A LIBERAÇÃO DA MACONHA

Dr. Sílvio Saidemberg

Estamos diante de dois princípios: o primeiro diz respeito à liberdade individual de escolha; o segundo discerne sobre a utilização de substâncias que formam hábito e têm um potencial para figurar como um dos fatores causadores de doença.

Pelo primeiro princípio poderíamos discordar da escolha feita, mas, basicamente respeitar o direito individual em fazê-la, salvaguardados os direitos individuais de outros que não deveriam ser induzidos a seguir os passos de quem busca qualquer coisa que possa por em risco a saúde ou a vida. Bebidas alcoólicas e tabaco têm se beneficiado de tolerância social e existe uma forte pressão de setores da população para que outras substâncias venham a desfrutar de semelhante tolerância; em particular a maconha.

Todas as sociedades humanas definem os limites entre o aceitável e o inaceitável, seja a produção e venda de alimentos, seja a qualidade de água ingerida pela população, seja a responsabilidade na utilização de medicamentos. Algumas sociedades proíbem o que é aceito por outras, por exemplo: o caso de bebidas alcoólicas interditadas nas sociedades islâmicas e apenas restringidas nas sociedades ocidentais. Nós temos a confirmação tanto de levantamentos estatísticos quanto da experiência clínica que o início da utilização de bebidas alcoólicas e do tabaco ocorre em grande freqüência na infância e na adolescência. Restrições nas sociedades ocidentais, apenas, em certos grupos da população conseguem ser mais efetivas. Se for liberado o uso para cidadãos acima de 18 anos, nada impedirá que os mesmos cedam parcela de sua maconha a seus amigos abaixo da idade limite. Teremos apenas mais substâncias oficialmente disponíveis para causar doença na população, sem que haja a pecha de transgressão adicionada a elas. Naturalmente, quem "precisa transgredir", então, poderá buscar outras opções potencialmente até bem mais perigosas do que a maconha. Na atualidade, crianças e adolescentes também vêm tendo na abundantemente disponível maconha a sua terceira droga de uso mais freqüente. Infelizmente, o princípio de liberdade invocado na defesa do direito de se usar maconha não inclui salvaguarda dos direitos individuais de outros, da mesma forma que as bebidas alcoólicas e o tabaco não puderam salvaguardar.

O segundo princípio versa sobre o julgamento do risco à saúde pelo uso de substâncias. Sabemos que até mesmo fantásticas medicações precisam de supervisão médica para a sua utilização apropriada. A talidomida que, hoje em dia, vem sendo adequadamente utilizada no tratamento do mal de Hansen, causou sérias malformações fetais na década de sessenta, quando fora utilizada como tranqüilizante em mulheres nos primeiros meses de gravidez. Sabemos que tanto as bebidas alcoólicas quanto o tabaco estão também associados a sérios problemas do desenvolvimento fetal. Se até alimentos ingeridos em excesso podem representar sério risco para a saúde, porque precisamos nós ser cautelosos com algumas substâncias e não com outras?

No caso específico da maconha, para poder ela ser considerada segura para o consumo humano, necessitará passar por rigorosos testes que confirmem a sua não periculosidade. As pesquisas existentes, muitas delas feitas na década de setenta e oitenta, não indicam que a maconha tenha características aconselháveis para o consumo humano. A vida média extremamente longa do princípio ativo, o delta-9 tetraidrocanabinol, agentes cancerígenos na fumaça da maconha, os distúrbios sensoperceptuais, as dificuldades geradas em tarefas de precisão quanto a relações de tempo e de espaço, as possibilidades reais de ser mais uma causa importante de acidentes no trabalho, também na operação de veículos terrestres ou aéreos, os achados sugestivos de degeneração neuronal em animais de laboratório, sendo ainda: fator desencadeante de distúrbios psicóticos, causa de síndromas amotivacionais e de agravamento de problemas de aprendizagem; todos esses fatos tornam a utilização do produto desaconselhável.

Um efeito anti-emético no caso de pacientes em tratamento com quimioterápicos e um efeito redutor de pressão intra-ocular tornam algumas substâncias contidas na maconha passíveis de verificação científica. Isoladas essas substâncias, poderão ser elas testadas de forma apropriada, medindo-se riscos e benefícios comparados aos de outras inúmeras substâncias já presentes na farmacopéia. Nenhum desses possíveis efeitos desejáveis na clínica podem se constituir em álibi para se expor parte considerável da população ao uso recreativo de maconha.

Como conclusão, considero: não há respaldo científico para aprovação da maconha para consumo humano, o entusiasmo e o partidarismo favorável à liberação do uso da maconha não podem estar acima das medidas de segurança para a saúde pública. A indústria do tabaco está hoje sitiada pela pressão dos processos daqueles que direta ou indiretamente foram prejudicados pelo hábito de fumar. Quem paga a conta dos custos para a saúde e outras conseqüências econômicas e sociais no caso de qualquer droga cujo uso propõe-se liberar?

No entanto, há necessidade de se ter respeito pelos dependentes químicos, de apoiá-los e de ajudá-los. Dependência química é uma doença que precisa ser tratada como tal e ter sua ocorrência controlada, excluindo-se punição como forma de tratamento. As atitudes médicas não devem e nem podem ser confundidas por preferências sociais ou por fantasias de estilo, o exemplo mais clamoroso é o do alcoolismo que teima em ser tratado como um problema moral e não como efetivamente é: uma doença de curso mais ou menos longo e fatal e de altíssimo custo econômico e social.

(Dr. Silvio Saidemberg, psiquiatra e psicoterapeuta, professor de psiquiatria da FCM - PUCCAMP) / ENDEREÇO: Rua Antônio Serafim, 151; Jardim Sta. Marcelina -CEP 13095-510 Campinas, SP - Fone/Fax: (019) 2555447 -2555466 / CREMESP 18046

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