Bilhete a Stefan Zweig

STEFAN ZWEIG CONFIAVA NA

DERROTA DO NAZISMO

Correio do Povo ----Porto Alegre ----1.º Março de 1942

Eliminados dois períodos da declaração deixada pelo grande escritor - Cláudio de Souza acusado da adulteração.

Rio, 28 (C.P) - De forma sensacional o "Correio da Manhã", em sua edição de hoje estampa o "fac-símile" da declaração em que o infortunado Stefan Zweig escreveu antes de suicidar-se para provar que na tradução do original alemão para português tinham sido eliminados dois períodos finais, nos quais o célebre escritor expressava sua confiança na derrota do nazismo. Efetivamente, confrontando-se o original com a tradução verifica-se a falta destes dois períodos: "Deseja que eles- os amigos de Zweig - possam ver ainda a aurora que virá depois dessa longa noite. Eu, impaciente demais, vou antes disso."

Traduzindo essas expressões omitidas da referida declaração, diz, o "Correio da Manhã " que Stefan Zweig não se limitou a despedir-se dos amigos. Formulou-lhes, também, votos para que pudessem ver a aurora que virá depois, isto é a derrota do nazismo, que foi a causa de seu desespero.

Em seguida o matutino carioca, articula o seguinte juízo: "Suprimindo, entretanto, da declaração o final que, apoiado no próprio texto em alemão aqui restabelecemos, é esta a conclusão a que se chega: " Stefan Zweig teria recorrido ao suicídio, apenas por depressão sem estar confiante na derrota do nazismo e, talvez mesmo, por haver recebido informações exatas sobre o triunfo inevitável de Hitler..."

Encerrando seus comentários, o "Correio da Manhã " atribui o lapso a Agencia Nacional por ter distribuído a tradução da referida declaração aos jornais, mas sem indicar, como certamente o fará amanhã, o verdadeiro responsável por tão inqualificável traição. Predominando essa revelação do matutino carioca nos comentários do dia, fomos averigua-lo aparecendo logo a verdade. Auxiliando o novo esforço, a reportagem de "O Globo" ouviu o escritor Leopoldo Stern, amigo de Zweig, que mostrou logo o fio da meada com estas positivas declarações: " Fui eu quem se encarregou da versão da carta do alemão para o francês. Não omiti, no entanto, qualquer trecho, respeitando todo o original de Zweig. Para o português não o podia fazer por desconhecer o idioma. Mais tarde, li nos jornais a tradução para a língua deste país com a parte final cortada.

Sem saber a que atribuir o fato nenhuma providencia tomei, por achar que não cabia a mim tal iniciativa."

Depois o Sr. Leopoldo Stern confessou que entregou sua versão francesa para ser passada para o português a uma pessoa, que se dizia autoridade. Essa pessoa sabe-se, agora, de maneira positiva que foi o acadêmico Cláudio de Souza, tido e havido aqui em todos os meios como franco simpatizante do nazismo. E, esse mesmo Sr. Cláudio de Souza foi que, num segundo ardil, passou pelo telefone a sua tradução portuguesa da declaração de Zweig para a Agencia Nacional, que então a distribuiu aos jornais para facilitar o serviço de imprensa.

Efetivamente, estando o Sr. Cláudio de Souza em Petrópolis quase debulhado em lagrimas sobre o corpo ainda quente de Stefan Zweig, como seu amigo que se ufanava de ser, ninguém de boa mente poderia supor que o imortal acadêmico fosse, por qualquer interesse subalterno, confirmar o aforismo italiano "Tradutore, traditore".

Mesmo assim, com essa vulgaridade toda de seu procedimento menos correto, o acadêmico Cláudio de Souza não se anima falar. Continua em Petrópolis onde a reportagem do vespertino "A Noite" verbera, também, o fato, chamando-o tradutor de duplamente traidor, "porque traiu ao mesmo tempo a amizade do morto ilustre e o texto traduzido". E, comentando, diz: "Um quinta-colunista não teria traduzido melhor. Pode ser coincidência, mas é difícil acreditar-se que tenha sido inocente essa tradução sintetizada e tão favorável ao derrotismo, que os adeptos do Eixo andam espalhando"...

 

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 RESPEITO A ZWEIG !

