'Destruir
embriões é usar a pena de morte'
Daniel Serrão, membro do Comitê de Bioética Europeu, é contra toda
pesquisa que destrua
LAURA KNAPP
A clonagem e as pesquisas com células-tronco têm um único objetivo:
criar seres humanos para servir de repositório de órgãos
sobressalentes.
Esta é uma das opiniões defendidas pelo médico português Daniel Serrão,
membro do Comitê Diretor de Bioética do Conselho da Europa, que esteve em
São Paulo, na quinta-feira, para participar de um evento na Pontifícia
Universidade Católica (PUC), com a palestra: "Manipulação da vida:
certo ou errado?"
Ligado ao Vaticano, como membro da Academia Pontifícia para a Vida, Serrão
tem posições não menos vigorosas em relação ao aborto. Quem é a favor
dele, ou de destruir embriões humanos, mesmo que congelados e praticamente
descartados, deve admitir que está praticando a pena de morte, diz.
Apesar de tudo, é a favor dos estudos genéticos. "A descoberta da
estrutura do DNA foi um dos passos mais brilhantes da ciência", afirma
Serrão. O seqüenciamento, do ponto de vista tecnológico, é formidável.
"Toda pesquisa que não destrua é legítima", diz. O estudo do
genoma humano pode render avanços benéficos no tratamento de moléstias. Há
a possibilidade, no futuro, de se produzir medicamentos geneticamente
conformados com o DNA das pessoas. "Nós todos temos o mesmo genoma,
mas exprimimos esse genoma de forma diferente", diz Serrão.
"Não é o genoma que nos faz. Nós nos fazemos por uma interação
entre aquilo que não é genômico e o genoma." O meio exterior à célula
exerce influência sobre a informação do DNA, numa maestria incrível do
ecossistema. Tudo exerce influência diferenciada. "Por isso digo que
cada indivíduo é único e irrepetível."
Uma droga geneticamente conformada ao indivíduo pode tratá-lo com maior
eficácia. Além disso, o estudo do genoma abre a possibilidade de se
conhecer a natureza de certas doenças e impedir seu aparecimento. Por
exemplo, a diabetes infantil, encontrando suas causas genéticas. E também
entender o polimorfismo genético, que faz com que certas proteínas sejam
produzidas por algumas pessoas e por outras não. Serrão é a favor que se
interfira com o código genético das pessoas. "O processo de
engenharia genética já existe em nós", afirma. Defende mesmo
interferências em embriões.
A manipulação da vida, no entanto, só é legítima em duas condições:
quando a modificação é benéfica para o indivíduo, e quando não destrói
a vida. O conceito de benefício pode ser discutível: nem sempre o que é
bom para um será necessariamente bom para o outro. O da destruição da
vida, no entanto, é inequívoco. "Criar um embrião para pesquisa é
inaceitável, do ponto de vista ético e biológico."
Usar em pesquisas um embrião formado especificamente para uso em laboratório,
ou armazenado depois de um processo de fertilização in vitro, também é
inconcebível, ainda que suas chances de algum dia se tornar um ser humano
sejam remotas ou completamente vãs. Porque, para Serrão, o embrião, mesmo
com algumas horas de existência, já é um ser humano. "A pesquisa com
embrião vai destruir aquela vida. Uma vida humana que tem direito de ir até
o fim, que não tem direito de ter seu desenvolvimento impedido."
Para quem argumenta que não passa de um amontoado de células, e não um
ser humano propriamente dito, Serrão diz: quando metade da informação
feminina e metade da informação masculina se juntam, criam uma informação
específica, criam um genoma. Assim, instala-se uma vida humana, porque no
genoma está o projeto de desenvolvimento do indivíduo. Não há nenhuma
diferença entre o valor do embrião e o valor humano do embrião quando sai
do útero. Ele é uma vida humana, um projeto de vida.
Todos nós já fomos embriões, diz. "Éramos menos dignos do que
hoje? Como seres humanos, tínhamos exata e rigorosamente a mesma
dignidade." Um embrião é a primeira apresentação pública de um
corpo humano. Não há diferença entre um zigoto com uma célula ou um com
duas. Trata-se de um processo biológico contínuo. "Todos nós mudamos
ao longo da vida, até a morte", afirma. "Penso que nenhum embrião
pode ser destruido. É o meu ponto de vista. Por acaso coincide com o
pensamento da igreja católica. Mas se não coincidisse, continuava a defendê-lo.
É a única matéria do mundo em que sou radical."
"Minha argumentação é exclusivamente técnico-científica, médica,
e quem não aceita esta argumentação está a fazer prova do obscurantismo,
que não aceitava a ciência há alguns séculos. A ciência demonstrou, e a
genética demonstrou, que a partir do momento que se constitui um genoma
humano, constitui-se um corpo humano. Se o quiserem destruir, muito bom. Ou
muito mau. Se quiserem o destruir que o destruam, mas que não digam que estão
a destruir uma coisa. Ou um amontoado de células. Não, estão a destruir
um corpo humano. Tudo bem, também há países que matam as pessoas, onde há
pena de morte. É exatamente a mesma coisa. É hipocrisia não querer
reconhecer que, cientificamente, não há nenhuma dúvida de que um zigoto,
um embrião, é um ser humano."
E de um zigoto humano não é possível fazer coisa nenhuma a não ser um
homem.
"A clonagem não serve para nada. A partir de um embrião não se faz
órgão nenhum, não há nenhuma hipótese de se criar um rim no laboratório",
afirma.
Se o objetivo é encontrar õrgãos sobressalentes, isso só poderá ser
feito a partir de embriões, deixando que eles se desenvolvam, dentro e fora
do útero, para utilizá-lo como doador de órgãos.
Mas para fazer pele, ou células sanguíneas e nervosas, é possível
utilizar outras fontes que não o embrião, como o cordão umbilical, ou as
próprias células geradoras. "Esses ensaios de clonagem servem só
para reprodução", afirma, categórico.
Serrão descarta o recente anúncio, da empresa americana Advanced Cell
Technologies, de que havia feito um clone humano para fins de pesquisa.
"Uma firma dessas, que gasta milhões de dólares, tem que ter um
projeto de desenvolvimento futuro, e provavelmente nesta previsão estará
incluído o processo de reprodução humana por clonagem", diz.
"Mas não vejo com que utilidade. Não noto que haja falta de pessoas
clonadas. Alguém precisa de um clone para alguma coisa? Qual é a utilidade
dele, quem é que o quer? Para ter um brinquedo em casa?"