Necrologio de Machado de Assis (Gazeta de Notícias do
Rio de Janeiro8.10.1893): " Editar obras jurídicas ou escolares não é
mui difícil; a necessidade é grande, a procura certa. Garnier, que fez
custosas edições dessas, foi também editor da obras literárias, o primeiro e
o maior de todos. Os seus catálogos estão cheios dos nomes principais, entre
os nossos homens de letras. Macedo e Alencar, que eram os mais fecundos, sem
igualdade de mérito, Bernardo Guimarães, que também produziu muito nos seus
últimos anos, figuram ao pé de outros, que entraram já consagrados, ou
acharam naquela casa a porta da publicidade e o caminho da reputação
.(Transcrito in: Machado de Assis. A Semana. V. 1. São Paulo:
Mérito, 1959. p. 395 - 400) " .
" [ Garnier morreu], deixando quase sete mil contos, por uma época em
que as livrarias, como a do Briguiet, eram montadas com dez contos de réis,
legando toda a sua imensa fortuna ao irmão, já podre de rico, livreiro em
Paris. À pobre mulher com quem vivia maritalmente deixou apenas 80 contos.
(Edmundo, Luís. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1938. p. 705.).
A Livraria Garnier dividia com a Eduard Laemmert
(Universal) o mercado de livros, concentrando-se na publicação de literatura.
Dirigida pelo francês Baptiste Louis Garnier, seus livros eram impressos em
Paris e Londres. Criada em 1844 e considerada a principal responsável pelo início
do desenvolvimento editorial brasileiro, a Garnier teve a seu favor pontos
importantes como pagamento regular de direitos autorais, boa remuneração aos
tradutores, formação de um corpo fixo qualificado de redatores-revisores e
maciço investimento em literatura, tanto européia quanto nacional. Baptiste
Louis publicou, entre outros, Honoré de Balzac, Walter Scott, Charles Dickens,
Alexandre Dumas e Oscar Wilde. Com forte tino comercial, conservador e nada
afeito a riscos, ele priorizava a edição de autores consagrados. Editou a
maioria das obras dos romancistas brasileiros importantes de seu tempo. A
numerosa equipe de autores da Garnier incluía José de Alencar, Joaquim Manuel
de Macedo, Graça Aranha, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Joaquim Nabuco,
Sílvio Romero, Olavo Bilac, José Veríssimo, Artur Azevedo, Bernardo Guimarães,
Paulo Barreto (o João do Rio). Baptiste Louis Garnier foi também o pioneiro e
principal editor de Machado de Assis.
No interior da Editora Garnier, no andar térreo, um em
frente ao outro, dois extensos balcões de madeira de lei polida separavam as
estantes das 12 cadeiras que serviam de palco aos informais debates literários
que se realizavam todas as tardes sob a liderança de Machado de Assis. Eram as
"cadeiras dos doze apóstolos". O mestre era Machado de Assis, o único
a ter lugar cativo. Os demais se revezavam entre os escritores que alcançavam
consagração em diferentes períodos. Machado de Assis manteve longa liderança
nessa que foi praticamente a única grande editora a publicar autores
brasileiros. Por esse motivo, escritores que almejavam editar seus livros na
Garnier disputavam a possibilidade de desfrutar das conversas de fim de tarde na
editora e, na melhor das hipóteses, a condição de serem incluídos entre os
"apóstolos". José Veríssimo, Mário de Alencar, Joaquim Nabuco, Clóvis
Beviláqua, Coelho Neto, Olavo Bilac foram assíduos nesse ritual e desfrutaram
da benevolência do mestre.
Numa sociedade restrita, em que uma editora reinava
soberana na publicação de autores brasileiros, os escritores novatos não
tinham muitas opções para editar seus livros: deviam "cair nas boas graças"
de Machado de Assis ou dos poucos editores da capital. Outra forma era publicar
em fascículos nos jornais da capital federal ou mesmo nas capitais mais
importantes, como São Paulo. Fora dessas opções ou até mesmo para atingi-las
deveriam freqüentar livrarias, cafés, salões e confeitarias, anunciando seus
produtos, ou seja, recitando seus poemas, declamando suas crônicas ou lendo os
capítulos dos livros que escreviam. Esse ritual mundano era tão intenso, que
Brito Broca menciona autores, como Paula Nei, que permaneceram toda a vida
alimentando o circuito da "literatura oral" dos cafés e confeitarias,
sem ter conseguido editar um livro sequer.
Garnier
Machado de Assis
(1893, outubro)
Segunda-feira desta semana, o livreiro Garnier
saiu pela primeira vez de casa para ir a outra parte que não a livraria.
Revertere ad locum tuum -- está escrito no alto da porta do cemitério de S. João
Batista. Não, murmurou ele talvez dentro do caixão mortuário, quando percebeu
para onde o iam conduzindo, não é este o meu lugar; o meu lugar é na Rua do
Ouvidor 71, ao pé de uma carteira de trabalho, ao fundo, à esquerda: é ali
que estão os meus livros, e minha correspondência, as minhas notas, toda a
minha escrituração.
Durante meio século, Garnier não fez outra cousa, senão estar ali, naquele
mesmo lugar, trabalhando. Já enfermo desde alguns anos, com a morte no peito,
descia todos os dias de Santa Teresa para a loja, de onde regressava antes de
cair a noite. Uma tarde, ao encontrá-lo na rua, quando se recolhia, andando
vagaroso, com os seus pés direitos, metido em um sobretudo, perguntei-lhe por
que não descansava algum tempo. Respondeu-me com outra pergunta: Pourriez-vous
résister, si vous étiez forcé de ne plus faire ce que vous auriez fait
pendant cinquante ans? Na véspera da morte, se estou bem informado, achando-se
de pé, ainda planejou descer na manhã seguinte, para dar uma vista de olhos à
livraria.