(Especial para o "Correio do Povo") ------------------------Porto Alegre----01-05 -l.942---- Correio do Povo

Rubem Braga

Só agora, graças a uma transcrição, tomei conhecimento de um artigo que o padre Álvaro Negromonte, de Minas Gerais, escreveu a propósito de Stefan Zweig. Nesse artigo, intitulado " Zweig e Mojica", o sacerdote mineiro louva o gesto de Mojica entrando para um convento. Até aí está certo. Mas é impossível ver sem espanto o que ele diz sobre Zweig, e o tom em que o diz:

"Foi uma atitude covarde. O judeu, que passara a vida ganhando dinheiro com livros fáceis e medíocres, desfrutando a existência folgada, divorciando-se de uma e "casando-se" com outra, terminou a vida ingerindo veneno".

E mais adiante:

"O nazismo confiscou-lhe os bens, pois não é atoa que o nazismo existe. Aí o homem desanimou de viver e talvez de morrer. Aí também se revelou a incrível mediocridade de sua vida".

E mais:

"Ele não viu cousa alguma a fazer senão matar-se, porque só tinha 30 contos num banco e não podia viver em liberdade. Como isto é melancólico. Como é sinal de mediocridade de espírito, de covardia moral!"

Quem escreve essas cousas não é um padre qualquer. É uma das figuras mais conhecidas do clero de Minas, jornalista e escritor de responsabilidade.

Quando uma criatura humilde se mata ao lado do esposo, seu companheiro de trabalho, de vida e de tristezas, este é o momento mais indicado para dizer que eles eram "casados", abrindo essas aspas de desprezo para classificar uma união que podia ser reprovável, do ponto de vista da Igreja, mas era humanamente digna e honesta? Fossem amantes, fosse ela uma perdida, fosse quem fosse. Não lhe bastaria ser mulher e estar morta para que fosse poupada e esse ódio mesquinho? O desespero dessa mulher obscura e fiel que, sem uma palavra, silenciosamente, se matou ao lado do homem a quem se dedicara tanto - não mereceria um pouco de respeito?

E por que também essa maneira de falar de Zweig? Por que apontar de maneira tão claramente depreciativa a sua condição de judeu? Por que insinuar que o nazismo teria seus motivos para confiscar os bens desse homem? Por que afirmar que ele se matou por ter no banco apenas 30 contos? Quem é esse Zweig? Terá sido algum bandido, algum traidor, algum inimigo de Deus, da Pátria, da Humanidade?

Stefan Zweig era um homem de grande cultura e um escritor profissional . Escreveu livros fracos e escreveu livros bons. Nunca foi milionário. Vivia de sua pena. Tinha economias, fruto desse trabalho árduo. Foi expulso de sua terra, afastado de sua gente . Veio para o nosso país, e o louvou, com desinteresse comprovado e raríssimo, em um belo livro de êxito internacional. Todos os que o conheceram dizem como era desprendido, e nos meios editoriais não se aponta nenhum autor estrangeiro de renome que se mostrasse menos exigente em matéria de direitos autorais. Em nossa terra não praticou nenhum crime, não atacou nenhuma crença, não ofendeu ninguém. Recebido com simpatia, pagou regiamente ao Brasil a hospitalidade que teve. À beira da morte, minutos antes do suicídio, ao traçar as poucas linhas de despedida ao mundo, quando nenhum interesse mais o prendia a nada, ainda se mostrou grato à nossa terra e à nossa gente. O último artigo que escreveu não é literatura "fácil e medíocre". É uma das páginas mais elevadas e dolorosas escritas nos últimos tempos, e um libelo terrível contra o nazismo opressor.

Os que choraram a sua morte não são partidários do suicídio, como diz o senhor padre Álvaro Negromonte para fazer um pouco de ironia leviana e sem graça em um caso tão triste.

Apenas o que se fez foi compreender e lamentar. Todos sentiram que a deserção desse homem valeu por um lancinante contra a estupidez nazista. Sua morte dramática aprofundou no coração de todos o sentimento de repulsa ao regime monstruoso de Hitler.

Por que vem o senhor padre Álvaro Negromonte lançar sobre esse corpo vencido a baba de seu desprezo? A quem serve, fazendo isso, o senhor padre Álvaro Negromonte - ou melhor- a quem isso que ele faz? À Igreja? Não. Essas atitudes de intolerância desumana, de crueldade, de insensibilidade, podem afastar pessoas da Igreja, nunca atraí-las. A Religião não é isso, esse insulto frio aos mortos, essa agressão mesquinha aos vencidos. A quem aproveita?

