O processo gnóstico.
Muitas dúvidas existem a respeito da validade ou veracidade dos que podemos chamar de revelação. O que seria uma revelação ? O que levaria um homem a ter alguma revelação ? O significado da palavra Cabala é fruto desse processo, pois Cabala significa algo como "receber". A Cabala é um processo contemplativo e dinâmico de busca, tanto da estrutura revelada do universo, como da busca ao trono de D-us, ou o misticismo da Mercavah, entre outras diversas correntes. Através da contemplação da Árvore da Vida consegue-se a consciência daquilo que ela representa. Essa consciência é o que podemos chamar de Gnose, e a contemplação como um processo gnóstico.
Mas a Cabala não é precisamente o processo ou a Gnose. A Cabala é também uma planificação do Universo feito em termos místicos, como uma forma de recepção do que e como é o Universo. A Cabala tem seu lado de conhecimento puro, ou em termos orientais, Jnana, como também tem suas práticas contemplativas, ou Bhakti.
Para conceituar o que seria o processo gnóstico, posso remontar ao tempo do inicio do que é chamado como Gnose, que ocorreu no Egito muito antes de Cristo, com o culto ao deus Serapis. Segundo os gnósticos da época e hoje, o próprio Cristo, que seria a encarnação do Logos teria recebido a iniciação de Serapis através da imposição das mãos. Hoje, mais modernamente, a corrente foi reinaugurada por Jules Doinel, juntamente com outros ocultistas famosos, como Papus, no último século. Essa corrente tenta resgatar a verdadeira tradição gnóstica, ou o renascimento da Igreja Cátara, destruída pelo Vaticano, em uma enorme perseguição e carnificina. Jules Doinel teria recebido a sucessão gnóstica através do plano astral (ou algo semelhante) e criou uma nova (ou antiga) e interessante Igreja, através do processo de revelação gnóstico.
Mas a história do movimento herético-gnóstico não vem ao caso. A Gnose não é exclusividade de uma Igreja ou movimento. Na época de logo após o advento do Cristo, os gnósticos voltaram seus esforços em colocá-lo em conexão com o mito gnóstico. A verdade é que o mito gnóstico é uma poderosa forma de compreensão de um processo mais elevado e complexo, uma tentativa de explicar aquilo que é intangível. Naquela época, mito e religião eram coisas inseparáveis naquela região do mundo. E ainda hoje temos um legado muito importante do mito ligado à religião. Podemos até sustentar que o Apocalipse de São João não passa de um mito de um final do mundo, com o intuito de passar determinada mensagem. Ou podemos analisar o mito da criação do mundo e suas derivações. Mesmo dentro do budismo existem correntes mitológicas. Mas o processo mitológico é algo para ser analisado a parte.
A verdade é que vários movimentos gnósticos apropriaram Cristo diferentemente em sua mitologia, com o intuito de fazê-lo funcionar melhor dentro do processo de revelação gnóstica. Cristo sendo o Logos, ou a Serpente do Paraíso teria uma função muito mais profunda como símbolo de algo que realmente existe em algum local, não se sabe bem, mas sempre presente em quase todos os processo iniciáticos.
Movimentos como da gnose ofidiana, setiana, basilidiana, valentiana, todas com fundamentos mais cristãos, ou até mesmo a gnose judaica, deram uma contribuição muito interessante a aquilo que hoje chamamos de iniciação, por mesclar a antiga tradição de mistérios egípcios com o processo cristão. A gnose judaica é um caso a parte, pois o mito gnóstico da criação, junto com seus conceitos iniciáticos e mágicos vieram a serem mesclados com a tradição mais iniciática e mágica do povo judeu, ou seja, o processo cabalístico. Podemos perceber elementos gnósticos nos primeiros Hassidin, através de crenças como a do Querubim, ou melhor, aquele que cria o mundo, mas não é o ser supremo. Mesmo em Isaac Luria, o famoso rabino, a fundação do Adão Kadmon, ou homem primordial pode ser relacionado com o Logos, ou Cristo, ou até mesmo com o Pleroma.
A Gnose é um processo real, completo, poderoso e hoje pouco conhecido. Existem três formas de manifestação em que podemos classificar o processo de recebimento do conhecimento, segundo correntes gnósticas mais conhecidas e praticadas.
Os dois primeiros se fundamentam no dito cabalístico de que Kether e Malkuth são uma só manifestação, ou seja, são opostos complementares. Malkuth teria elementos de Kether e Kether teria elementos de Malkuth. Entretanto, mesmo sendo os dois uma só coisa com características iguais, suas manifestações são diferentes, e até mesmo opostas.
