R O S T O

Pra que tu falou aquilo?

por nada !

tu disse que pelo menos ele tem rosto bonito...pelo menos? merda! tá a fim de dar pra ele?

........?

quê que há ? engoliu a língua?

vê se tô na esquina !

tu já deu pra quantos ? aposto que tu se engraçou pro lado do Ismael.

não enche !

...o pensamento tava lá, me matava, o cara era como irmão, sempre no meu corner, cuidava das feridas, aconselhava... não precisava, no quadrilátero eu era mais eu...ele tinha aquela lábia, dizia que as donas tinham o direito de agir assim por causa delas ser castigadas pelo Todo Poderoso, nasceram sem aquilo...ele falava difícil, castradas dizia, sem penis, eu dizia por que tu não fala logo capadas, caralho, respondia que era assim que um tal de Froide se referia àquilo...Froide isso mais aquilo, eu já tava louco pra encontrar esse careta, acertar ele pra valer, afinal que direito ele tinha pra se meter na vida da gente...

...me aproximei dela, emboulachei o rostinho moreno, os olhos negros dela me encararam, pareciam sem vida, me senti mal, muito mal mesmo, queria me ajoelhar, colocar a cabeça no colo dela, pedir perdão, mas eu era durão, não dava...suor escorregou pela testa , parou instantes na cicatriz, caminhou pelo nariz torto...tantas porradas !...me olhei mo espelho, neca de rosto bonito, saudades de quando me chamavam de bacana...cicatrizes, muito sangue escorrido por elas...nunca beijei a lona, mesmo quando perdia a luta, nada me derrubava, sei porque mandei o Ismael uma vez, faz tempo, enfiar a porrada no queixo, uma duas três dez cem vezes sem parar, ele cansou e eu continuei encostado nas cordas com aquele sorriso estúpido...agora lágrimas se misturavam com suor...não podia perder ela, era doidaço por ela, onde um cara como eu ia arrumar outra igual...diabos, eu vivia cercado por filhos da puta doidos pra comer ela, que dava pra sacar , ela também não deixava por menos sempre com o rabo em algum troço justo e curto, era o seu jeito, quando eu dava bronca ela dizia... é tubinho, amor, tá na moda...moda porra nenhuma, que se dane, afinal foi assim que a conheci e a fiz minha, eu era o melhor, mas Deus, o que deu na telha dela achar que o cara tinha um rosto bonito...a verdade tem que ser dita, eu também achava, mas droga, ela falou alto na frente dos outros, vi os olhares, merda, mil vezes merda, soquei o espelho com uma cabeçada, a testa sangrou...

...antes de bater a porta dei uma olhadela na cama, ela não tava nem aí, lixava as unhas, parecia o troço mais importante de sua vida...

..a mulher ouve a porta bater, o silêncio no quarto a assusta , deixa cair a lixa no colo, os braços inertes ao seu lado...se levanta, vai ao armário, recolhe vestidos, jeans, sapatos, calcinhas, camisetas, joga tudo na mala, passa o fecho éclair, caminha até a porta, olha para trás, vê uma foto envelhecida presa num canto do espelho, os três rindo, a mulher abraçada pelos homens, jovens os três, ela volta, passa um dedo de leve sobre o rosto do mais baixo, troncudo, o dedo hesita, se aproxima do rosto do outro, cabelos cacheados, olhar sonhador, retira a mão, coloca a mala no chão, uma lágrima escorre no rosto moreno, suspira... põe tudo de volta no armário, a mala debaixo da cama, se senta na cama, apanha a lixa do chão, recomeça o trabalho nas unhas...

Corri da chuva, entrei no bar, encostei no balcão, pedi um conhaque, o espelho à minha frente realçou o nariz torto, saco, tem espelhos demais espalhados por aí, desviei o olhar, vi uma barata passeando em cima do balcão, um peteleco nela, caiu na chapa quente junto à rodela de carne moída, fritou de pernas pro ar, achei duca...um velho com o nariz enfiado falava sem cessar...Cristo podia ser mulher, Cristo podia ser mulher, Cristo po...a vagabunda na outra ponta emendava aos gritos...com sete rabos...a cada Cristo acrescentava mais um rabo, no décimo segundo rabo parei de prestar atenção...céus o mundo tá entupido de loucos...engoli de uma só vez a bebida, paguei, na saída passei pela dona que já tava nos trinta rabos e perguntei, tu me acha bonito? e ela respondeu, cara, que nariz horrível, pois eu acho teus sapatos lindos, falei, joguei cem pratas no colo dela, ela tirou os pisantes, os colocou em cima do balcão, vermelhos, pontudos, os saltos um monumento, coloquei um em cada bolso da capa...Cristo podia ser mulher...com quarenta rabos...

– Toma - falei ai entrar no quarto - vai usar eles amanhã de noite...

Ela soprou as unhas pontadas de vermelho.

Muita gente, diria até que não havia nenhum lugar vago, queriam me ver beijar a lona...Ismael falava sem parar no meu ouvido...começa com o um - dois no estômago, no coração, no fígado , cruza de vez por outra no queixo, não dá espaço...porra, Ismael, não enche o saco, tô cansado de saber das coisas, mas hoje vai ser diferente, fica de butuca...cara não inventa...vá encher o cacete...deixei ele falar, dei espiada, ela sentada bem na frente ao ringue, como sempre rodeada de valetes...soquei a direita na esquerda, apertei os dentes na borracha, o gongo soou , levantei rápido, já tinha manjado o cara quando o juiz cantou a ladainha dele...mais alto, musculatura lisa, boa estampa, rosto quase sem barba, sem cicatriz, nariz reto, lábios carnudos, cabelos engomados, os olhos...ah, os olhos...encagaçados, o puto ia fugir da porrada, ia esquivar, bailar, vai querer ganhar por pontos, deixa ele...tenho tua receita...

...parado à frente dele, deixei ele jabear, enfiar a esquerda e pular pra trás, nenhum soco meu por enquanto, nem direto, nem cruzado, nem upper, enfiava a cara, ele jabeava, no terceiro round fingi queda, levantei na contagem de cinco, ouvi vaias...fodam - se, querem sangue?...eu sorria que nem imbecil , deixei ele abrir meu supercilio , lambi o sangue nos lábios, guarda aberta, esquerda baixa, a direita boba, não me esquivei uma só vez, no meu corner Ismael aporrinhava ...o que tá arrumando, seu puto? tu tá por baixo na contagem, o juiz vai te ferrar, acham que tu tá entregando...mandei ele cuidar do corte não encher, o gongo bateu, coloquei a cara no caminho do direto, meu nariz virou papa, arrogância nos olhos, se descuidou...é agora...esquerda - direita, encurralei ele nas cordas, me servi à vontade, arrebentei o lindo nariz, bati pra valer, nada de socar o corpo, só rosto, um - dois, um - dois - três, nariz - nariz, espirrou sangue por todos lados, salpicou meu rosto, lambi com prazer, a borracha pulou da boca dele, bati, bati, o juiz tentou parar a luta, o empurrei pra longe, cruzei no queixo, na queda do lindo rosto enfiei um direto abaixo da sobrancelha, ouvi osso estalar...porra, cara, tu não tá mais bonito!...

...o braço levantado pelo juiz, olhei pra ela, sorria...as pontas dos sapatos vermelhos apontavam na minha direção...