Não há outra resposta : essa agressão contra o cadáver de Zweig aproveita unicamente ao nazismo. Depois de levar um seu inimigo ao suicídio ele se compraz em vê-lo achincalhado. Não há, no artigo do senhor padre Álvaro Negromonte , uma só palavra contra o nazismo. Tudo é contra Stefan Zweig. E há um tom anti-semita bastante significativo. Anti-semitismo que também não serve à Igreja, porque publicamente o condena. Anti-semitismo que aproveita também unicamente ao nazismo.

O senhor padre Álvaro Negromonte é um membro destacado do clero, um homem de influência, um jornalista e escritor de responsabilidade. Era natural que ele achasse mais louvável e belo o gesto de Mojica, entrando para um convento, que o de Zweig, se matando. Até aí estava direito, estava certo, dentro de sua crença de católico. Mas não se limitou a isso. Foi adiante, lançando mofa e desprezo com insinuações gratuitas e covardes, palavrinhas torpes de menoscabo- quem faz isso não está defendendo nenhuma Igreja, nenhuma religião, nenhum princípio de moral humana ou divina. Está, simplesmente, defendendo o nazismo. Isto não é pregar moral cristã. Isto é corvejar, grasnando, crocitando, sobre o corpo de um homem que Hitler matou. Stefan Zweig era amigo do Brasil, um amigo da liberdade, um amigo dos homens. Respeito à memória de Stefan Zweig e de sua companheira!

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Bilhete a Stefan Zweig

12 maio, 1945 ---- Revista da Semana ---- Celestino Silveira

Veja você em que deu a sua precipitação, amigo. Desanimando em meio da jornada, não acreditou que os ventos mudassem a nosso favor e presumiu que estivesse malogrado qualquer recurso de salvação. Nosso barco e nossas almas, devia estar tudo soçobrando, jogado contra a maré, de encontro às ondas mais revoltas, de crista erguida, para você, que tinha obrigação de enxergar mais longe, desanimar. Desanimar a ponto de cortar as amarras da vida por sua própria conta, levando ainda, no redemoinho, a vida de quem o acompanhava em sua luta e em seu desespero.

A hora era dramática, certamente. As aparências faziam crer que tudo andasse irremediavelmente perdido, quando você, longe do cenário onde se desenrolava o drama, talvez por isso mesmo mais impressionado, tomou a deliberação extrema. Demorava a notícia da invasão, e espíritos tendenciosos especializavam-se em repetir que essa invasão jamais viria. Ou , quando viesse, seria para acabar num desastre maior. Pressagiava-se tudo pelo pior. E no convívio de alguns que o cercavam, quantos deles não seriam os primeiros a contribuir para a sua queda de espírito! Muitos que hoje se ufanam com a Vitória. Talvez dos que mais tenham embandeirado a fachada...

E no entanto você foi tão precipitado, amigo! Esperasse mais um pouco e não se justificariam seus temores... Você mesmo seria o primeiro a afugentar o fantasma do suicídio. Houve quem dissesse então o que invariavelmente se diz de um suicida: corajoso! E no seu caso adiantou-se que sua coragem teria sido maior, pois dera para arrastar a quem o acompanhava. Mentira! Em cada suicida esconde-se um indivíduo tangido pelo medo, medo de qualquer coisa na iminência de suceder ou já consumada. Medo da enfermidade incurável, da ruína financeira ou do desmoronamento de um ideal, que foi o seu caso. Não estivesse você dominado pelo pavor do que lhe poderia suceder com a vitória nazista, quem sabe se insuflado pelo complexo trabalhado por terceiros, e seria o primeiro a reconhecer a sua covardia. Deixassem os outros levar-se pela sua atitude e tudo estaria perdido.

Mas dizer-se que foi o homem que tão bem dissecou a psicologia do medo quem por ele se deixou arrastar!

Certamente nós sentimos a sua falta neste instante, como sentimos a de outros homens que não mereciam ter morrido. Dois deles tanto falta já estão fazendo nos preparativos da Pab: Roosevelt e Wilkie! Esses, porém, tiveram a coragem de ficar até o fim, mesmo quando o fim se desenhava sombrio. Não quis o Destino que ficassem. Talvez fossem idealistas demais para enfrentarem o jogo de interesses em perspectiva, pronto a gerar novas cisões se espíritos mais fortes não o impedirem.

Você, porém, só não está aqui porque não quis. Por isso não o censuramos, não, mas nos compadecemos.

E depois, quem sabe o que realmente terá motivado seu suicídio A tragédia de Petrópolis ficou envolta em um mistério que algum dia virá a esclarecer-se. Não nos surpreenderíamos, amigo, se ao germe desse mistério se ligasse qualquer semente da Quinta...

