Trechos do livro "O Consenso de Washington" - de Paulo Nogueira Baptista

 

Regressividade e minimalismo tributário

A proposta da "burocracia washingtoniana" é declaradamente conservadora no terreno tributário. Posiciona-se contra a utilização da política tributária como instrumento de política econômica ou social e se opõe à elevação da carga tributária como forma de equilibrar as contas públicas. Sem se preocupar com o fenômeno da evasão, recomenda que a carga tributária seja distribuída sobre uma base mais ampla e que, para isso, seja menos progressivo o imposto de renda e maior a contribuição dos impostos indiretos. A função do imposto se circunscreve a cobrir as despesas mínimas de um Estado reduzido a sua expressão mais simples.

Trata-se de proposta que acentua ainda mais o grande peso que já tinham na América Latina os impostos indiretos e que tende a contribuir para o agravamento da perversa estrutura da distribuição da renda na região. Mas, sem dúvida, atraente para os setores empresariais, concorrendo para a popularidade das reformas neoliberais entre as elites latino-americanas.

Privatizar ou desnacionalizar?

Muito defendida em nome da eficiência da gestão privada dos negócios, a privatização é também promovida em função de objetivos fiscais de curto prazo. A saber, a necessidade de assegurar aos Tesouros depauperados recursos não inflacionários e não tributários necessários ao equilíbrio das contas governamentais, sem necessidade, portanto, de aumentar impostos ou cobrá-los com mais rigor. Com a vantagem adicional de proporcionar, ao mesmo tempo, bons negócios ao setor privado. Na realidade, do ponto de vista da retomado do desenvolvimento, mais válido seria canalizar os recursos do setor privado para os novos investimentos.

A privatização se presta diretamente ao propósito de enfraquecimento do Estado, quando se aplica aos monopólios em áreas estratégicas da economia, através dos quais o governo não apenas assegura o suprimento de insumos básicos como energia e telecomunicações mas também faz política industrial, por intermédio das compras governamentais. A crítica à pouca eficiência dos monopólios estatais não leva em consideração que a gestão dessas empresas foi sacrificada, em grande parte, pela contenção dos preços públicos em função de um equivocado combate à inflação que se acabou refletindo no desequilíbrio do próprio orçamento do governo. É bem possível que na luta contra as grandes empresas estatais que atuam na área de monopólio possa também estar em jogo, na múltipla motivação neoliberal um propósito de desarticulação da máquina estatal na área da administração indireta, ainda preservada da desmontagem que já se operou na administração pública direta.

No terreno da privatização também se evidenciam incoerência entre o discurso e a ação.Em alguns casos, notórios porém pouco comentados, não ocorre propriamente privatização mas apenas desnacionalização. A Aerolineas Argentinas, por exemplo, passa da propriedade do governo argentino para a da Ibéria, empresa controlada pelo Estado espanhol. Em apoio á tese da privatização citam-se com abundância, embora sem maiores detalhes, a experiência do Primeiro Mundo,. Em especial a da Inglaterra. Fala-se pouco ou quase nada, entretanto, do maior, mais rápido e mais intenso processo de privatização efetuado no mundo, o que está ocorrendo ex-Alemanha Oriental.

Naquele caso, adotaram-se critérios muito interessantes que talvez pudessem ter valia na América Latina. Merece referência, em particular a exigência de que o comprador se comprometesse a (1) fazer investimentos na melhoria das instalações e equipamentos e (2) manter o nível de emprego. Vale dizer que a busca do aumento de produtividade não se deve dar unicamente pela redução da mão-de-obra, como tem ocorrido nas privatizações na América Latina, provocando aumento de desemprego que se torna inevitável em clima recessivo.

A abertura pela abertura

Em favor da abertura a importações de mercadorias, invoca-se a ineficiência do protecionismo como alocador de recursos, como obstáculo aos interesses do consumidor nacional e como fator comprometedor das chances de uma inserção competitiva na economia mundial, vista como única forma de promover o desenvolvimento.

Não se leva em conta nessa argumentação o caráter oligopolista do comércio internacional dominado por grandes empresas nem o fato de que substancial parcela desse comércio já se faz intrafirmas, entre matrizes e subsidiárias, o que torna ainda mais difícil o controle das práticas restritivas de negócios. Nem se toma em consideração como a má estrutura da distribuição da renda pode afetar a propensão a importar. Nesse raciocínio, desconsidera-se também o risco da desindustrialização e do desemprego, o que aliás, inevitavelmente reduziria o número dos consumidores cuja defesa se invoca.