O primeiro processo gnóstico é aquele que podemos chamar de zotheriano. Essa palavra derivaria de Zothy (ou Sothy), o nome egípcio para a estrela Sírius, Alfa da constelação do Cão Menor. Segundo o ocultista inglês Kenneth Grant, Sírius se relaciona com Typhon, que entre os mitos antigos do Egito seria a mãe do deus Seth. Segundo Grant, o Sol (nossa estrela) seria filho de Typhon. Podemos especular muito mais sobre as conseqüências míticas dessa afirmação. Podemos até chegar a concluir que os mais antigos egípcios acreditariam que Typhon seria a mãe de Rá e Seth, diferentemente do que hoje é aceito, como sendo filhos de Nut. A explicação para Grant dizer que o Sol é filho de Zothy se dá pela cabala: Zothy estaria em Kether e o Sol seria Tiferet. Na Cabala, toda a luz de Tiferet provém de Kether. O Cristo é normalmente associado a Tiferet, ou o Sol, ou o filho. Cristo é o Leão de Judá, e o leão é um animal que associamos ao Sol, assim como Touro à Lua e etc.
Segundo a definição de zotherianismo, a manifestação do conhecimento viria diretamente ao homem, vinda de Kether. A luz de Kether incidiria diretamente, sem obstáculos. Evidentemente, o homem não estaria em um processo passivo unicamente, esperando que isso ocorresse, mas sim em uma postura mais ativa, embora receba o conhecimento, ou Gnose. Isso normalmente é o que chamamos de "via do coração". A tradição cristã preservou essa via, como podemos muito bem observar principalmente em São Francisco de Assis. A via do coração é um processo muito mais de recepção pura, através de uma prática contemplativa, como o são certas correntes cabalísticas. Ou seja, através de contemplação pura da Árvore da Vida, o cabalista chega a compreensão daquilo que ela representa. Outras formas da via do coração, ou Bhakti, podemos notar na oração, fé, devoção. O cristianismo utiliza essencialmente esses elementos de amor como forma de recepção.
Manifestações como aquelas inúmeras das visões da Virgem Maria são essencialmente provindas da devoção e fé puras. Além de um retorno à feminilidade. Todavia, podemos argumentar que essas manifestações provêem apenas da egrégora cristã. No caso da Virgem Maria, de outras mais antigas, como as da bruxaria e das deusas romanas mantenedoras do Estado da sociedade e da família, tais como Juno e Vesta.
Outros exemplos de zotherianismo, seriam as formas de Gnose valentiniana e basilidiana. O texto de Jung, "Os sete sermões aos mortos" é um bom exemplo desses caminhos.
Em termos mais técnicos de ponto de vista africano, podemos conceituar a prática zotheriana como sendo aquilo que vem de Oxalá para baixo. A prática gnóstica de Jules Doinel aqui também se conceitua.
Uma boa representação geométrica desse processo seria um triângulo voltado para baixo, representando os elementos passivos (volto a salientar que o processo de recepção zotheriana não é totalmente passivo), como Terra e Água, ou até mesmo o pentagrama invertido. O pentagrama invertido é um símbolo que expressa muito bem a frase "faça-se a sua vontade", muito embora tenha sido apropriado por satanistas.
A segunda forma de recepção é a chamada voduísta. Tem essa denominação por se relacionar com Malkhut. Essas "energias" são muito bem controladas pelos praticantes do Voudoum e cultos africanos em geral. Também existem formas muito poderosas de se ativar esse processo através de outras formas como o Zos Kia Cultus de Austin Osman Spare.
O caminho voduísta é um processo de passa do inconsciente para o consciente. Podemos melhor compreender esse processo como sendo uma manipulação das ditas energias infernais, ou das trevas. Um processo em si extremamente plutoniano de trabalho com as sombras. Esse processo é muito poderoso, embora também seja bem perigoso, pois o homem é colocado frente à frente com a sua própria sombra, com aquilo que ele nega em si mesmo e isso pode ser muito doloroso.
Mitos como o de Lilith, provindos de locais como a Mesopotâmia são bons para demonstrar o processo funcional do voduísmo. Pois eram locais onde a crença religiosa advogava que a dualidade do bem e do mal estavam mais fragrantes, onde se acreditava no resultado do mal, em sua utilidade e perigo.
Outros movimentos, como os da Gnose setiana ou ofidiana se enquadram nesse esquema. Mais modernamente, podemos incluir aqui a tradição tifoniana de Kenneth Grant, o já citado Zos Kia Cultus e formas da magia do Chaos. O processo voduísta se expressa pelo triângulo voltado para cima, representando os elementos ativos voltados à ascensão.
