Stefan Zweig. O Candelabro Aceso.
A suspeita de assassinato e não suicídio - do famoso escritor abre uma brecha que permite repensar o passado com a perspectiva do presente, devolvendo a Zweig a feição que lhe faz justiça.
Marília Librandi Rocha
Rever a História. Re-iluminá-la. Lançar lhe uma outra luz.
Quem se volta para a própria sombra? Perguntou Stefan Zweig, no conto "Leporella", em 1939. Agora, outra voz pergunta: "quem matou Stefan Zweig?", encontrado morto, com sua mulher, em 1942. Essa pergunta precisa ser feita. Ela é legítima, decente e conseqüente.
A suspeita de assassinato, encabeçada pelo psicólogo e escritor Jacob Pinheiro Goldberg e sustentada por outros pesquisadores, traz de volta o assombro, a perplexidade com a morte mal investigada, neglicenciada (apesar das pompas fúnebres oficiais).
Respeitar Stefan Zweig é suspeitar de assassinato, pois seu suicídio passou para a história como o de um derrotista, e não de um bravo. Se o ato suicida foi seu gesto de adeus, ele o foi para acusar e revelar o assassinato de uma época. Foi-se como o candelabro enterrado, resistindo, e só aguardando um outro momento da história para reacender-se. Stefan nos aguarda. Ele, como disse Goldberg, deixou todas as pistas: morreu jogando xadrez e sua última novela é o jogo de xadrez: Zweig lidava com sutilezas, não com arrogância.
O próprio autor de sua biografia no Brasil, Alberto Dines, reúne dados que legitimam a suspeita de assassinato, mas ele não a ressalta, nem sequer levanta essa possibilidade. Por que? "Pobre Zweig..." seu biógrafo termina o livro com um epílogo com este título. "Pobre Zweig", diz ele repetidas vezes. Como "pobre Zweig"? É preciso dizer: Viva Zweig, Salve Zweig, Grande Zweig.
Frases colhidas do livro de Dines, Morte no Paraíso (1981): "(...) graças à lealdade dos amigos foram dispensadas autópsias e investigações(...)" ; "Ditadura, censura, paternalismo junção de conveniências, leviandade, inconseqüência, impediram que alguns detalhes fossem buscados". (E justifica) " Não alterariam a tragédia..."; Declaração do diretor de Saúde Pública, ao autor: "Fomos proibidos de fazer a autópsia. Ordem do Palácio. Encontramos apenas um tubo de Adalina (...) sonífero leve (..) insuficiente para matar uma pessoa, quanto mais duas".; "...supunha-se nas primeiras horas que Stefan tivesse sido ameaçado ou sofrera pressões de grupos integralistas e pró-nazistas"; "foi derrotado", "teve fim inglório".
Em outro momento, Dines faz um paralelo entre opostos excludentes, comparando Stefan Zweig a Hitler, nesta frase indefensável pinçada do epílogo de sua biografia: "Arribou Stefan no Brasil decidido a abster-se, aceitando instintivamente a pena decretada por Hitler de que judeus devem sumir. Erraram Adolph e Stefan, dois austríacos inquietos". Dois austríacos inquietos? Adolf e Stefan? Não há comparação possível, aproximação nenhuma pode unir o assassino à vítima.
Rubem Braga respondendo aos ataques de covarde dirigidos a Zweig logo após a sua morte, escreveu estas palavras que corroboram nossa tese: "Os que choraram sua morte não são partidários do suicídio. Todos sentiram que a deserção deste homem valeu como lancinante protesto contra a estupidez (...) o corpo de um homem que Hitler matou ". Mas seu biógrafo no Brasil, pensando louvar o escritor, diz: "o campeão do pacifismo (...) desertou" ; "ousou apenas um gesto de militância capitular"; "Zweig parou no meio caminho, personagem de seu próprio crivo".
Inversão de perspectiva: questionar o suicídio é dever de honra para com a memória de um grande escritor. Lidemos com o paradoxo, com a ambivalência dos signos e dos gestos humanos: Stefan Zweig "foi suicidado".
Por que não houve autópsia?
Por que não foi enterrado no cemitério judeu do Rio como queria o Rabino que veio para levar o corpo e foi impedido e ameaçado?
Por que na Declaração final sua esposa não é mencionada se havia um pacto de morte entre eles?
Qual exatamente o veneno ingerido? Entre tantas outras perguntas levantadas por Silvio Saidemberg.
Revejamos a cena.
Os dois, ele e sua mulher são encontrados mortos na cama. Nas fotos do crime eles aparecem em posições diversas. Como confiar nelas, e saber que não houve adulteração? Na época nada foi feito par averiguar o crime. O motivo alegado: não incomodar os mortos. Depois foi achada uma Declaração, pacotes de livros para entregar ao editor, cartas e testamento. Ficou o que provava ineludivelmente o suicídio. Mas e o que não foi achado e se perdeu? E o que não foi contado?
A suspeita de assassinato lança um ponto de interrogação complexo e procedente com a vida, a obra e a história social e política da época. A tese de assassinato está mais próxima da noção de "A História como Poetisa", texto do próprio Zweig, e também da concepção de História que propõe Walter Benjamin (outro "suicidado") e que em suas teses Sobre o Conceito de História mostra a necessidade de uma interrupção no discurso histórico, que ele qualifica de "messiânica", e que tem como fonte a razão poética.
Como disse Jeanne Marie Gagnebin em seu importante estudo História e Narração em Walter Benjamin (Perspectiva,1994): "a tarefa do historiador "materialista" é definida essencialmente, pela produção, (de) rupturas eficazes". "Longe de apresentar de início um outro sistema explicativo ou uma "contra-história" (...), a reflexão do historiador deve provocar um abalo, um choque que imobiliza o desenvolvimento falsamente natural da narrativa". O que Pinheiro Goldberg fez parece ser exatamente isto: não quis propor uma "contra-história" mas provocar no desenrolar de seu discurso um abalo capaz de trazer Stefan Zweig de volta. É uma espécie de ressurreição pela escrita ato profano que engendra o retorno à vida.
Trata-se de uma "hermenêutica da suspeita", capaz de interromper a história
para marcar "o lugar de uma verdade não-dita", assim como a psicanálise traz à tona o recalcado. "O pensamento de Benjamin" continua Gagnebin "me parece se aproximar mais da tradição profética judaica, isto é, de uma palavra corrosiva e impetuosa que subverte o ordenamento tranqüilo do discurso estabelecido; subversão tanto mais violenta quanto ela é também o lembrar de uma promessa e de uma exigência de transformação radical".
Um dos modos de "fazer irromper do passado uma significação inédita" é perceber semelhanças entre episódios distantes no tempo. Goldberg fez isso ao aproximar o caso de Zweig ao de Wladimir Herzog, ao de Iara Iavelberg, cujo suicídio alegado não passava de uma grande farsa.
Mais do que falar em tese trata-se de uma postura diante da vida, diante da arte, diante da memória humana, escrevendo a história que vale a pena da humanidade. Ver o seu tempo mas também fora dele enxergando-o com vistas à Eternidade.
Por tudo isso, prefiro um epílogo que termine dizendo:
Salve Zweig! Eu te saúdo.
Marília Librandi Rocha é Mestre e Doutoranda em Teoria Literária (USP). Autora da dissertação As Espantosas Palavras uma análise de Grande Sertão:Veredas de Guimarães Rosa (FFLCH-USP). Co-roteirista do espetáculo "Um Certo Olhar Pessoa e Lorca"(com Raul Cortez). Colaboradora do Caderno de Sábado, do Jornal da Tarde (SP).
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