A verdade incomoda

JARBAS PASSARINHO


No dia 31 de março passado, um repórter perguntou-me por telefone o que eu achava da nota do Exército a respeito da data. Não a havia lido.

Antecipei, porém, que uma ordem do dia é dirigida ao público interno e que um fato histórico deve ser relembrado. Leu-me ele um trecho da nota, que logo elogiei por vê-la serena, longe dos ditirambos à moda grega prenhes de paixão entusiástica. Ao contrário, o parágrafo que me foi lido é de um comedimento exemplar, mas pareceu-me que a pergunta do jornalista embutia desaprovação por ter sido a nota divulgada pela Internet. Paralelamente, informava-me que os partidos de esquerda haviam dado declarações frontalmente contrárias ao ocorrido em 1964. Perguntei-lhe se se lembrara de ler os editoriais do seu próprio jornal sobre a data. Não lera, o que não surpreende.
 
Não faz muito, vi uma charge em jornal norte-americano. Dois idosos a conversar sobre a História. Um disse que cabia aos vencedores escrevê-la. "E o que cabe aos vencidos?", indagou o outro. "Pedir desculpas", foi a resposta... Entre nós, reescrevem-na os vencidos. Claro que desculpas não pedem; ao revés, exigem que as peçamos nós. São maniqueístas por conveniência: os comunistas encarnaram o Bem ao desencadear a luta armada; e os que os venceram foram o Mal. Vencedores são agora os que ganharam a batalha da comunicação. Dominam a mídia. São as vozes preponderantes nos auditórios cativos das salas de aula, do secundário ao superior. Prevalece a inversão da verdade, mas a versão é desmentida pelos grandes jornais dos idos de março de 64.
 
Releiam-se os seus contundentes editoriais, ora bradando contra a desordem social e econômica, ora insurgindo-se contra a ameaça comunista, no auge da expansão das guerras revolucionárias da guerra fria. O Correio da Manhã, prestigioso jornal do Rio de Janeiro, no dia 31 de março de 64 clamava: "O Brasil já sofreu demasiado com o governo atual. Agora Basta." E logo no dia seguinte: "Só há uma coisa a dizer ao sr. João Goulart: saia!" Não era o único. Toda a grande imprensa, exceto a Última Hora, batia na mesma tecla rebelde. Em 13 de março houvera o comício da Central do Brasil, no Rio. Fartos cartazes vermelhos com foice e martelo exigiam a legalização do Partido Comunista; o ardor revolucionário de Brizola radicalizava o nacionalismo e pregava a reforma constitucional; e Jango estatizava as refinarias privadas. A Folha de S. Paulo, do dia seguinte, insurgia-se: "Resta saber se as Forças Armadas ficarão com o presidente, traindo a Constituição, ou defenderão a instituições e a Pátria."
 
No Rio, o Jornal do Brasil não deixava por menos, em editorial do dia 31:
"Quem quisesse preparar um Brasil nitidamente comunista não agiria de maneira tão fulminante quanto a do sr. João Goulart a partir do comício de 13 de março."
 
O Estado de Minas, já antes, em 18 de março, em editorial alertava: "A sorte está lançada. Ninguém tem mais o direito de iludir-se. Abrem-se agora apenas dois caminhos ao Brasil: a democracia ou o comunismo."
O Globo, em dois editoriais nos dias 2 e 5 de abril, também viu no comunismo ameaça real. No primeiro, disse que as Forças Armadas haviam livrado a Nação "do amargo fim que lhe estava reservado pelos vermelhos, que haviam envolvido o Executivo federal". Reiterou o julgamento no segundo: "A Revolução democrática antecedeu num mês a revolução comunista." O jornal devia saber por que se referiu à nossa antecipação de um mês... Por isso, o general Lyra Tavares chamava o 31 de março de contra-revolução. Jacob Gorender, comunista lúcido, reconhece a pré-revolução da esquerda e chama o 31 de março de "o golpe preventivo".
 
Isso foi ontem. Hoje, querem passar-nos por ter inventado um perigo comunista, usado a indústria do anticomunismo - como Getúlio o fez em 1937 - para usurpar o poder. Em São Paulo, o Estado igualmente combatia o desmando e relatava a passeata anterior a 31 de março, de 1 milhão de pessoas, mulheres e religiosos à frente, que não por acaso marchavam invocando "Deus e a liberdade".
 
Um fato histórico foi o 31 de Março de 64, maciçamente exigido pela sociedade civil e apoiado pela hierarquia da Igreja. E outro, a duração da intervenção militar. Em entrevista recentemente publicada, dom Paulo Evaristo Arns confessa ter ido ao encontro das tropas rebeladas de Minas Gerais. Ofereceu-lhes assistência religiosa, porque "temia um período de anarquia e até de comunismo". Depois, decepcionou-se com "as cassações e a ditadura à maneira hitlerista". Hitlerista! Mesmo os santos homens exageram nos adjetivos. Condenam-nos o tempo longo do autoritarismo. Poderia ter acabado ao fim de 1973, as guerrilhas comunistas destroçadas, exceto a do PC do B, no Araguaia, mera aventura stalinista, rompida com Moscou e Mao e apoiada só pela insignificante Albânia. Marighella, Lamarca et tutti quanti forçaram Costa e Silva a editar o AI-5, para combatê-los e ao terrorismo. A luta armada, no Brasil, disse-o Prestes, só teve um efeito: alongar, no tempo, a duração do autoritarismo. Realista, condenou-a, dada a enorme desvantagem da correlação de forças. Skidmore, em entrevista ao Estado, nos anos 70, disse o mesmo. Mas a responsabilidade da esquerda armada é ignorada. Ela é o Bem; nós, o Mal.
 
Dir-se-á que as liberdades fundamentais deviam ter sido mantidas. A Colômbia manteve-as. As guerrilhas comunistas já duram 40 anos e dominam parte considerável do território colombiano. A verdade, porém, precisa ser sacrificada no altar dos fraudadores da História. Ela incomoda. Por isso está sendo desfigurada, desde o 31 de março de 64.

 


Jarbas Passarinho, presidente da Fundação Milton Campos, foi senador (PPB-PA) e ministro de Estado


 

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