A última, melhor, mais complexa e menos utilizada forma de representar o processo é a "terceira via". Essa forma de Gnose é bem simbolizada através do hexagrama, muito bem detalhado por Eliphaz Levi. No hexagrama (podemos também chamar de estrela de Davi, para facilitar) temos dois triângulos entrelaçados. O triângulo voltado para cima significa o homem que procura se elevar (voduísmo) e se coloca em um ponto onde o triângulo voltado para baixo traz o conhecimento (zotherianismo). O processo de Gnose concorre em duas manifestações simultâneas, o gnóstico que se eleva para poder receber o conhecimento ou Gnose que vem de "esferas" superiores, que descem ao seu encontro. O gnóstico fica em estado passivo então, amparado pela forte egrégora que o cerca, simbolizado portanto, pelo Staurus, ou Yoni, ou Graal.
A posse do Graal corresponde portanto, ao encontro da Gnose. E Parzival é o guardador desse processo. Esse simbolismo é extremamente ligado ao Tarot. Podemos conceituar o Graal como sendo o Atu VII, a carta do Carro e todo o seu simbolismo ligado a Câncer. Câncer, o signo da deusa Kali, ou seja, um processo que o canceriano vive no dia-a-dia, mas nem sempre percebe, e sempre é corroído por não controlá-lo, ou saber vivenciá-lo.
Podemos conceituar aqueles movimentos mágicos e místicos provindos da Ordem da Aurora Dourada (Golden Dawn), onde se celebra a conversação com o Sagrado Anjo Guardião, como sendo um forma de terceira via. O próprio culto da Besta, criado por Crowley, conceituado em Thelema e na busca da Verdadeira Vontade, localizada em Tiferet, é um processo de terceira via por definição. A manifestação da Gnose na terceira via se dá em Tiferet e em nenhum outro local.
A descida do conhecimento, ou o receber, ou a Cabala, é correspondido pelo Atu XII, O Enforcado. O Enforcado é a expressão do elemento água, o sacrifício vindo do alto, a vinda do intangível, o incompreensível, as trevas interiores, a maternidade, a geração. O inconsciente, o invisível sempre presente. Por isso o Atu XII é sempre identificado ao Cristo ou Logos, aquele que vem ao encontro da humanidade, vindo de locais muito elevados.
A procura do conhecimento, ou a subida do gnóstico corresponde ao Atu XX, A Revelação, que é um processo onde apenas o operador tem atividade. Muitos tarólogos tem a concepção errônea de que essa lâmina é passiva, que corresponde a ser influenciado, viver um processo sem controle. O Arcano da Revelação não é um processo passivo, mas totalmente ativo, praticamente unilateral. Dessa feita, o Apocalipse (ou revelação), não é um processo passivo. O Apocalipse não ocorrerá fora de nós mesmos. O Apocalipse bíblico não passa de um grimório, ou livro de magia, com fórmulas mágicas no intuito de provocar um mudança interior e ir a própria Nova Jerusalém. Não ocorrerá um final do mundo, no dia em que temos a revelação do que é o mundo, ele acaba para nós. Em termos orientais, Maya. O Apocalipse de São João é um livro considerado gnóstico. Devemos nos recordar que a palavra apocalipse significa revelação. Outro livro gnóstico é o Evangelho de João, que procura mostrar o lado espiritual do Cristo e não o componente histórico de acontecimentos intercalados, com ocorre nos evangelhos sinópticos.
Nesses termos, o Atu XX passa a ter um elemento muito mais infernal, relacionado com o voduísmo. Na terceira via, a Gnose se dá também com o encontro da própria sombra e nem poderia ser diferente. Em termos mais cabalísticos, a terceira via faz parte do processo de subida da Árvore. O "viajante" deve sair de seu ponto e subir à Árvore da Vida, como no misticismo da Mercavah, que tem o intuito do encontro do trono divino. Nesse caminho existem vários perigos, que podem destruir aquele que tenta escalar o Universo.
Em termos de Magick, ou do caminho por Thelema, existem vários problemas nessa subida na busca do Sagrado Anjo Guardião, ou Adonai, ou Centro Crístico, ou Tiferet. O iniciado deve vencer Emanação por Emanação para a chegada ao recebimento da Gnose. Ou seja, a escalada da Árvore é um desafio interminável em si. O voduísmo exige portanto um profundo autocontrole.
Esse complicado processo de Gnose, não pode ser nada mais simples. A magia ritual se caracteriza pela utilização de simbolismos que procuram situar o magista dentro de um processo determinado, ou estado de consciência, sem todavia, estar nele. O mais conhecido ritual para o processo de Gnose é a comunhão. A consagração do pão corresponde simbolicamente à descida do conhecimento, ou dos não nascidos. Provavelmente, a comunhão vem do culto do deus Mitra, Sol Invictus, que mais tarde iria ser mesclado com o cristianismo nascente. Ainda hoje é possível ter a comunhão com Mitra, em formas mais esotéricas de cultos gnósticos/cristãos. A Igreja Católica ainda guarda a tradição pagã e mágica da época do império romano, motivo pelo qual a comunhão ainda é prática comum, mas muito despida de seu significado primitivo e espiritual verdadeiro.
