Para Girard, a mundialização é o cristianismo
Antropólogo francês diz que não há nada que substitua o sistema de valores cristão
CHRISTIAN MAKARIAN
L'Express
Logo depois da 2ª Guerra, recém-diplomado pela École des Chartes, René Girard, hoje com 76 anos, partiu
para os Estados Unidos para dar aulas de francês. Lá, obrigado a "publicar para não perecer", ele se debruçou sobre a
literatura e o romance, mas, como não era formado nessas disciplinas, acabou ficando fora da corrente formalista. Foi
nessa época que desenvolveu a tese do desejo mimético, ou seja, uma explicação global do conflito em nossas
sociedades, baseada na análise do papel central do bode expiatório. A fama que ele adquiriu permitiu, mais tarde, que
se impusesse como um dos raros "antropólogos da religião".
Autor de numerosos livros-chave, entre eles La Violence et le Sacré, em 1972, e Des Choses Cachées depuis la
Fondation du Monde, em 1978, e ganhador do Grande Prêmio de Filosofia da Academia Francesa, em 1996, e do
Prêmio Médicis, em 1990, Girard acaba de publicar mais um de seus trabalhos, Je Vois Satan Tomber comme l'Éclair,
uma reflexão muito original no balanço de dois milênios de cristianismo. O autor, que apesar de quatro décadas
passadas nos EUA ainda conserva o sotaque provençal de Avignon, onde nasceu, conversou com a L'Express.
O sr. praticamente inventou uma curiosa disciplina: a antropologia da religião. Poderia dar-nos um definição
simples disso?
René Girard - A antropologia que procuro desenvolver é específica para a religião. Ela é baseada sobre a
violência fundadora e tudo o que se segue. A partir daí, interesso-me pelas normas originais da nossa cultura, que
reside, essencialmente, nos ritos e proibições, assim como em nossas instituições, que são o produto indireto do
religioso. Mas, se minha atividade trata das religiões, ela não tem, no entanto, nada de religioso em sua essência. Pelo
contrário, já que considero o religioso arcaico resultado de um erro de interpretação do que chamo de "fenômeno
vitimário". Meu ponto de partida é o seguinte: o ato fundamental da sociedade primitiva, que está na origem da nossa, é
designar uma vítima, um bode expiatório, e cultivar a ilusão de sua culpabilidade para permitir a expulsão de todas as
espécies de tensão coletiva. Essa ilusão é, em seguida, fundadora dos ritos, que a perpetuam no tempo e conservam
formas culturais que acabam nas instituições.
Como essa teoria foi formulada?
Girard - Alguns amigos americanos dizem que sou influenciado pelo contato pessoal que tive, na minha
juventude, com a violência racial nos Estados Unidos. Assim é que, ao estabelecer aproximações entre os mitos
australianos, ameríndios, africanos, europeus, americanos, descobri que o linchamento, ou seja, a morte de uma vítima
designada, não era um fenômeno textual ou legendário. É uma verdadeira tentativa de pacificação por intermédio de
uma vítima que, quando reúne um grupo todo contra si, produz mimeticamente um apaziguamento, até uma
reconciliação. Por misteriosas razões, as sociedades reproduziram esse gesto reconciliador sob a forma de sacrifícios
ou ritos sagrados e essa repetição se tornou em si mesma uma instituição. É o caso, típico, da lapidação, codificada
pelo Livro do Levítico. Além disso, os etnólogos demonstraram, já há muito tempo, que havia uma forma primitiva de
justiça grega por meio do assassinato coletivo. Depois disso, havia a luta pelo controle e a dominação desse ritual
essecial. Veja, reunindo vítimas, rituais e instituições, assistimos ao nascimento do poder político.
Essa teoria o levou, naturalmente, a interessar-se por Cristo, vítima entre as vítimas, já que ele deu sua vida para
a humanidade...