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A morte não é bela !

26.03.99 ( Sexta Feira) ----"JORNAL DO BRASIL"- Pag. 09---- "Opinião"

Sagrado Lamir David*

O recente artigo de Fritz Utzeri nesta página, recusando-se, por alto espírito humanitário, a assistir ao filme A Vida é bela!- artigo no qual, mesmo filho de um alemão, de um motociclista do exército de Hitler, declarava não ver qualquer graça que tornasse a vida "bela" para as vítimas do genocídio- fizeram-me escrever estas linhas, pois também jamais verei esse filme!

Filho de libanês que sou, identifico-me com Fritz, filho de alemão: somos ambos não judeus, mas, jamais, contra eles, conscientes que somos de que a justiça moderna não admite tabus: nem na religião, nem na ideologia, e, muito menos, nos direitos humanos!

Feito este intróito indispensável, parto para o núcleo deste artigo, começando por uma pergunta: quem impediu que a vida fosse bela para o grande escritor judeu Stefan Zweig? Como imaginar que quem escreveu coisas tão sensíveis e humanas pudesse encontrar beleza e consolo no auto-extermínio, fugiu do genocídio para o suicídio?!

Admito que Stefan e Lotte tenham se suicidado, porém, isso só reforça a tese que defendo: a palavra suicídio é tão imprópria que deveria ser eliminada do dicionário. Assim como, hoje, chama-se hanseníase uma doença bacilar que no passado, tinha o horroroso e estigmatizante nome de lepra, chamar alguém de suicida é o mesmo que chama-lo de leproso existencial.

Sabem por quê? Quando me dizem : "Fulano se suicidou!", pergunto: "Quem foi o culpado?"

Simplesmente porque, como o hanseniano- ex-leproso- não tem a doença porque quer, assim também o suicida é levado a se matar supostamente pelas próprias mãos, mas só supostamente; de fato, mata-se induzido pela hipocrisia doentia dos valores criados pela sociedade, que transforma os ideais de paz e de prosperidade para todos em privilégios de poucos e miséria de muitos!

Que força maléfica poderia transformar a mente e espírito desse grande humanista, cidadão do mundo por amor e devoção, semita de raça, judeu de pátria, mas, acima de tudo, um eterno amante de seus semelhantes, em todo o mundo?

Contra a besta nazista- mas jamais sionista; seguidor dos preceitos de Moisés- mas jamais adorador do bezerro de ouro!-, Stefan Zweig morou no Brasil, em Petrópolis, onde se suicidou, junto com sua mulher 30 anos mais jovem, estaria repetindo o desespero do romance Lolita, de Nabokov, ou estaria sufocado em sua alma grandiosa pela ignomínia da humanidade que tanto amou?

É um crime contra a verdadeira humanidade imputar o pejorativo nome de suicida a quem tanto amou a vida: desprendido, entusiasmado com os verdadeiros valores do homem, repetiu, na literatura, o que Einstein realizou na ciência!

Há uma polêmica atual que se justifica, ainda que jamais deva ser radicalizada: Stefan Zweig suicidou-se ou foi assassinado?

Em nome da justiça, plena e democrática, pergunto-lhes, sem afirmar que foi assassinado:

1- Por que não fizeram autópsia?

2- A autópsia ainda pode e deve ser realizada, por exumação e exames de ossos, dentes e cabelos. Como garantir, sem autópsia, que houve suicídio, se sem ela os tóxicos supostos de responsabilidade letal não foram relatados dentro do corpo? A ciência conhece os efeitos que esses tóxicos são capazes de produzir.

3- Judeu fugitivo, em plena efervescência do hitlerismo, não haveria um motivo para o assassinato, ainda mais com o autoritarismo da época brasileira?

Um dos livros de Stefan Zweig- lembram-se?- era Brasil, País do Futuro. O povo brasileiro, a incipiente democracia que se instala, a necessidade de lavar-se com mais dedicação nossa roupa suja, tudo isso e mais o exemplo que disso advirá, exige que, mesmo que se conclua que ele não tenha sido assassinado, pelo menos assumamos- pela justiça corajosa e insuspeita!- um preito à memória desse grande humanista e grande admirador de nosso Brasil.

Que se faça a exumação, nem que seja para dirimir dúvidas quanto a uma justiça que jamais existiu em épocas de DIPs e de Gestapos...

*Escritor, médico e ex-professor de farmacologia da U.F. Juiz de Fora

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