Ao apresentar suas propostas de "abertura pela abertura" como um fim em si mesmo, o Consenso de Washington não menciona o que de fato se pratica no Primeiro Mundo que nos aponta como modelo. Não esclarece que, ali, a abertura dos mercados se fez com a observância de três princípios básicos: 1. Obtenção de contrapartidas equivalentes dos parceiros comerciais; 2. Admissão de cláusulas de salvaguarda contra a concorrência desleal ou capaz de desorganizar mercados; e 3. Gradualidade na redução das barreiras tarifárias, processo que se estendeu por quatro décadas de sucessivas rodadas multilaterais de negociação no âmbito do GATT, das quais a que acaba de se encerrar em Marrakesh é a oitava.

O que sugere à América Latina é a inserção não negociada, pela abertura unilateral e rápida de nossos mercados. Isto sem levar na devida conta que as trocas comerciais entre as nações são cada vez mais reguladas pelas práticas comerciais restritivas das multinacionais. Como apontou, em ‘1948, o Departamento de Estado no seu relatório ao Congresso americano a respeito do que terminaria sendo uma primeira tentativa frustrada de se fundar, com a "Carta de Havana", uma Organização Internacional de comércio: "Seria fútil remover s discriminações e reduzir ou eliminar barreiras ao comércio impostas pelos governos se a Carta da OIC deixasse às empresas liberdade para criá-las".

Menos ainda se discute a insuficiência do argumentos das vantagens comparativas quando visto, na concepção neoliberal, como sendo intrinsecamente de natureza estática, isto é, em termos de utilização apenas dos fatores existentes de produção. Por essa concepção, o capital e a tecnologia só se transfeririam entre nações para a exploração de recursos naturais ou para serviços cuja prestação exigem presença no local onde são fornecidos.

A presunção do Consenso de Washington pareceria se a de que os países latino-americanos teriam condições de competir na exportação de produtos primários para os quais possuíssem uma vocação natural e/ou em produtos manufaturados sobre a base de mão-de-obra não qualificada de baixos salários. Como se fosse possível ou desejável perpetuar vantagens comparativas baseadas numa situação socialmente injusta e economicamente retrógrada e, ao mesmo tempo, enfrentar as visíveis nuvens negras do protecionismo que começam a se esboçar no horizonte dos mercados dos países desenvolvidos, em nome do que já classificam de "dumping social"................

Investimentos estrangeiros: igualdade ou privilégio?

Em matéria de inversões estrangeiras, a questão se coloca de forma particularmente inadequada e contraditória. Parte-se, no Consenso de Washington, da premissa equivocada que a América Latina era hostil ao investimento direito estrangeiro e por isso dera preferência, com graves conseqüências, ao capital de empréstimo. A América Latina, e o Brasil em especial, sempre foram muitos abertos ao investimento estrangeiro de risco, salvo em poucas áreas, como o petróleo, em que o capital estrangeiro nem sempre teve interesse em efetivamente explorar, sobretudo após as grandes descobertas no Oriente Médio.

A preferência latino-americano pelo capital de empréstimos na década de 70 se deveu aos elevados montantes necessários á pronta cobertura dos súbitos e vultosos déficits comerciais, insuscetíveis de serem atendidos mediante capitais de risco. As conseqüências adversas desse tipo de endividamento não decorreram – como pretende o consenso de Washington – de características intrínsecas dessas operações mas do fato excepcional de que foram concedidos a taxas flutuantes de juros. A taxas fixas, os empréstimos – desde que não sujeitos a condicionalidades políticas ou vinculados à importação de mercadorias – serão sempre mais vantajosos do que os investimentos diretos, pelo menos do ponto de vista de balanço de pagamentos.