Na época em que o gnosticismo resplandecia, ou seja, quando do nascimento do cristianismo, vários foram os evangelhos recebidos por meios gnósticos. Geralmente em estados de êxtase, ou por auto-indução, ritualística ou não, uso de drogas, práticas sexuais e outros, todos sempre muito complicados, procurando a utilização da poderosa egrégora gnóstica. Muitos hoje acham que os evangelhos gnósticos devem substituir ou complementar os quatro evangelhos aceitos pelos cristãos. Mas isso é um erro. O evangelho gnóstico provém de um estado de comunhão mística pessoal e serve apenas para aquele que o recebeu.
Modernamente podemos considerar o Livro de Mórmom, recebido por Joseph Smith, como um processo de Gnose. Aliás, o mesmo, segundo informações, pertencia a maçonaria e seus rituais mágicos. Outro exemplo famoso é do Livro da Lei, recebido por Aleister Crowley, vindo de um ser não-nascido chamado Aiwass. Ou então o Livro Pennae Penumbra de Soror Nema.
No caso de Aleister Crowley, ao receber o Livro da Lei, de Aiwass, que seria seu anjo guardião, houve o processo zotheriano, pois Crowley não procurou ascender até Tiferet, nem tão pouco utilizou de práticas voduístas. Mais tarde Crowley iria questionar Aiwass ser realmente seu anjo guardião, chegando a sugerir que seria uma consciência extraterrestre conhecida como LAM. O mesmo poderia se dizer de Soror Nema, que teria recebido seu livro Pennae Penumbra de outra consciência extraterrestre chamada de NAthon, inaugurando o Aeon de Maat.
Crowley assim como Mohamed recebeu um livro no processo de recepção gnóstica. Ambos tem em comum o fato de não serem o Logos, são como Maria (ou Miriam, se preferirem), aqueles que recebem a mensagem, ou o fruto. Nesse sentido eles são de propriedades femininas. O Logos nesse caso é o livro, seja ele o Coran ou não.
Mas de onde viria o conhecimento chamado Gnose. Cabalisticamente, existe uma "Luz" chama Mezla que emana de Kether. Todos aqueles que se identificam com essa luz conseguem a compreensão da estrutura do universo. O processo da descoberta do conhecimento astrológico deve ser guiado nesses passos. Somente e unicamente o astrólogo que estivem em contato com a Luz de Kether pode "receber" a compreensão do significado real do símbolo astrológico. Do sim-bolo, ou do dia-bolo. O dia-bolo corresponde a dualidade demonstrada, ou se preferirem, Gemini. Por isso Mercúrio é associado com o Diabo, com Exu, com Loki, ou até com os anjos, ou seja, todas a modalidades de mensageiros. Seu oposto complementar Sagitário vem a ser o Símbolo, ou a compreensão do conhecimento provindo de Gêmeos. O astrólogo, ou tarólogo, ou ocultista, magista e etc, que não estiver em harmonia com a Mezla vinda de Kether não passa de um macaqueador de teorias as quais ele não tem condição de compreender. Dessa forma, chegamos ao ápice do real significado do que seria a Gnose, ela não é o conhecimento, mas a consciência pura, a descoberta da Verdade do Universo.
A crença gnóstica tem um verdadeiro panteão de seres e entidades, quase todas não-nascidas, uma mitologia própria, entre eles, o sempre mal compreendido Abraxas, aquele que nos força à busca da Gnose, segundo Jung "o criador e destruidor de seu próprio mundo, o deus e o destino do homem", e aquele que desmascara a farsa do demiurgo, o criador invejoso do Gênesis. Embora as gematrias de Abraxas tanto em grego quanto em hebraico totalizem 365, Abraxas não é um deus ou energia astrológica. Abraxas está além da astrologia. O número 365 demonstra um ano, um ciclo, uma época, o TEMPO, uma prisão. Abraxas representa a quebra dos ciclos criados pelo demiurgo, ou Saclas, identificado por Saturno, senhor dos ciclos. Abraxas corresponderia, mais corretamente, à libertação de qualquer grilhão, seja ele dos ciclos e outros, além de suas racionalizações. A melhor e mais elaborada forma de racionalização dos ciclos, é a própria astrologia, da qual devemos nos libertar um dia. Abraxas nos incita a procurar a consciência, muito além de sistemas de racionalização. A procurar não dizer o indizível.
Astrólogos escravos das estrelas ? Tarólogos escravos de baralhos ? Magistas escravos de poderes ? A Gnose é o caminho da libertação. E a libertação é Abraxas.
Todo sistema apenas serve para tentar explicar ou racionalizar, tentar dar um sentido ao ilógico. O apego a sistemas não passa de uma forma de escravizar aquele que busca. E os escravos servirão.