PIEDADE, SENHOR !

Caminhonete veloz na estrada de terra, poeira pelas frestas das portas, calor escaldante, o capacete branco de chefia na cabeça uma estufa, ele passa a mão pela testa, a limpa no jeans, suor e poeira a vida dele, agora mortes, sujeira, sujeira por fora, por dentro, sentimento de culpa...– um bocado de capacete boiando - escuta – mais de vinte...geme, ânsias de vômito, gosto ruim na boca, olha pela janela, pinheiros escassos, gralhas azuis descansam nas cercas, capim desbotado, pinus, as gralhas sumidas, céu de chumbo, ele retira o capacete, no velocímetro 80 – devagar !– ordena – acidente na estrada, sempre na estrada, por que o rio agora? à noite..

. – é sempre de noite – escuta...chegam à margem do rio, águas barrentas, param, ele desce, pilares de concreto decapitados, espetados no meio do leito, vigas e tabuleiro da ponte levados pela enchente, a balsa adernada, cabo de aço retorcido agarrado nela...– doutor, acharam mais três, vinte e quatro ao todo– ouve...vê corpos inchados, pés descalços, camisas calças farrapos, água e calor, o cheiro o nauseia...piedade, Senhor! manda colocar os corpos na ambulância...– o porão tá cheio d'água – escuta...piedade, Senhor! por que tanta incompetência? por que, por que? o peso da culpa...não sou onipresente, só o Senhor é, droga de gente relaxada...ele acende um cigarro, finaliza as instruções, espera, nenhuma palavra de consolo, nenhum gesto de amizade, suspira...chefia e subordinados, sem espaço para diálogo, piedade Senhor!...volta ao veículo, percurso silencioso...serão esquecidos, mas eu me lembrarei, remorsos...a caminhonete pára, ele desce, entra no escritório, os dois estão a sua espera, olha com raiva, se contem, apadrinhados de merda! filho de deputado, genro de governador... – então? – escuta, finge não ouvir, não ver, se senta na poltrona ...– nunca vi mortos! – fala o outro...droga de profissão, lidar com imbecis, com mortes, piedade Senhor!...levanta a cabeça, o calendário na parede, mulher despida...sacrilégio ou vida?...vê datas em vermelho, se levanta, examina...– véspera da ressurreição do nosso Salvador– fala alto...eles o olham...– nosso Salvador? nosso? você é judeu ! – falam em coro... – sou sim! o Salvador é de vocês e dos mortos...ele se aproxima– vão ajudar a enterrá - los....–no dia da ressurreição? é feriado! não pode... esbofeteia o mais próximo...– posso sim! feriado só pra mim!...piedade, Senhor!