Essa livraria é uma das últimas casas da Rua do Ouvidor; falo de uma rua
anterior e acabada. Não cito os nomes das que se foram porque não as conheceríeis,
vós que sois mais rapazes que eu, e abristes os olhos em uma rua animada e
populosa onde se vendem ao par de belas jóias, excelentes queijos. Uma das últimas
figuras desaparecidas foi o Bernardo, o perpétuo Bernardo, cujo nome achei
ligado aos charutos do Duque de Caxias, que tinha fama de os fumar únicos, ou
quase únicos. Há casas como a Laemmert e o Jornal do Comércio, que ficaram e
prosperaram, embora os fundadores se fossem; a maior parte, porém,
desfizeram-se com os donos.
Garnier é das figuras derradeiras. Não aparecia muito; durante os 20 anos das
nossas relações, conheci-o sempre no mesmo lugar ao fundo da livraria, que a
princípio era em outra casa, n.° 69, abaixo da Rua Nova. Não pude conhecê-lo
na da Quitanda, onde se estabeleceu primeiro. A carteira é que pode ser a
mesma, como o banco alto onde ele repousava, às vezes, de estar em pé. Aí
vivia sempre, pena na mão, diante de um grande livro, notas soltas, cartas que
assinava ou lia. Com o gesto obsequioso, a fala lenta, os olhos mansos, atendia
a toda gente. Gostava de conversar o seu pouco. Neste caso, quando a pessoa
amiga chegava, se não era dia de mala ou se o trabalho ia adiantado e não era
urgente, tirava logo os óculos deixando ver no centro do nariz uma depressão
do longo uso deles. Depois vinham duas cadeiras. Pouco sabia da política da
terra, acompanhava a de França, mas só o ouvi falar com interesse por ocasião
da guerra de 1870. O francês sentiu-se francês. Não sei se tinha partido;
presumo que haveria trazido da pátria, quando aqui aportou, as simpatias da
classe média para com a monarquia orleanista. Não gostava do império napoleônico.
Aceitou a república, e era grande admirador de Gambetta.
Daquelas conversações tranqüilas, algumas longas, estão mortos quase todos
os interlocutores, Liais, Fernandes Pinheiro, Macedo Joaquim Norberto, José de
Alencar, para só indicar estes. De resto, a livraria era um ponto de conversação
e de encontro. Pouco me dei com Macedo, o mais popular dos nossos autores, pela
Moreninha e pelo Fantasma Branco, romance e comédia que fizeram as delícias de
uma geração inteira. Com José de Alencar foi diferente; ali travamos as
nossas relações literárias. Sentados os dous, em frente à rua, quantas vezes
tratamos daqueles negócios de arte e poesia, de estilo e imaginação, que
valem todas as canseiras deste mundo. Muitos outros iam ao mesmo ponto de
palestra. Não os cito, porque teria de nomear um cemitério, e os cemitérios são
tristes, não em si mesmos, ao contrário. Quando outro dia fui a enterrar o
nosso velho livreiro, vi entrar no de S. João Batista, já acabada a cerimônia
e o trabalho, um bando de crianças que iam divertir-se. Iam alegres como quem não
pisa memórias nem saudades. As figuras sepulcrais eram, para elas, lindas
bonecas de pedra; todos esses mármores faziam um mundo único, sem embargo das
suas flores mofinas, ou por elas mesmas, tal é a visão dos primeiros anos. Não
citemos nomes.
Nem mortos, nem vivos. Vivos há-os ainda, e dos bons, que alguma cousa se
lembrarão daquela casa e do homem que a fez e perfez. Editar obras jurídicas
ou escolares, não é mui difícil; a necessidade é grande, a procura certa.
Garnier, que fez custosas edições dessas, foi também editor de obras literárias,
o primeiro e o maior de todos. Os seus catálogos estão cheios dos nomes
principais, entre os nossos homens de letras. Macedo e Alencar, que eram os mais
fecundos, sem igualdade de mérito, Bernardo
Guimarães, que também produziu muito nos seus últimos anos, figuram ao pé
de outros, que entraram já consagrados, ou acharam naquela casa a porta da
publicidade e o caminho da reputação.
Não é mister lembrar o que era essa livraria tão copiosa e tão variada, em
que havia tudo, desde a teologia até à novela, o livro clássico, a composição
recente, a ciência e a imaginação, a moral e a técnica. Já a achei feita;
mas vi-a crescer ainda mais, por longos anos. Quem a vê agora, fechadas as
portas, trancados os mostradores, à espera da justiça, do inventário e dos
herdeiros, há de sentir que falta alguma cousa à rua. Com efeito, falta uma
grande parte dela, e bem pode ser que não volte, se a casa não conservar a
mesma tradição e o mesmo espírito.
Pessoalmente, que proveito deram a esse homem as suas labutações? O gosto do
trabalho, um gosto que se transformou em pena, porque no dia em que devera
libertar-se dele, não pôde mais; o instrumento da riqueza era também o do
castigo. Esta é uma das misericórdias da Divina Natureza. Não importa:
laboremus. Valha sequer a memória, ainda que perdida nas páginas dos dicionários
biográficos. Perdure a notícia, ao menos, de alguém que neste país novo
ocupou a vida inteira em criar uma indústria liberal, ganhar alguns milhares de
contos de réis, para ir afinal dormir em sete palmos de uma sepultura perpétua.
Perpétua!
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