A proposta neoliberal, mais claramente explicitada nas negociações multilaterais da Rodada Uruguai do que no consenso de Washington, implica a obrigação de aceitar o capital estrangeiro sempre que este desejar investir na prestação de serviços que exigiam presença local ou a exploração de recursos naturais in situ; baseia-se também, em restrições ao direito dos países importadores de capitais a conceder incentivos destinados a atrai-los para produzir manufaturas, especialmente se destinadas à exportação, sob o argumento de que tais incentivos têm ou podem ter efeitos distorsivos sobre o comércio internacional. Sustenta-se, por outro lado, o direito desses capitais a ter um tratamento no mínimo igual ao capital nacional, eufemismo através do qual buscam um tratamento superior sob a forma, por exemplo, de garantias jurídicas extraterritoriais de que não gozam os investidores nacionais.

Defende-se o investimento direto estrangeiro como importante instrumento não só de complementação da poupança nacional mas também de transferência de tecnologia. Não se esclarece, porém, que a insistente reivindicação dos países credores da proteção adicional a patentes de seus nacionais têm tal amplitude que podem criar situações de monopólio desestimuladoras, para dizer o mínimo, tanto de investimentos que transfiram poupança e tecnologia quanto de transferência per se de tecnologia, mediante licenciamento de terceiros. Não se esclarece, na realidade, que os países desenvolvidos preferem exportar bens e não tecnologia ou capitais que proporcionem a outros países a capacidade de produzi-los, ainda que apenas para consumo interno.

Querem, contudo, que lhes reconheça o direito de investir sem restrições para oferecer serviços que não podem ser exportados.

No proselitismo em favor do investimento estrangeiro, não se mencionam, além disso, as restrições ás quais o mesmo está sujeito nos países de origem. Estados Unidos, por exemplo, além de áreas reservadas exclusivamente a nacionais – radiodifusão, televisão, transporte aeronáutico e marítimo etc. – considera-se necessário o controle do investimento direto estrangeiro na medida em que o mesmo é visto como uma forma de endividamento inferior à tomada de empréstimos.

Entre outras razões, porque consideram que os investimentos diretos representam uma liability, por prazo indefinido, sobre o balanço de pagamentos, seja pela remessa de dividendos seja pelo impacto que costumam ter as importações que fazem os investidores estrangeiros do seu país de origem ou ainda pela preferência que possam dar à matriz ou a outras subsidiárias em fornecimentos a terceiros mercados. Reconhece acertadamente o governo norte-americano que investimentos estrangeiros diretos envolvem transferência para o exterior de decisões empresariais que podem ter reflexos importantes para a economia e para os interesses estratégicos dos Estados Unidos.

O comportamento das autoridades americanas não constitui exceção entre os países desenvolvidos. Por essa razão, a OECD – Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento, que congrega aqueles países – aprovou em 1979 uma "Declaração sobre Investimento Internacional e Empresas Multinacionais" com vistas a tornar mais transparentes as discriminações existentes contra o investimento estrangeiro e, sendo possível, reduzi-las.

Como lembrou o secretário de Estado Foster Dulles, na gestão do presidente Eisenhower: "Há duas maneiras de conquistar um país estrangeiro: uma é ganhar o controle de seu povo pela força das armas; outra é ganhar o controle de sua economia por meios financeiros’.

Por isso mesmo, os Estados Unidos controlam, aliás, anão apenas o investimento estrangeiro que se faça em seu território; controlam, igualmente, o investimento norte-americano no exterior. Quando conveniente, estabelecem restrições de ordem econômica ou política, quando obrigam, por exemplo, sua multinacionais a aumentar suas remessas de dividendos para os Estados Unidos ou proíbem que as mesmas exportem para países sob sanções econômicas norte-americanas.

Em 1963, por exemplo, quando o governo daquele país, para defender o seu balanço de pagamento, introduziu um "imposto de equalização das taxas de juros", emitindo, em seguida, "guidelines" sobre s operações das subsidiárias de empresas norte-americanas no exterior. Por meio dessas diretrizes, restringira a captação de recursos nos Estados Unidos por aquelas empresas, e as compeliria a exportar mais, a trazer mais dividendos e a repatriar capitais.

Ao anunciar tais diretrizes, o então secretário do Tesouro, Henry Fowler, recordaria que as multinacionais norte-americanas operando no exterior "não apenas têm importância comercial mas também um papel político altamente significativo na política externa dos Estados Unidos". E é com base, aliás, nesta linha de raciocínio, que os Estados Unidos, seja por ato do governo ou do congresso, não hesitam em aplicar extraterritorialmente os controles que acham por bem exercer sobre as sua multinacionais.