Girard - Certamente, mas minhas conclusões caminham na direção inversa daquelas que há habitualmente sobre
o assunto. Até aqui, a maior parte dos antropólogos - e até um teólogo como Rudolf Bultmann - tinham insistido na
semelhança entre os Evangelhos e outros relatos para demonstrar que a morte e a ressurreição de Jesus eram apenas
um mito entre outros. Hoje, como antes, a maioria de nossos contemporâneos percebe a assimilação do cristianismo a
um mito como uma evolução irresistível e irrevogável, pois ela reclama para si o único tipo de saber que nosso mundo
ainda respeita, a ciência. Mesmo que a natureza mítica dos Evangelhos não seja demonstrada cientificamente, num dia
ou outro ela o será. Tudo isso é realmente certo? Bom, acho que não só isso não é certo como é certo que isso não é.
A assimilação dos textos bíblicos e cristãos aos mitos é um erro fácil de refutar.
Como?
Girard - Nos mitos, as vítimas são sempre culpáveis, pois o relato é sempre escrito do ponto de vista da
enganação, da ilusão criada pelo fenômeno vitimário. É por ser culpável que a vítima apaga a violência e acede ao
status mítico. Entre os judeus e cristãos ocorre o inverso: a vítima é inocente! Veja a diferença entre Caim e Abel de
um lado e Rômulo e Remo de outro. Remo é culpável, já que Rômulo é fundador glorificado de Roma. Enquanto Deus
pergunta a Caim: "Onde está teu irmão Abel? O que fizeste?" Certamente, Deus aceita fundar o gênero humano sobre
essa base de violência, mas ao mesmo tempo Ele se preocupa com a sorte de Abel, vítima inocente. É isso que é
único. Para "desviolentizar" o sagrado só há a Bíblia! O cristianismo contradiz, a princípio, os mitos.
Qual é, então, a sua definição pessoal do cristianismo?
Girard - A fé cristã consiste em pensar que, diferentemente das falsas ressurreições míticas, que estão realmente
enraizadas nos assassinatos coletivos, a ressurreição do Cristo nada deve à violência dos homens. Ela se dá depois da
morte do Cristo, inevitavelmente, mas não em seguida, só no terceiro dia, e encontra sua origem no próprio Deus.
Em que isso afeta a ordem precedente?
Girard - No começo do cristianismo há um fato essencial: os discípulos traem todos. Eles são levados pelo
entusiasmo usual contra as vítimas. Pedro representa o modelo de indivíduo que, desde que em meio a uma multidão
hostil à vítima, se torna hostil também... como todo mundo. E depois, tudo muda, a lógica arcaica é invertida e os
discípulos acabam por ficar não contra a vítima, mas a seu favor. Em oposição ao que disse Nietzsche - "O
cristianismo é a multidão" -, a fé cristã exalta o indivíduo que resiste ao contágio vitimário.
Ainda sobre a diferença entre mito e cristianismo, o sr. estabelece um paralelo surpreendente em seu novo livro.
Girard - Descobri um relato lendário grego surpreendente, que põe em cena Apolônio de Tiane, célebre guru do
século 2º d.C. Para pôr fim a uma epidemia, Apolônio designa à punição popular um mendigo asqueroso, mas
totalmente inocente. O infeliz é morto a pedradas e, assim que se retiram as pedras que o recobrem, descobre-se em
seu lugar um monstro assustador que representa o demônio vencido, a doença erradicada. A diferença em relação ao
Evangelho vem imediatamente à lembrança. Certamente, ao contrário de Apolônio, Jesus interrompe o apedrejamento
da adúltera, dizendo: "Aquele que nunca pecou que atire a primeira pedra." Mas, na minha opinião, a lição principal
está em outro lugar: o arrebatamento mimético, é isso que Jesus quer combater. É evidente que aquele que incita ao
linchamento tem responsabilidade maior que a dos outros. É por isso que o Levítico obrigava duas testemunhas -
aqueles que tinham, precisamente, feito a denúncia - a atirar as primeiras pedras para assegurar-se de que eles não
dariam falso testemunho. O propósito de Jesus é transcender essa lei, o que vai levar ao requestionamento do
fenômeno vitimário, portanto o de semear a desordem entre o povo e incitá-lo a matar. Para concluir a reposição do
mito em seu lugar correto, acrescento que Jesus não reclama para si aí nenhum poder sobrenatural: ele não faz milagre,
é o pagão Apolônio que faz um!
O comportamento mimético estaria, portanto, na origem da violência. Por quais mecanismos?
