RODADA DE FOGO

Estacionou o carro, subiu alguns degraus até a varanda, entrou na casa de hóspedes pela porta de correr envidraçada semi aberta, jogou-se numa poltrona, acendeu um cigarro, olhou o relógio no pulso, nove horas da noite. Entediado espiou ao seu redor. Construção rústica, paredes de alvenaria até o inicio da estrutura do telhado sem laje de forro, madeirame sólido, excelente acabamento, belo contraste com o vermelho das telhas de barro; paredes caiadas, realçavam o tijolo maciço colocado com maestria, chão de tábuas corridas envernizadas brilhava. Na sala de jantar, mesa de madeira maciça, ao redor cadeiras pesadas assentos forrados em couro, tapete de pele de animal felpudo, encostado numa das paredes o bufê de madeira entalhada, na sala onde se encontrava, um sofá, duas poltronas fundas e largas, o conjunto forrado em couro, uma mesa de centro baixa de mármore, debaixo pele de boi. Cortinas, mesinhas, abajures , vasos completavam com quadros a decoração. Num canto da sala o bar bem sortido. Numa viga de madeira lustres de ferro batido. A porta que conduzia aos quartos à sua frente, outra perto do bufê dava acesso à cozinha. Duas tragadas, jogou o cigarro no cinzeiro. Levantou-se, no bar serviu-se de uísque importado. Enxergou à sua direita num canto da sala, a mesa de jogo, pano verde em cima, baralhos novos fechados e a caixa com fichas. Em torno da mesa cinco cadeiras, mesinhas ao lado com cinzeiros. Pensou no pôquer que estava por acontecer. Ia ser um jogo safado. A recomendação era deixar os três ganharem. Chato.

Ele jogava por prazer, gostava de ganhar, cauteloso, jamais blefava. Tinha por hábito estudar os parceiros um a um, até descobrir indício que anunciava a boa mão, tossida fora de hora, um coçar no nariz, um mexer na cadeira, um piscar de olho, uma mudança no tom de voz. Algumas rodadas bastavam, sorte e azar cíclicos, aproveitava a sorte, escapava do azar. Apostava pesado no four figurado, no flash. Procurava sempre manter o cacife intacto. Perdia por pouco. Não insistia quando o parceiro apostava com segurança, fugia , as vezes pagava para ver. Tomava cautela na rodada de fogo. Vira muito ganhador espatifar-se no final.

Conhecia seus parceiros. Gustavo, vaidoso, profissional medíocre, seu superior. Fernando, diretor da estatal, inteligente, bebia demais. Edgard, supervisor, corrupto confesso, bom vivant, mulherengo. Paulo, jovem engenheiro, assistente do Fernando, burocrata, infantil.

A porta que dava acesso aos quartos abriu e Gustavo apareceu. Gil de mal humor, resolveu cutucar.

– Pronto pra perder?

–Vê lá o que vai arrumar. Esqueça o Edgard e Paulo. Está tudo combinado com eles. Fernando tem que ser o ganhador. Depois eles dividem.

Decidiu naquele instante que não se envolveria.

Edgard e Paulo iam fugir sempre. Apenas alguns pingos para disfarçar. Ele fará o mesmo. Deixará o Gustavo tomar conta da sacanagem.

Os dois em silêncio, Gil fumava, Gustavo brincava com o gelo no copo. Escutaram o barulho do carro.

Gustavo levantou-se, foi até a varanda receber os convidados.

Entraram os três. Depois dos cumprimentos, serviram-se de uísque.

Papearam durante algum tempo. Após o terceiro drinque, Gustavo convidou-os para tomar lugar à mesa de jogo.

As regras foram estabelecidas: abertura mínima par figurado, pingo obrigatório sem repique, aposta mínima para ir ao jogo a soma dos pingos.

Gustavo foi sorteado para dar as cartas, Gil à sua direita, Edgard ao lado do Gil, depois Paulo, Fernando em seguida. Na quarta rodada Fernando abriu. Gil pediu três cartas, Edgard também, Paulo uma, Fernando duas, Gustavo três. Este apostou, Gil passou,

Edgard e Paulo também. Fernando dobrou a aposta, Gustavo aumentou. Os outros três desistiram. Fernando repicou em cima do Gustavo. Este jogou as cartas em cima da mesa. Fernando ganhou a parada. O jogo começara.

Passadas duas horas, Gustavo estava no quarto cacife, os outros no segundo, resultado dos pingos obrigatórios, Fernando ganhador.

