor! Chega!. . . me obrigaram.
A porta se abriu, dois homens entraram. Justino colocou o disco com calma sobre a pilha.
– Mansur- falou o mais alto - Se manda!
O mais baixo sentou-se ao lado de Justino e começou a falar.
III
Justino desceu do táxi, pagou ao motorista. Seguiu com o olhar o carro afastar-se, parte dos Arcos surgiam acima dos telhados, das árvores. Entrou no casarão, subiu as escadas decrépitas, no corredor hesitou por instantes, parou em frente à porta mais afastada dele. Bateu.
– Entra!
Perfume barato o nauseou. Viu as costas magras, omoplatas salientes. O rosto pintado refletia-se no espelho, toca de meia cobria a cabeça, peruca loura jazia em cima da penteadeira.
Justino aproximou-se.
– Não olha!
Cimaron colocou a peruca com maestria e levantou-se.
- Mixé só mais tarde!
Justino examinou o corpo esguio, os seios pareciam brotar das costelas, silicone, a barriga musculosa, as coxas cavadas, Cimaron pareceu adivinhar o pensamento do homem a sua frente, virou-se, a bunda um primor, desenhada a compasso.
– Cenzinho!
Justino olhou por instantes...vestiu as luvas de borracha com calma.
– Pra enfiar a mão são duzentinhos.
Justino abriu gavetas, revistou o armário, revirou as roupas, numa caixa de sapatos achou o vídeo, colocou o volume no bolso do paletó.
– Isso é ultrajante!
Justino riu como se tivesse ouvido uma ótima piada. . . ultrajante. . .. veja só!
O canivetão apareceu na sua mão direita.
Cimaron colocou-se de bruço na cama, a bunda empinada.
Justino recolheu o canivetão.
IV
Tornou-se sua amante, seu amparo, o despia, murmurava. . . quero essa coisa toda. . . tocava nele com tanta suavidade que nem parecia toque, os dedos em suas partes duras e saudáveis até o seu corpo deixar de ser apenas ossos e músculos, excitavam-se mutuamente, faziam amor.
Dias se passaram.
V
– Vejo que ainda gosta do jazz. O piano. . . uma pobre imitação de Art Tatum. Só Oscar Peterson tem a mão direita igual - falou Mansur.
Justino calado movimentou os cubos de gelo.
– O pessoal tá impaciente - continuou ao levantar-se.
Saíram ao som de Misty.
VI
– Não matou Cimaron - falou o homem alto.
– Não tá certo. Trato é trato - falou o mais baixo.
– Ouviu? Trato é trato. O delega não vai gostar.
Justino pensou na bunda desenhada a compasso, conteve a respiração.
–Não cortou ela!
– Não mesmo, não mesmo - falou o mais baixo.– o vídeo?
Justino olhou na direção de Mansur.
– Ta com ele? Turco safado! Passa o troço pra cá! queria uns trocados, né?
O homem alto olhou pro Justino, sinalizou.
Mansur riu nervoso, sacudindo a cabeça, pingando suor, a lâmina penetrou sem dificuldade, Justino colocou a mão no bolso do corpo, retirou o pacote e o jogou aos pés do homem alto, canivetão à mostra.
– E Cimaron?- perguntou o mais baixo.
– Esqueça!- falou o mais alto.
Justino largou as luvas e o canivete em cima da pilha de discos.