Girard - O comportamento mimético, no estágio coletivo, é resultado do desejo mimético, que nasce no estágio
individual. Há na Bíblia uma concepção desconhecida do desejo e dos conflitos. Entre os dez mandamentos ("Não
matarás, não cometerás adultério, não furtarás", etc.), o décimo sobressai entre os que o precedem: "Tu não cobiçarás
a mulher do próximo, nem seu servo, nem sua serva, nem seu boi, nem seu burro, nada do que é dele." (Êxodo, XX,
17.) Esse último mandamento é freqüentemente negligenciado, embora seja extremamente importante, na medida em
que visa, justamente, ao mais banal dos desejos, o mais comum e, na aparência, o mais anódino. Já que esse desejo é
o mais comum de todos, o que ocorreria se, em vez de ser proibido, fosse tolerado e até encorajado? A resposta vem
por si: a guerra seria perpétua entre todos os grupos humanos. A porta seria escancarada ao famoso pesadelo de
Hobbes, a luta de todos contra todos. Portanto, para ousar pensar que as proibições culturais são inúteis, como
repetem sem pensar muito os demagogos da "modernidade", é preciso aderir ao individualismo mais radical, aquele que
pressupõe a autonomia total dos indivíduos, quer dizer, a autonomia de seus desejos. É preciso pensar, em outros
termos, que os homens são naturalmente inclinados a não desejar os bens do próximo. Ora, basta observar duas
crianças ou dois adultos brigando por qualquer bugiganga para compreender que esse postulado é falso e é o
postulado oposto, o único realista, que subtende o décimo mandamento. Acredita-se que o desejo é objetivo ou
subjetivo, mas na realidade, ele reside num outro que valoriza os objetos, o mais próximo, o próximo. Para manter a
paz entre os homens, é necessário definir a proibição em função dessa terrível constatação: o próximo é o modelo dos
nossos desejos. É o que eu chamo de desejo mimético.
Explicação implacável e terrivelmente severa para nós, pobres humanos...
Girard - O cristianismo nunca previu que iria dar certo. É sua grande força! Os primeiros cristãos tinham até
vislumbrado uma derrota bem rápida, senão não teriam escrito o Apocalipse nem acreditado firmemente no fim desse
mundo. Ao reler certas palavras de Jesus, nos apercebemos que as relações mais íntimas são as mais ameaçadas: "Vim
separar o pai do filho", "Não creiam que vim trazer a paz, vim trazer o gládio", "Vim trazer o fogo à Terra e como eu
desejaria que ele já estivesse aceso", etc. O cristianismo opera uma revolução única na história universal da
humanidade. Suprimindo o papel do bode expiatório, salvando os linchados, proclamando o valor da inocência,
oferecendo a outra face, a fé cristã priva bruscamente as sociedades antigas de suas vítimas sacrificiais habituais. Não
se libera mais o mal se atirando sobre um culpado designado, cuja morte traz apenas uma falsa paz. Ao contrário,
tomamos partido da vítima recusando a vingança e aceitando o perdão das faltas. O que supõe que cada um zele pelo
outro atendendo a princípios fundamentais e que cada um zele por si mesmo.
No entanto, num primeiro momento, há uma grande desordem. Como explicar que o sistema de valores cristão
tenha podido triunfar?
Girard - A exigência cristã produziu uma máquina que vai funcionar a despeito dos homens e seus desejos. Se
ainda hoje, depois de 2 mil anos de cristianismo, censuram-se certos cristãos por não viver conforme os princípios que
eles pregam é porque o cristianismo se impôs universalmente, mesmo entre aqueles que se dizem ateus. O sistema
posto em movimento há 2 mil anos não vai parar, pois os próprios homens se encarregam disso fora de qualquer
adesão ao cristianismo. O Terceiro Mundo não cristão acusa os países ricos de fazê-lo sua vítima, pois os ocidentais
não seguem os próprios princípios. Todo mundo recorre sistema de valores cristão e, finalmente, não há mais outros. O
que significam os direitos do homem senão a defesa da vítima inocente? O cristianismo, em sua forma laicizada,
tornou-se de tal maneira dominante que não vemos nada melhor que ele. A verdadeira mundialização é o cristianismo!
(Tradução de Luíza Mendes Furia)
O Estado de São Paulo, 31 de outubro de 1999