Entusiasmado pela "sorte" e uísque, propus alteração nas regras, abertura mínima dois pares figurados, pingo no escuro, repique permitido, apostas depois da abertura livre. Gil pediu pausa, encaminhou-se ao banheiro. Gustavo o seguiu.

– Vê se para de bancar o gostoso e assume também.

– Tô de saco cheio. Meu dinheiro tá na roda. Esse porra louca do Fernando é um filho da puta. A nova regra vai sacanear. É uma droga de rodada de fogo.

– Se perder a companhia ressarce.

– Nada feito. Vou jogar pra valer.

Gustavo soltou um palavrão, Gil não ligou, estava puto da vida com aquela corrupção babaca.

Voltaram à mesa. Gil comprou três cacifes. Gostava de jogar com muitas fichas à sua frente. O jogo recomeçou. Cartas foram dadas.

Pingos obrigatórios feitos, Fernando dobrando, os outros completando. Após três rodadas Gil anunciou a abertura. Edgard apostou,

Paulo acompanhou, Fernando dobrou, Gustavo dobrou em cima, os outros completaram. Edgard pediu três cartas, Paulo acompanhou, Fernando pediu duas, Gustavo anunciou feito, Gil apanhou duas cartas. Descartara um ás e um dez. Entrou um rei, era o que ele esperava, four de reis. Edgard passou, Paulo também, Fernando apostou alto, Gustavo aumentou, Gil subiu, Edgard e Paulo fugiram. Fernando duplicou, Gustavo subiu de novo, Gil colocou um pouco mais. Fernando subiu de novo. Gil olhou as fichas do Fernando, quase todas sumidas, Gustavo parecia doido, comprou mais cacife. Gil compreendeu. O jogo transformara-se num combate entre os dois, Fernando esquecido. Gustavo apostou alto em cima do Fernando, Gil aumentou um pouco, Fernando fez a última tentativa, pagou para ver, Gustavo não aceitou, repicou. Gil parou para pensar. Four de reis, bom jogo. Gustavo se tivesse four, seria menor do que o dele. Jogo feito? Quem sabe, um possível full ou seqüência. Ele não podia ser tão burro assim. Com certeza era um four. Gil continuou pensando. Flash de mão num jogo de cinco, pouco provável mas não impossível. Royal, nem pensar. Era isto que fazia o Gil vibrar, a incerteza, o risco calculado. Resolveu apertar, aumentou. Fernando jogou as cartas em cima da mesa.

Gustavo desesperado procurou pelas fichas. Não havia mais.

– Não há mais fichas. Ponha dinheiro na mesa se quer continuar.

– Porra Gil, não sacaneia. Aposto a minha palavra. Se perder pago.

– Nada feito. Faça um cheque.

– Cheque, porra nenhuma.

Gustavo tirou o relógio do pulso, o jogou em cima das fichas.

– Meu Rolex vale o dobro da tua aposta.

Gil percebeu que Gustavo queria melar o jogo. Não tomou conhecimento. Contou as fichas que ainda restavam do seu cacife. Não dava. Meteu a mão no bolso, tirou dinheiro. Não era suficiente. Tirou o seu relógio do pulso.

– Minhas fichas, o dinheiro , o meu Seiko. Suficientes pra ver. Concorda? Pago pra ver.

O silêncio dos outros pareceu satisfazer Gustavo, mexeu com a cabeça sinal evidente de concordância.

– Ponha as cartas em cima da mesa. Vamos ver.

Gustavo as jogou como se queimassem a mão, four de valetes. Gil com vagar exagerado, colocou um rei após outro até o terceiro. Deixou Gustavo imaginar um full. Olhou os parceiros. Ninguém se mexia. Colocou o quarto rei devagar, sorriu.

Gustavo empalideceu, soltou um palavrão, jogou o seu copo no chão, quebrou em pedaços.

Sentiu um tapa amigável nas costas. Era o Edgard. Começou a simpatizar com o cara. Paulo fez um comentário bobo, que sorte, demostrou não entender nada do jogo. Fernando bêbado parecia dormir na cadeira. Gustavo calado, apanhara outro copo e o enchera de whisky, bebeu aos goles. Gil apanhou seu Seiko, o colocou no pulso, manteve o Rolex na mão. Fichas contadas, pagou-se à caixa. Gil guardou as notas junto com o Rolex.

Gustavo parecia surpreso.

Mais uma bebida, despedidas em seguida.

Em casa fez o balanço dos ganhos, um bocado, nada que falisse a companhia. Sabia, Gustavo ia cobrar da empresa. Pegou o Rolex, olhou com atenção, colocou no pulso.

Nem precisou mexer na pulseira.

Era seu!